domingo, abril 30, 2006

Tom Hunter & Vermeer

Em Fevereiro, meia hora antes de nos expulsarem da National Gallery em Londres (sim, porque a delicadeza dos vigilantes acaba quando se trata de fechar o museu) tive oportunidade de ver muito rapidamente uma exposição de fotografia fantástica de um autor contemporâneo que eu não conhecia. Lembro-me que as suas imagens eram reinterpretações actuais de alguns quadros de Vermeer. Os personagens mantinham o mesmo anonimato e os rostos respiravam a mesma melancolia.
A preocupação e o interesse por cenas “simples” do quotidiano, tão acentuadamente estudadas e exploradas na arte contemporânea (especialmente na Fotografia), parecem ter nascido em Vermeer, onde, em vez de Madalenas, Cristos, navegadores ou políticos, desfilam mulheres e raparigas, por vezes alguns senhores, tudo gente anónima, em cenas aparentemente corriqueiras da vida quotidiana como verter água dum jarro ou ler uma carta em frente à janela. O modelo de Vermeer é sempre colectivo, é ele próprio e todos aqueles que se vêem representados na mesma cena. Em Vermeer a pintura só termina a partir do momento em que há um par de olhos a observá-la.
Tom Hunter, assim se chamava o artista exposto na National Gallery, parece ter encarnado o espírito de Vermeer, criando composições formais idênticas às do pintor holandês, transpondo-as para o nosso tempo. As suas imagens adquirem o mesmo grau de representatividade e os seus modelos são, eles próprios, um colectivo também.
Tudo isto porque na altura tive muita vontade de partilhar estas fotografias aqui no blogue, o problema foi que perdi o papel onde tinha apontado o nome do autor e a coisa acabou por cair no esquecimento. Ontem, porém, enquanto procurava na net alguns quadros de pintores flamengos, acabei por dar de caras com o dito senhor. Achei que ainda vinha a tempo de referenciá-lo aqui… a sua obra é digna de ser vista. Tom Hunter é representado pela galeria White Cube, a mesma que representa Nan Goldin e Gilbert & George. Se por acaso derem um saltinho a Londres, vale a pena a visita.



à esquerda: Tom Hunter, Woman reading a Possession Order, 1997.
à direita: Johannes Vermeer, A Girl Reading a Letter by an Open Window, 1647-9.

sábado, abril 29, 2006

De preferência sem palavras

Um verso escrito a lápis para que a tinta não mate o papel. E partir em direcção ao poema em segredo, como o mundo se constrói. Evitar marcar a página com o peso da mão, não vá o relevo trair-nos depois de apagada a mensagem. E não ter palavras. Desprezá-las como se despreza a morte, até que o poema nasça e corra livre como ensina o vento. Que a beleza desperte, sem palavras, e sempre sem palavras possa ela vincar o coração. Evitar tudo o que for acessório: sussurros, beijos, deuses, milagres e carícias. Porque a poesia mora tanto nas pedras como nos olhos dos amantes.

O "DE GÉNESE" MORREU.

opção ou capricho?

Siza Vieira, é talvez, o arquitecto português que mais respeito. A lógica dos seus projectos traduz-se numa narrativa poética, coerente e de um virtuosismo difícil de igualar. Por isso mesmo, há coisas que me são completamente impossíveis de compreender, como a "granitada" que vai trepando pelos Aliados acima, pontuada ao acaso por tampas de saneamento (ainda por cima feias... pergunto-me pelo rigor do projecto de execução) e a mais recente polémica sobre o abate de árvores centenárias previsto na reforma do Passeio do Prado. Há opções de projecto que, no meio de uma linguagem e discurso tão coerentes, me ultrapassam.

quinta-feira, abril 27, 2006

todas as portas se assemelham


La Femme 100 Têtes (& etc), Max Ernst

LADO B (10)


sublinhado (28)

"Mas eu penso que devemos enfrentar a verdade; e, se não temos coragem de enfrentá-la, porque nos faria sofrer muito mais no fundo de nós outros, ao menos devemos alimentar uma grande dúvida sobre as razões que nos cumprem, para não fazermos sofrer os outros." (pág. 160)
Sinais de Fogo (Público), Jorge de Sena

quarta-feira, abril 26, 2006

O Outro Lado (9)

sublinhado (27)

"Cinco axiomas para definir a Europa: o café; a paisagem a uma escala humana que possibilita a sua travessia; as ruas e praças nomeadas segundo estadistas, cientistas, artistas e escritores do passado - em Dublin, até nos terminais rodoviários se indica o caminho para as casas de poetas; a nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém; e, por fim, a apreensão de um capítulo derradeiro, daquele famoso ocaso hegeliano que ensombra a ideia e a substância da Europa mesmo nas suas horas mais luminosas." (pág. 44)
A Ideia de Europa (Gradiva), George Steiner
Muito resumidamente: um livro interessante, um racicíonio claro, mas muito tendencioso. Os intelectuais europeus insistem em procurar uma "Ideia de Europa" em backgrounds religiosos, quando, se há algo que pode distinguir a Europa do resto do mundo, é exactamente o distanciamento religioso conseguido pelo Humanismo e pelo Iluminismo.

segunda-feira, abril 24, 2006

"Celeste e os Cravos", a poesia da Revolução

[clicar na imagem para ampliar]

preconceitos à parte...

Um dia, houve alguém que me disse que achava a obra literária de Jorge Sena (poética e não poética) um verdadeiro tédio (para não usar um termo mais pejorativo). Não sei se os motivos que fundamentaram essa opinião incidiam sobre a obra, ou sobre a personalidade do autor. Provavelmente pelas duas razões. O certo é que essa opinião influenciou-me, e criou em mim um preconceito em relação à obra de Sena. Pus de lado os poemas e arrumei na estante a ficção (as perto de seiscentas páginas de “Sinais de Fogo” são desencorajadoras!)
Há poucos dias, quando terminava a leitura das memórias de Yourcenar, esse título, “Sinais de Fogo”, surgiu-me na cabeça como leitura a iniciar. Confesso que me senti traído pela intuição; normalmente os livros que me convidam a ser lidos, são aqueles cujas referências dadas foram boas. Preconceitos à parte, resolvi iniciar a leitura. Bastou o primeiro capítulo para me apaixonar completamente pela obra. A curiosidade pela poesia de Sena voltou com essa leitura. Conclusão, tenho a dizer que, quem me deu as piores referências sobre a obra de Jorge de Sena, nunca o leu, ou é, na melhor das hipóteses, um valente idiota.

domingo, abril 23, 2006

sublinhado (26)

"Mas aquele gesto de quem se apaga tinha-lhe sido familiar toda a vida. (...) Um rosto vestido de humildade, diz Dante. Mas a humildade, que é a atitude que todo o homem reflectido adopta face à sua vida, é mais do que um traje." (pag. 205)

O quê? A Eternidade (Difel), Marguerite Yourcenar

Terminada a leitura de “O quê? A Eternidade” fica-nos a sensação de eterna curiosidade sobre a vida e as vidas de Yourcenar. Como tinha posto em hipótese anteriormente (1), a narrativa ficou-se mais pelos personagens simbólicos da sua vida (Michel, Jeanne e Egon) do que pelas suas próprias experiências. Yourcenar parece ter privilegiado a sua vocação de romancista – dos três livros de memórias conhecemos melhor os seus personagens do que a si própria, o que nos deixa seguramente insatisfeitos. O nosso instinto voyeur e a curiosidade sobre a vida da mulher que fez falar Adriano, não se perderam, e parecem ainda mais aguçados quando terminarmos o terceiro livro de memórias. Cronologicamente, Yourcenar deixa-nos em plena adolescência quando a Primeira Grande Guerra se esticava a leste, substituindo o sangue imperial pelo sangue revolucionário. Ao longo dos três livros dá-nos pistas que nos levam até aos seus 25 anos, idade em que perde o pai, Michel. Daí para a frente sabemos muito pouco, um ou dois episódios americanos isolados e o resto é silêncio: nada sobre quem amou, nada sobre com quem viveu, nada sobre uma Europa novamente em ruptura e muito pouco sobre o mundo do pós-guerra (se exceptuarmos as suas preocupações ecológicas e ambientais, a critica à aceleração desenfreada da humanidade e algumas referências breves a alguns focos de instabilidade posteriores a 1945). Fica-nos a consolação de sabermos onde e como nasce “Alexis”, esse pequeno livro muitas vezes esquecido e considerado uma obra de juventude, que na minha opinião, é uma das obras-primas da literatura do séc. XX. Um daqueles livros que, pela sua universalidade, extravasam o contexto em que foram escritos e adquirem vida própria, independentes a gerações, tempos e costumes; um livro na mesma prateleira de “As Ondas” de Woolf ou da “Recherche” de Proust.
Uma nota do editor Yvon Bernier diz-nos que Marguerite não levou “O quê? A Eternidade” até onde pretendia, mas que pouco deveria faltar para concluir a tarefa. Podemos supor que tentaria transportar-nos até 1939, se tanto. De qualquer forma, a escritora levou-nos até onde a força a permitiu levar-nos, ofereceu-nos o que a vida lhe deu oportunidade de oferecer, já que a morte foi a única razão para que ficássemos entre 1917 e 1918. Parece com isso ter confirmado o que escreveu no final de “Arquivos do Norte”: “Se me forem dados tempo e energia, talvez continue até 1914, até 1939, até ao momento em que a caneta me cairá das mãos.”

(1) texto de 5 de Abril de 2006

sexta-feira, abril 21, 2006

um poema que não me canso de ler:

...DEPOIS DE ME PERGUNTAREM «O QUE É UM HOMEM?»,

RESPONDI.....

à maneira de Keats...

O meu filho mais velho visita-me
no hospital. Traz gigantescas
peónias e a enfermeira coloca-as
numa jarra de vidro, e elas inclinam-se serenas
sobre o parapeito da janela onde
parecem ter receio de contemplar a cidade
lá em baixo, coberta de fumo. Pergunta-me quando
irei para casa. Não sei.
Vê que há fios que se estendem
de mim para uma televisão onde
o pulsar do meu coração é o Sunday Spectacular.
Como é que estou?, pergunto. Examina
o écran e diz: Não sei.
É preciso um especialista para te dizer como
te encontras, mas ninguém o vai fazer.
Devo ter adormecido, e quando acordo
estou sozinho, e o velho
ao meu lado desapareceu, e o quarto
está a escurecer. Este é o domingo
que preencherá a promessa nunca feita
de todos aqueles domingos desaparecidos
em que uma sombra do canto
do olho se aproximou, enorme, hesitou e partiu,
e eu suspirei cansado pois sabia
que teria de viver aqui mais uma semana.
Finalmente um tempo e um lugar para morrer me
são dados, e até uma pequena justificação.
As flores voltaram-se agora, pois
as janelas já escureceram, e eu
vejo os seus rostos pálidos no espelho liso
do vidro. Não, não estão a chorar,
pois isto não é um vale de lágrimas.
Riem tranquilas como as flores
sempre fazem na companhia dos homens.
«Porque este é o lugar onde as almas
são feitas», murmura o seu riso.
Hei-de ler Keats outra vez, erguer-me-ei
e irei pelo mundo, sem fios e livre;
porque já não sou um filme,
não tenho um começo, um meio, um fim,
nem um fundo musical a realçar cada cena,
um guarda-roupa ou um técnico da cor.
Sou apenas um homem que se veste no escuro
porque é isso que é um homem -
tantas bocas cheias de riso
e outras mais, tudo que pode existir
atrás dos tristes e castanhos dorsos das peónias...

A Pura Verdade, Philip Levine

trad. colect. revista por Maria de Lourdes Guimarães
Quetzal Editores (Poetas em Mateus)

LADO B (9)


sublinhado (25)

"Por trás de todas as nossas paixões por um género de vida, há um ou vários seres. Não se galopa muito tempo sozinho no vazio; não se afronta muito tempo sozinho um vendaval no mar." (pág. 179)
O quê? A Eternidade (Difel), Marguerite Yourcenar

quinta-feira, abril 20, 2006

O Outro Lado (8)

quarta-feira, abril 19, 2006

Confessionário (18)

Não quero voltar de novo à conversa daquela carta e às respostas que me deste na confissão anterior. Não vale a pena. Não porque o assunto não mereça mais tempo ou dedicação, mas antes, por achar que tudo foi devidamente entendido; afinal, não será por causa de um oceano que nos sentimos perto… serão outras as razões, certo?
Tenho-me obrigado a guardar algum tempo para reflectir sobre uma série de coisas. A assiduidade (ou falta dela) das minhas respostas provavelmente já to revelou. Uma das questões prende-se com o complicado que é fazermo-nos confiáveis às necessidades dos outros. Naquilo que me envolvo, sabes que me entrego sempre com ânimo e entusiasmo, tento sempre (é uma regra que tenho como princípio irrevogável) dar o máximo de mim, sem reservas, falsas esperanças ou truques de sedução capazes de atalhar o caminho para conquistar a confiança do outro. A conclusão a que cheguei, se é que poderei concluir já alguma coisa, diz-me que, muito raramente, os meus interlocutores conseguem despir a imagem social que me compõe e mostrar alguma disponibilidade na análise, sem preconceitos, daquilo que lhes proponho. Quando me chegam as respostas, há sempre dois ou três argumentos comuns… “és muito novo, a vida há-de ensinar-te, não tens experiência.” Com argumentos assim sinto-me completamente desarmado. Realmente sou novo, e não tenho, por essa lógica, a experiência que me exigem.
Acho este tipo de argumentação de uma arrogância inexplicável, ao mesmo tempo que o considero um acto paupérrimo de inteligência, primeiro porque idade não é sinónimo de experiência (há vidas longas que não experimentaram metade das emoções doutras vidas mais breves) e segundo, pelo pretensiosismo de arredar da conversa quaisquer outros argumentos que validem a nossa interpretação e/ou opinião sobre determinado assunto. Quem me conhece, e tu conheces, sabe o quanto respeito a experiência e a velhice. Tenho-as como o caminhar para uma existência cada vez mais apaziguadora e selectiva, capaz de valorizar e distinguir aquilo que realmente é essencial. Ainda no post sobre a exposição da Frida Kahlo no CCB fiz um apontamento às vantagens da idade. Como prova, farto-me de transcrever parágrafos do “Elogio da Velhice” do Hesse, um dos textos mais lúcidos que li, mas não posso aceitar esse tipo de argumento como forma de terminar uma conversa, ou como tentativa de inviabilização de uma ideia, apenas porque não foi experimentada ou porque, pela sua fuga ao “padrão” vigente, impõe uma metodologia diferente à sua concretização.
Bem, mas a indignação decorrente da tal reflexão a que me obrigo só aqui começa, apesar de tudo o que já te contei. Postas as cartas na mesa, e deste modo, parece que tudo se bipolariza: ou se anulam as ideias e se vai na onda (para evitar chatices) e um dia, pobres de espírito, lançamos dos mesmos argumentos para discutir ideias com a gente mais nova; ou nos tornamos numa espécie de resistentes, uma espécie de pintelhos reaccionários que têm a mania que são mais do que os outros (é assim que os catalogam). Enfim, venha o diabo e escolha!
Sabes o que me vem à cabeça depois de tudo isto? Uma espécie de certeza de que não existem pessoas geniais, mas antes, pessoas mais ou menos persistentes. Talvez consideres isto presunção minha, corro esse risco… mas é a hipótese que me parece mais evidente. Enquanto espero o teu comentário vou continuar a procurar explicações.
Já agora: para que saibas que escrever esta série, é para mim, uma festa idêntica. Obrigado pela possibilidade de resposta.

Breakfast on Pluto

Embrenhado numa atmosfera kitsch, “Breakfast on Pluto”, último filme do realizador irlandês Neil Jordan, serve-se da ligeireza das imagens, do pitoresco dos seventies e do tom anedótico dos personagens para abordar temas bem mais sérios. É um filme carregado de metáforas, no qual o personagem principal Patrick "Kitten" Braden (Cillian Murphy) parece querer simbolizar uma Irlanda ambígua, confusa na sua identidade, indecisa entre os preconceitos da sua raiz católica e a autoridade arrogante de uma Inglaterra imperialista. Penso não ser por acaso, a imagem do órfão ambíguo, que obstinadamente procura uma mãe refugiada em Londres ou um pai membro legítimo da família católica irlandesa. Bem, mas, metáforas e kitsch à parte, e fazendo o favor de nos concentrarmos única e exclusivamente na figura de “Kitten” (personagem principal), o filme está carregado de um optimismo e de uma positividade que me apaixonaram completamente. “Kitten” possui todos os ingredientes para se tornar num mártir ou numa vítima perfeita das vicissitudes da sociedade, ora veja-se: é órfão, fruto da união ilícita entre um padre católico e uma rapariguinha solteira, desorientado entre o modelo masculino que lhe é imposto pela sociedade e pelo corpo e o padrão feminino com que se identifica em espírito, cresce numa Irlanda extremamente conservadora e preconceituosa, à qual tenta escapar logo que pode. A independência ganha com a fuga é imediatamente quebrada, mal se vê confrontado com as leis duras de sobrevivência numa grande cidade sem o apoio de quem quer que seja. “Kitten” reúne o cardápio completo de males que previsivelmente lhe anunciariam um fim trágico, o que não acontece. Este personagem, uma espécie de palhaço de “O sorriso aos pés da escada” de Henry Miller, é uma daquelas pessoas que transformam em amor tudo ou todos aqueles que tocam. A sua bondade intrínseca, aliada à forma descomprometida como olha o mundo, são os materiais necessários à transformação do chumbo em ouro. Talvez porque estes verdadeiros alquimistas existem (e eu afortunadamente conheço alguns), “Breakfast on Pluto” se guarde na minha memória como mais uma prova de que a ternura e o perdão são, definitivamente, chaves para um caminho de sucesso. “Kitten” recebeu da vida o que sempre semeou – amor - e parece, com isso, ter dado resposta a uma das perguntas do realizador: “How does somebody survive a deeply aggressive world just by being himself?”
Um filme que vale muito a pena.

sexta-feira, abril 14, 2006

quinta-feira, abril 13, 2006

celebração da Primavera


a fotografia e a música não são por acaso... trata-se uma espécie de ritual (como os índios) para ver se o sol nos acompanha durante alguns dias

BOA PÁSCOA

LADO B (8)


sublinhado (24)

nem de propósito e logo a seguir ao post da Frida! Ora leiam e depois digam-me se o nome deste blogue é ou não por acaso:
"Tudo o que é jogos de espelhos entre as pessoas e os momentos do tempo, ângulos de reflexão e ângulos de incidência entre a imaginação e o facto consumado é tão obscuro, tão fluido, tão impossível de captar e definir por palavras, que a própria menção se arrisca a parecer grotesca. Falemos de coincidência, essa palavra que basta quando não há explicação." (pág. 127)
O quê? A Eternidade (Difel), Marguerite Yourcenar

este infelizmente não está no CCB


"As Duas Fridas", 1939, Frida Kahlo
Confesso que fiquei um pouco desapontado com a exposição da Frida Kahlo do CCB, primeiro pela quantidade mínima de obras expostas, colmatada por uma série de fotografias mais ou menos interessantes do quotidiano da pintora. Esperava encontrar no CCB uma verdadeira retrospectiva, o que não aconteceu, apesar da produção artística pouco numerosa da artista e, provavelmente, não tão complicada de reunir.
Talvez o aspecto mais singular na obra de Frida, e que me estimula a curiosidade, tenha relação com a componente narcísica da sua arte. Frida é a pintora dos auto-retratos. Nenhum outro artista (à excepção de Warhol e de alguns artistas contemporâneos dos quais saliento a Nan Goldin) se usou continuamente como o objecto central da sua obra. Frida fá-lo constantemente ao longo da vida e desde muito cedo. Os auto-retratos sucedem-se desde a adolescência até ao período de doença que antecedeu a sua morte prematura.
Talvez o ponto fulcral da obra de Frida se situe no fazer da sua existência uma obra de arte, e menos na expressividade da sua pintura, na inserção ou não da sua obra no contexto surrealista ou mesmo na dureza, força e agressividade dos seus trabalhos. O que Frida acrescenta à arte universal é exactamente a transformação do artista no seu próprio produto artístico. Se ampliarmos o sentido desta interpretação, o conceito parece querer dizer-nos que, a vida, enquanto experiência individual de cada um, pode, por si só, ser considerada uma obra de arte. A Nan Goldin será na contemporaneidade o exemplo por excelência do que acabo de dizer. O seu trabalho não é mais do que a sua vida, ele resume-se (e este resume-se é complexo, extenso e ambíguo) a comunicar com o espectador um testemunho da sua experiência individual. Frida, terá sido, nesse sentido, uma artista pioneira.
Lamento não ter tido oportunidade de fazer na exposição um exercício que já me obriguei com reproduções dos quadros de Frida Kahlo, e que, consistiu em colocar todos os seus auto-retratos (e são bastantes) por ordem cronológica analisando detalhadamente cada um deles, tentando perceber a narrativa que eles criam entre si. Dessa análise fica a certeza de que a densidade e complexidade dos trabalhos aumenta à medida que nos aproximamos do fim da vida da autora, o que me leva a concluir que qualquer vida transformada em arte é tão ou mais interessante e valiosa quanto mais experiências se encontram a ela associadas. A idade sem dúvida que desempenha um papel fundamental quando analisadas as coisas por este prisma.
Não sei se me fiz entender? Se fiz, então é tudo.

quarta-feira, abril 12, 2006

Confessionário (17)

Meu querido,

Tenho deixado lacunas na nossa correspondência, eu sei... Ao mesmo tempo em que tenho uma imensidade de coisas a dizer-te, eu também tenho uma resistência em escrever, como se depois de grafar cada palavra, a coisa já fosse outra. Compreende?
Queria que soubesses que me deliciei profundamente com o Boticelli ofertado por tuas mãos generosas. Há tanta delicadeza naquelas cores e tanta história naqueles rostos!
Compreendi tudo o que me disseste a respeito de “ser cínico”. Sim, precisamos de uma boa dose de cinismo se quisermos sobreviver a tanta mediocridade. Acho mesmo que é a saída mais criativa em tempos tão estéreis.
O que dizer dos rituais?
Eu o confundiria se dissesse que gosto dos ritos tanto quanto os abomino? Mas é a verdade!
O que me seduz na celebração dos ritos é seu simbolismo, Vítor. Eles congregam as pessoas em grupos, é um fator identificador de valores e condutas, nos aproxima dos nossos iguais.
Sou uma romântica, mas como dizem meus amigos do lado de cá do Atlântico, quando querem insuflar meu lado polêmico, sou uma “neo-romântica”.
Eu sorrio da provocação e calo-me. Eles têm lá alguma razão.
Quando tentamos conquistar alguém, no jogo amoroso, invariavelmente recorremos aos ritos: flores, cartão, jantar, música, poemas...
Não é à toa que a mesa é o momento de celebração mais recorrente e forte na história da humanidade. Os casamentos, nascimentos, o encontro com amigos, os contratos comerciais, todos eles são selados nos rituais da boa mesa. Sintomático que o Cristo tenha concluído sua vida pública na última ceia, não acha?
Da mesma forma, não há nada pior quando lançamos mão dessa rica abstração para segregar, humilhar, cegar, matar, perpetuar hábitos retrógrados, regimes opressores e arrogantes.
Bem, mas isso é só o começo de uma longa conversa.
Eu dou-me por satisfeita em alimentar nosso pequeno ritual de correspondência. Saiba, quando me sento para escrever esta série, alinhavando sentimentos e raciocínio, é uma grande festa pessoal.

segunda-feira, abril 10, 2006

em parêntesis, já que este blogue não quer nem pretende debruçar-se sobre política

da blogosfera

... estou encantado com o blogue do Luís Mourão, Manchas, e definitivamente agarrado a uma série que há por lá, intitulada "A Leitora, no seu infinito particular"...

O Outro Lado (7)

sublinhado (23)

"Admirável também nunca a ter ouvido dizer mal de ninguém, nem bem, de resto, por simples conveniência social. Nunca lhe surpreendeu na voz ponta de irritação ou troça, nem mesmo de solicitude excessiva; fala com as crianças sem entoações infantis. Admirável sobretudo para um homem que cedo me ensinará que só se pode discutir inteligentemente com amigos e sobre subtilezas, a total ausência de argúcias inúteis, de contradições sempre tão obtusas como um prefeito de colégio contradito, do azedume que sai num Sim, mas, ou num Mas não lhe parece que...? Também não há recusa nos seus silêncios." (pág. 89)
O quê? A Eternidade (Difel), Marguerite Yourcenar

sexta-feira, abril 07, 2006

they laugh at me 'cause the way I talk... (1)

...CONTINUA...
título e sublinhados meus, vale a pena ler com atenção, trata-se de uma das melhores peças de humor que li ultimamente

quinta-feira, abril 06, 2006

sublinhado (22)

"Um dos milagres da juventude é a redescoberta sem modelos, sem confidências segredadas, sem leituras proibidas, por causa de um profundo conhecimento carnal que existe em todos nós enquanto não nos ensinam a temê-lo ou a negá-lo, de todos os segredos que o erotismo crê possuir e de que a maior parte das vezes só possui uma imitação." (pág. 57)

O quê? A Eternidade (Difel), Marguerite Yourcenar

quarta-feira, abril 05, 2006

LADO B (7)


"Entre Memórias" (ou, em sub-título, o post que ninguém vai ler)

A desmaterialização do eu, que Yourcenar estabelece no texto anterior, relativamente à sua própria existência, remete-nos imediatamente para um dos personagens mais extraordinários da sua obra, Adriano. Como no livro de memórias do imperador, em que assistimos à debandada da alma (“a bela e antiga metáfora”) sobrevoando o grande mausoléu rodeado de ciprestes apontados à eternidade, em “Arquivos do Norte”, Yourcenar, vê-se ela própria como a criança destinada a conhecer os tumultos do séc. XX. O distanciamento do corpo, o olhar exterior como se nos analisássemos tal qual um personagem, é, no meu entender, um testemunho de humildade e mais ainda, um reconhecimento que só desse modo e apelando aos deuses da imparcialidade, pode um ser humano entregar-se à aventura de se conhecer a si próprio.
Depois de ter lido “Souvenir Pieux” e “Arquivos do Norte”, dedicados respectivamente às famílias materna e paterna da autora, cresce-nos a vontade de saber como terá interpretado o seu próprio século; será que Auschwitz ou Hiroxima lhe riscaram a alma, ou lhe terão causado uma leve indignação como a Comuna ao seu avô Michel-Charles, ou o distanciamento ao caso Dreyfus do seu pai Michel? Talvez o terceiro volume nos ofereça uma resposta justa, anunciada pelo realismo (que alguns podem adjectivar de pessimista, mas que eu não considero) dos últimos parágrafos de “Arquivos do Norte” e pela “advertência” deixada ao seu pai e a Proust no início de “O quê? A Eternidade”, demasiado envolvidos pelo entusiasmo tecnológico e as maravilhas do seu tempo. (“Proust e ele próprio não vêem muito mais longe. Todos cometem o erro de pensar nas satisfações do presente e nos lucros de amanhã, nunca em depois de amanhã ou no século que vem. Marcel não previra a morte que chove do céu, Coventry, Dresden, Hiroxima, nem os aniquilamentos que estão para vir no que ainda é o nosso futuro, nem a atrição produzida em períodos de paz pelos ódios e as rivalidades das nações artificialmente aproximadas.”) Ou talvez a autora decida contornar habilmente as feridas recentes do mundo, aproveitando, ora o fascínio pela figura paterna e a sua vocação de romancista, ora o seu interesse assumido pela História (em especial o período clássico), como escapatórias possíveis à sua vida e ao seu próprio tempo… a ver vamos.
No final dos dois primeiros livros de memórias há uma característica transversal e essencial que devemos salientar e que se prende com o valor incalculável do testemunho. Muitas vezes, para não dizer, quase sempre, passamos ao lado das histórias dos nossos avós e dos nossos pais, vivemos, como Michel e Marcel, absorvidos pelas maravilhas do presente e esquecemo-nos que esse exercício retrospectivo é essencial à construção do futuro. É a base do nosso equilíbrio e do consequente equilíbrio do mundo. Enquanto avançava na leitura, dei por mim a fazer demasiadamente a mesma observação: “Mas porque é que não dediquei mais tempo aos meus avós e às suas histórias enquanto os tinha comigo? Há coisas que queria saber, e que, com a sua partida, transformaram-se em segredos eternos impossíveis de desvendar.” Como escrevi ontem na resposta ao texto da Luciana, não há vidas desinteressantes… talvez tudo se resuma exclusivamente a uma questão de querer e saber escutar.

sublinhado (21)

“A criança tem cerca de seis semana. Como a maior parte dos recém-nascidos humanos, parece um ser muito velho e que vai rejuvenescer. E, na verdade, é muito velha: quer pelo sangue e os genes ancestrais, quer pelo elemento não analisado a que, por uma bela e antiga metáfora, chamamos a alma, ela atravessou os séculos. Mas não sabe nada disso, e é melhor que assim seja. A sua cabeça está coberta por uma penugem preta como o dorso de um rato; os dedos dos punhos fechados, quando se desdobram, parecem as gavinhas delicadas das plantas; os olhos miram as coisas sem que ninguém lhas tenha definido ou nomeado: de momento é apenas ser, essência e substância indissoluvelmente ligadas numa união que vai durar sob essa forma cerca de três quartos de século, talvez mesmo mais.
Os tempos que ela vai viver serão os piores da história. Verá pelo menos duas guerras ditas mundiais e a sua sequela de outros conflitos a reacenderem-se aqui e ali, guerras nacionais e guerras civis, guerras de classes e guerras de raças e mesmo, por um anacronismo que prova que nada acaba, guerras de religiões, cada um contendo em si faúlhas suficientes para provocar a conflagração que levará tudo. A tortura, que se pensava relegada para uma pitoresca Idade Média, voltará a ser uma realidade; a pululação da humanidade desvalorizará o homem. Meios de comunicação maciços ao serviço de interesses mais ou menos camuflados farão correr sobre o mundo, com visões e barulhos quiméricos, um ópio do povo mais insidioso do que qualquer religião jamais foi acusada de espalhar. Uma falsa abundância, dissimulando uma crescente erosão dos recursos, dispensará alimentos cada vez mais adulterados e divertimentos cada vez mais gregários, panem et circenses de sociedades que se julgam livres. (…)
(…) Não faço do passado um ídolo: esta visita a algumas obscuras famílias do que é hoje o Norte de França mostrou-nos o que teríamos visto em qualquer outro lugar, quer dizer que a força e o interesse mal entendidos reinaram quase sempre. Em todos os tempos o homem fez algum bem e muito mal; os meios de acção mecânicos e químicos que ele recentemente se outorgou e a progressão quase geométrica dos seus efeitos tornaram esse mal irreversível; por outro lado, erros e crimes que eram sem importância enquanto a humanidade não passava sobre a Terra de uma espécie como qualquer outra tornaram-se mortais desde que o homem, tomado de loucura, se crê todo-poderoso.” (págs. 247 e 248)

Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar

fui pelo Carlos [Pérola e Azul]... de todas as sugestões é a que reúne melhores condições: são cores que permitem uma leitura fácil, dão mais vida ao blogue (que era o pretendido) e combinam uma certa harmonia... Lu, o fucsia e o vermelho penso que são fortes demais, mas podemos tentar, o amarelo é utilizado em imensos blogues e o cinza é muito próximo da cor que tínhamos e, portanto, tristonho também... espero ter acertado...

terça-feira, abril 04, 2006

O Outro Lado (6)

quanto à cor... bem, a Lu sugeriu fucsia ou vermelho... talvez sejam cores que não facilitam a leitura... houve a sugestão do Carlos para o pérola ou os amarelos claros da Fátima e da Cláudia (que se aproximam das cores de outros blogues e com esta crise dos templates nunca se sabe!)... o Henrique sugeriu cinzento, cor próxima da actual e que não alteraria em muito o aspecto do blogue... sinceramente não sei, que dizem?

Resposta ao post anterior

Não tenho a certeza se podemos estabelecer a equivalência entre os blogues ditos literários, com os folhetins do séc. XIX... Talvez existam pontos comuns que nos levem a pretender isso, mas creio que a principal diferença (e talvez significativa), que se prende com a exigência e qualidade dos escritos, fique, no "folhetim" contemporâneo, aquém das expectativas...
A celeridade do processo de publicação on-line é inimiga do estudo, da investigação, do comprometimento... é, na sua essência, imediata, e portanto, fugaz. Gosto de olhar o fenómeno de publicação on-line (os blogues) como uma espécie de caderno de notas, onde, diariamente, se vai gravando aquilo que do quotidiano seduz a nossa sensibilidade e aprecio sobretudo a multiplicidade e heterogeneidade das abordagens, que, perto ou distantes das nossas, não deixam de ser um testemunho valioso da individualidade e experiência intransmissível de cada um. (Nem por acaso, pensei escrever hoje uma espécie de remate à leitura que ando a fazer de “Arquivos do Norte” da Yourcenar, cuja reflexão incidia exactamente na preciosidade do testemunho de cada ser humano. A sensação que fico depois de ler o livro, é de que não existem vidas desinteressantes… mas voltarei a esse tema mais tarde).
Enfim, e para concluir o assunto, considerar os blogues ditos literários equivalentes dos folhetins do séc. XIX, talvez seja uma comparação ambiciosa pelas razões que já apresentei. Penso que os principais contributos desta nova forma de publicação residem essencialmente na democratização dos meios e consequente heterogeneidade de abordagens e na noção de tempo real em que tudo acontece, onde quem publica pode receber imediatamente o feedback do público. Para terminar, é essa iminente celeridade a principal inimiga da qualidade dos conteúdos publicados… um blogue não é nem deve tornar-se um substituto dos livros, cada um possui o seu papel específico e não invalida a presença do outro.

segunda-feira, abril 03, 2006

A volta do romance a prestação

Relendo a matéria abaixo, ficou-me a seguinte indagação?
Os blogs ditos literários não estariam cumprindo a antiga função dos folhetins do séc. XIX?
Artistas comprometidos com a palavra estão oferecendo seu ofício em parcelas cotidianas.
Muitas são as razões. De um lado, o perverso, cito a dificuldade de publicar - maior pesadelo de 10 entre 10 escritores sem visibilidade; de outro está a democratização do livro e o consequente acesso à literatura, uma vez que os livros custam, pelo menos, 10 vezes mais que os folhetins.

Vítor, eu sei que é de uma presunção sem par, mas as séries esquissos, missivas, confessionário (e outas tantas que existem por aí) não seriam exemplos dessa "escrita aos pedaços" ?

Isso fez-me lembrar do dito que temos por cá: amor aos pedaços.

As doçuras e delicadezas da vida acontecem assim, aos bocados: os vinhos, os sorvemos aos goles; as tortas mais deliciosas são servidas em pequenas fatias; a refeição requintada em pequenas porções; o amor em doses diárias...

Ah, sim, é bom quando tudo chega numa só tacada, nos arrebatando aos céus. Contudo, essa tacada não tem seu fim em si. Talvez por isso queiramos repetir ao longo da vida os momentos de felicidade... ah, mas isso já é uma outra conversa.
O romance-folhetim surgiu no século XIX, no rodapé das páginas de jornal, com um pontilhado indicando a linha para ser recortada. Obras de autores como Balzac, Flaubert e Victor Hugo foram assim apresentadas para seus leitores: em capítulos. Criado na França, o formato foi uma forma de facilitar o acesso ao livro. Na década de 1830, o modelo foi importado pelo Brasil, primeiro traduzindo os franceses, depois publicando autores como Teixeira e Sousa, Joaquim Manuel de Macedo, depois José de Alencar e Machado de Assis, chegando a Nelson Rodrigues e Orígenes Lessa.
Mas essa prosa em capítulos, extremamente popular em fins do século XIX, foi gradualmente sendo esquecida. No livro Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade), José Ramos Tinhorão faz o primeiro levantamento dos folhetins publicados de 1830 a 1994. Numericamente, pode-se ter uma idéia desse decréscimo: de 1839 a 1900, foram lançados 198 folhetins. De 1950 a 1994, apenas 36.
O jornal literário curitibano Rascunho resolveu recuperar o romance-folhetim. Desde julho, vem publicando, mês a mês, capítulos de O inglês do cemitério dos ingleses, do escritor Fernando Monteiro. Segundo o autor, O inglês "é o fantasma do folhetim literário, voltando para puxar o pé dos leitores ainda interessados na alma". Monteiro já publicou outros livros, e é a primeira vez que escreve por parcelas. "É mais ou menos imprevisível o que pode acontecer com o tecido elástico de um romance-folhetim", diz. No final, pretende fazer como Flaubert com Madame Bovary, ou Machado de Assis com Quincas Borba, e lançar o romance na íntegra, em livro.

sábado, abril 01, 2006