sexta-feira, outubro 13, 2006

reflexo


existo na fronteira do preto com o branco,
no lugar preciso entre o sangue e o espelho.

os meus passos não são reais
não gravam o chão nem fixam o tempo

vivem como sombras, independentes, como se
a sua história se afastasse da minha

e caminham rumo a uma luz qualquer
no vértice que separa o real do etéreo.

nesse ponto, onde o espelho me devolve os passos,
nesse instante, não sou nada. sou completamente.

e volto a existir no verdadeiro espaço das coisas,
na massa volátil entre o olhar e o reflexo.

aí, na nova morada, recrio-me, reinvento-me, reconto-me,
porque é o sonho quem me dá esse direito.

então, posso ser quem eu quiser, quem tu quiseres.
aí, na nova morada, não há identidade, não há tempo.

depois, sou a água calma do rio e a nuvem do céu.
depois, sou o mar forte e o galho da árvore.

e sou vento e sou sol e sou fogo
- lembra-te, posso ser quem eu quiser.

e sou sangue e sou veneno e sou lama
- lembra-te, posso ser quem tu quiseres.

na nova morada o único limite é o sonho.
entre o sangue e o espelho há vida que pulsa.

inalo a alma, inspiro por mais uns segundos a eternidade,
essa massa volátil que se molda entre o real e o virtual

e de repente não há mais ausência, o éter esgota-se.
os olhos fogem-me novamente perseguindo os meus passos.

diagonalmente, um pé sai da nova morada e
lentamente, marca com impressão forte o meu corpo.

o outro pé, foge diagonalmente para o espelho
abraçando o outro corpo, o reflexo que ganhou vida.

os passos escapam sempre da nova morada,
não apreciam a eternidade das suas paredes incolores.

é-lhes insuportável uma existência metafísica,
necessitam do sangue e necessitam do espelho.

despedem-se da eterna fronteira e partem
restando-lhes a saudade da casa dos sonhos.

o pé que marcou com impressão forte o meu corpo
desenhou na minha pele o destino, encarcerou-me.

escreveu-me a tinta permanente, inapagável,
e eu serei escravo da sua vontade e do seu poder.

o outro pé, o que fugiu diagonalmente para o espelho,
pobre por ter rejeitado a eternidade da antiga morada,

mergulha na virtualidade do sangue reflectido e,
no mar do espelho vivo, pinta telas abstractas, interpretáveis.

agora, os dois pés, nos seus novos países, olham a antiga morada.
sabem que na casa do sonho existiam anjos, diabos e duendes,

sabem que existia o vento, o sol e o fogo,
sabem que existia o sangue, o veneno e a lama.

o pé que marcou com impressão forte o meu corpo,
chora. o pé que marcou o meu corpo, chora.

nas suas lágrimas corre o veneno da realidade.
o destino escolheu assim. chora a liberdade perdida.

o outro pé, o que fugiu diagonalmente para o espelho,
sabe que vive a mentira do reflexo, sabe que o brilho é irreal.

o outro pé, sabe que o espelho é sempre falso.
mas ri, solta a gargalhada da antiga morada

porque no espelho, no espelho há ilusão,
há um resto de éter, uma possibilidade de sonho.

então diz-me, sou o vento, o sol e o fogo.
diz-me sou o sangue, o veneno e a lama.

sou aquilo que quiser. sou aquilo que quiseres. no espelho,
sou o que acreditas. e se acreditas, então é verdade.
*

5 comentários:

Sandman of the Endless disse...

É indescritível o turbilhão de sentimentos, sensações e impressões que tão fortemente emanam dos seus versos, meu caro Vítor. Está sendo reconfortante ter descoberto o Sicronicidade... Parabéns pelo projeto. Você e a minha querida Luciana são demais! ;o)

nuno disse...

aqui vim parar por acaso e detive nas palavras "o sangue, o veneno e e a lama", "o vento, o sol e o fogo". muito bonito.

Agripina Roxo disse...

:) muito bonito, mesmo

MJLF disse...

sincronia entre a imagem e as palavras, tudo funciona como um jogo de espelhos, reflexos e sombras, tem algo de sonho, de mistério, de inconsciente. fiquei surpreendida com a qualidade da imagem e do texto.
Maria João

Vítor Leal Barros disse...

obrigado a todos...