quinta-feira, setembro 28, 2006

imagens que se colam ao peito (11)

Erotismo e Morte, 1985, pastel e carvão s/lona, 158x230 cm, Graça Morais

Saímos do Porto já tarde. Estávamos cansados das entregas de trabalho sucessivas e, sem grandes planos, resolvemos fugir dois ou três dias da cidade para descansar um pouco. Éramos quatro, eu, a Ana, a Sofia e o Mário. Fechámos o gabinete e foi o tempo de passar por casa de cada um, meter a roupa e a escova de dentes num saco e sair pelo país fora sem destino. Jantámos nessa noite em S. João da Pesqueira, um belo jantar como quase sempre acontece no interior do país. Fizemos mais uns quilómetros já de noite fechada. O céu estrelado como é impossível nas cidades. Fazia frio, estávamos no fim de Fevereiro. Acabámos por dormir em Foz Côa.
No dia seguinte acordámos bem cedo. Passeámos toda a manhã por Torre de Moncorvo e o acaso levou-nos até Vila Flor, onde parámos para almoçar. À entrada da sala de refeições estava escrito em letras garrafais SALA GRAÇA MORAIS. Nas paredes multiplicavam-se reproduções de vários tamanhos de quadros da pintora, fotografias dos donos do restaurante abraçados à mulher que era o orgulho da terra, dedicatórias, recortes de jornal… a sala parecia um santuário dedicado à artista exalando em cada canto aquela generosidade de que só os transmontanos são capazes. Apenas duas mesas estavam ocupadas, a nossa e uma outra, ao fundo do lado direito, ocupada por dois homens com os seus cinquenta e poucos anos.
Durante a refeição discutíamos entre nós os quadros. Aquele é mais forte, não, o outro é que é. Repara-me a expressão vincada que ela desenha no rosto da mulher. O patati patatá do costume. Estávamos bem, tranquilos e a conversa fluía ao sabor do douro tinto que bebíamos. Já no fim da refeição, preparávamo-nos para pedir o café, quando a senhora que nos servia se aproximou e perguntou, os senhores não sabem quem é aquele senhor que acabou de sair? Nós, admirados que estávamos com a pergunta dissemos que não. Ela prosseguiu, é o presidente da Câmara. Olhámos uns para os outros, encolhemos os ombros e agradecemos-lhe a informação. Ele deve ter gostado dos senhores continuou ela não costuma fazer isso a muita gente. Ainda mais intrigados com todo aquele palavreado questionei-a, mas ele não costuma fazer o quê, minha senhora? Ao que ela prontamente respondeu, o sr. Presidente pediu-me para dizer aos senhores que passassem lá pela Câmara... gostava de dar-lhes uma palavrinha. Repetiu, ele deve ter gostado muito dos senhores, não faz isto a muita gente. Perguntámos-lhe porque quereria ele falar connosco, mostrando-lhe o nosso espanto e a nossa dificuldade em acreditar em toda aquela conversa. Provavelmente ele deve querer oferecer-vos alguma coisa cá da terra, ou então, mostrar-vos o museu. Não sei. Sei que ele gostou dos senhores, caso contrário não fazia isso. Tomámos o café numa risota só, completamente pasmados com tudo o que se estava a passar. Discutíamos se deveríamos passar pela Câmara ou se tudo aquilo era uma grande tanga e o melhor era seguirmos caminho. Optámos pela primeira hipótese.
Ao chegarmos à Câmara Municipal dirigimo-nos muito constrangidos à senhora da recepção relatando-lhe o sucedido. Ela imediatamente pegou no auscultador do telefone, anunciou-nos e depois só a ouvíamos dizer repetidamente Sim, Sr. Presidente. enquanto abanava a cabeça para cima e para baixo. Gentilmente pediu-nos que a acompanhássemos e que esperássemos numa sala com vistas para a entrada do edifício. Comentámos entre nós que deveria ser o salão nobre, pelos cortinados pesados, o mobiliário abarrocado e os retratos pendurados numa das paredes, provavelmente dos antigos presidentes.
Dois minutos passados, entra na sala um senhor de barba e cabelos grisalhos, aí pelos seus cinquenta anos, que reconhecemos imediatamente do restaurante. Sorriu-nos e estendendo-nos a mão para nos cumprimentar perguntou, então o que traz os meus amigos a Vila Flor? Nós, espantados com toda a situação dissemos-lhe que estávamos de passeio e que por acaso tínhamos resolvido almoçar na sua terra. Perguntou-nos o que fazíamos, ao que nós respondemos, e continuou gostei de vos ouvir falar dos quadros da Graça lá no restaurante. Até disse ao amigo que almoçava comigo, vou convidar estes miúdos a ir lá à Câmara… tenho lá uns livros da Graça que gostava de lhes oferecer. Nós, cada vez mais nervosos olhávamo-nos e permanecíamos incrédulos com tudo aquilo. Se me dão licença, saiu, abeirou-se da porta da sala e chamou uma senhora. Entrou novamente na sala e perguntou-nos Já visitaram o museu cá da terra? Nós dissemos que não e ele prosseguiu, vou pedir à doutora que vos acompanhe até lá, acho que vão gostar. Entretanto entra uma senhora na sala carregando uma pilha de livros nos braços. Ele pediu-lhe delicadamente que os pousasse na secretária. Pegou num, folheou-o e desabafou um tanto ou quanto emocionado, a pintura desta mulher é uma maravilha. Não imaginam o orgulho que tenho dela ser cá da terra. Fechou o livro, entregou-o à Ana e de seguida distribuiu os que estavam na mesa por todos nós. Ainda recusámos a oferta ou então que nos deixasse pagar os livros, ao que ele interveio, nem pensem numa coisa dessas, até me ofendem! Convidei-os cá porque quis, ora essa, vão agora pagar-me os livros! Despedimo-nos dele agradecendo-lhe o carinho e a atenção e saímos da Câmara Municipal em direcção ao museu, carregados de livros e acompanhados pela tal doutora que nos indicava o caminho.
Nesse dia não houve outro tema de conversa entre nós. Pensávamos que acontecimentos e pessoas assim já não existiam, ou então, eram ficção, personagens de um romance ou de um conto quaisquer. O senhor chamava-se e penso que ainda se chama Artur Vaz Pimentel.

sublinhado (41)

Democratização sem precedentes da palavra: cada um de nós é incitado a telefonar para o emissor, cada um de nós pretende dizer alguma coisa a partir da sua experiência íntima, tornar-se locutor e ser ouvido. Mas passa-se aqui o mesmo que com os graffiti nas paredes da escola ou entre os inúmeros grupos artísticos: quanto mais os indivíduos se exprimem menos há que dizer, quanto mais se solicita a subjectividade, mais anónimo e vazio o efeito se revela. Paradoxo reforçado ainda pelo facto de ninguém se interessar, no fundo, por tal profusão da expressão, é verdade que com uma excepção significativa: a do próprio emissor ou criador. É isso precisamente o narcisismo, a expressão a todo custo, o primado do acto de comunicação sobre a natureza do que é comunicado, a indiferença pelos conteúdos, a reabsorção lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade nem público, o destinador tornado o seu principal destinatário. (pág. 16)

A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky

A primeira edição deste ensaio de Lipovetsky data de 1983. Na altura ainda não tinham sido inventados os blogues, mas ele já os previra.

Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau…

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava

– Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.

Cristina Campo
O Passo do Adeus (Assírio & Alvim)
Trad. José Tolentino Mendonça

quarta-feira, setembro 27, 2006

Hoje a minha mãe fez anos. O máximo que lhe consegui oferecer foi um beijo, um ramo de rosas e uma hora de conversa. Sinto-me inconsolável.

Da Blogosfera

Há blogues que justificam uma visita diária. O Labirinto Nosso é um deles.

Sebald, o que fica

Sebald é para mim um escritor interessante, mas não é, de todo, um escritor de eleição. ‘Os Emigrantes’ (1993) é o segundo livro que leio do autor alemão, depois de ‘Austerlitz’ (2001), que considero um livro mais encorpado e mais profundo do que o primeiro e que é considerado por muitos a sua obra-prima.
Na minha opinião Sebald é um daqueles escritores que encanta e delicia outros escritores, mais do que o público em geral que constitui a maior fatia do seu universo de leitores. Percebe-se porquê. A sua ficção é extremamente inteligente e original, principalmente no que respeita à estrutura e construção da narrativa. A forma hábil como vai transportando o discurso directo do narrador principal (uma espécie de alter-ego do escritor) para os outros personagens; as descrições minuciosas e o uso da fotografia que criam no leitor a dúvida se está perante uma obra de ficção ou perante um documentário; o apelo à memória e o carácter curioso de uma escrita que atinge contornos de uma investigação rigorosa; o modo oblíquo e transversal como questiona os assuntos mais sensíveis à Alemanha do pós-guerra nomeadamente o Holocausto, fazendo-o sem sensacionalismos e sem a exposição dramática de alguns escritores sobreviventes; são características da sua obra que me aprazem e merecem a minha admiração mas que não me causam espanto, não provocam em mim o mergulho no escuro ou a revolução interior que a leitura de outros autores me proporcionou.
A ficção de Sebald entreteve-me de forma suave e constante. Senti-me sempre como um ouvinte atento cujo relato não incomodou nem despertou emoções fortes. Nunca me foi exigido qualquer tipo de cumplicidade, compaixão, amor, ódio, desprezo, inveja ou esforço para aceitar qualquer um dos seus personagens. Fui sempre um mero espectador. Passivo. Livros assim proporcionam-me prazer no presente mas raramente me vincam a memória…
...contrariando:
The moral backbone of literature is about that whole question of memory. To my mind it seems clear that those who have no memory have the much greater chance to lead happy lives. But it is something you cannot possibly escape: your psychological make-up is such that you are inclined to look back over your shoulder. Memory, even if you repress it, will come back at you and it will shape your life. Without memories there wouldn't be any writing: the specific weight an image or phrase needs to get across to the reader can only come from things remembered - not from yesterday but from a long time ago.
Entrevista ao ‘The Guardian’ conduzida por Maya Jaggi, publicada a 21 de Dezembro de 2001, W.G. Sebald
W.G. Sebald nasceu em Wertach im Algau, na Alemanha, em 1944. Estudou Língua e Literatura Alemãs em Freiburg e em Manchester. A partir de 1970, ensinou na Universidade de East Anglia, em Norwich, tornando-se professor de Literatura Europeia, em 1987. De 1989 a 1994, foi o primeiro director do British Center for Literary Translation. A sua obra foi contemplada com numerosos prémios literários em vários países. Sebald faleceu tragicamente em Dezembro de 2001.
Síntese biográfica publicada na lombada de 'Os Emigrantes', Teorema

terça-feira, setembro 26, 2006

O Outro Lado (20) última imagem da série

Confessionário (29)

Meu Vítor,

Já leste O Aleph do Jorge Luis Borges? Se não, coloque-o na sua lista das coisas imprescindíveis.
Com o tempo, passei a perceber que todo grande tema gera um aleph, o princípio totalizante onde todas as abordagens e leituras são possíveis. Quanto maior, mais enriquecedor torna-se o processo de percepção e apreensão da realidade mágica.
O sofrimento imita o movimento da espiral – numa ponta está a loucura; na outra, a esperança. Para qual lado penderá o círculo interminável?
Racionalizamos a morte, o amor, a vida, o medo e tantas outras abstrações quando não estamos imersos nelas. Penso que esta é uma forte razão para desejarmos o olhar do outro sobre nossos problemas: não há perigo de nosso sangue quente derreter outras veias. O outro não queima na mesma fornalha.
O suicídio, por exemplo, pode ser pensado emocional ou racionalmente, tudo dependerá de qual lado da espiral estamos.
Ausentar-se da vida pode ser uma escolha, um ato de covardia ou de egoísmo. Quando o sofrimento pende para o lado da esperança, meu Vítor, a relação com o Divino tende a estreitar-se e quando isto acontece é impossível somente observar do lado de fora da porta. Como toda relação, esta também exige envolvimento e doação. É preciso fazer parte de para que a experiência torne-se enriquecedora.
Quem não mergulha de cabeça nos mistérios da vida nunca saberá o que acontece no seu interior. Muitas vezes manter-se a salvo significa perder-se.
Sabe, acho que isto foi o que aconteceu comigo, querido.
E. foi convidado a entrar, mas preferiu assistir a tudo do umbral. De onde estava podia ver tudo, mas ausentou-se de viver a experiência; nunca sentiu o que a vida ofertava-lhe. E isto também foi uma escolha, uma covardia e um ato egoísta.
Deus mostrou-me sua face inúmeras vezes. O João é a experiência palpável, uma realidade. Um soco no estômago da ciência e de suas irrefutáveis certezas.
Como Clarice Lispector, eu sempre acreditei no inesperado bom. Mesmo que eu esteja tão profundamente atingida pela loucura, a esperança continua a seduzir-me com sua dança hipnótica.
Eu? Eu não vou declinar do convite.

Teorias Amorosas (4)

Fodeu-me a noite inteira, sussurrando delícias e indecências entre dentes. Ofereceu-me, inclusive o Paraíso que aceitei sem hesitar.
Na manhã seguinte, jogou-me num beco escuro e sem saída. Na plaqueta de identificação lia-se: Jardim do Éden.

Teorias Amorosas (3)

Antes de sair, ele beija-lhe a testa:
- Feliz aniversário.
Ela sorrindo:
- Não demoro. Nos vemos logo mais.
À tardinha, ela volta com o vestido novo e vê o envelope sobre a cama.
“No começo dói, mas vai passar.”

Teorias Amorosas (2)

- O amor pode até acabar. É claro que isso não é bom, é triste, exige uma reeducação, um aprendizado de asas partidas.
- ...
- O que não pode nem deve acabar é a delicadeza do tempo, de tempos vividos.
- ...
- Garçon, um frisante.
- ?
- Brindarei às bolhas.
- O que tem elas?
- São como o fim do amor. Sentimos uma leve cócega ao final do gole que é para nos lembrar que não estamos de todo mortos.

Teorias Amorosas (1)

- Eu sempre acreditei que o amor era um objeto cortante...
- Como assim?
- Ao menor descuido perfura nosso coração.

Sintomático

Em decorrência das eleições gerais no Brasil, ontem, durante o horário político, ouvi essa pérola dita por um anônimo brasileiro:

Há três tipos de pessoas cuja palavra não se deve confiar: os bêbados, os apaixonados e os políticos.

P.S.: Analistas e cientistas políticos, rasguem seus diplomas. Há uma sabedoria encantadora na falta de conhecimento científico.
P.S2.: Sem mais comentários.

LADO B (24)


segunda-feira, setembro 25, 2006

janelas abertas (3)

M. é uma mulher de 72 anos. Não fala muito. Quem a conhece diz que gosta de se levantar muito cedo, aí pelas cinco horas da manhã, quando se ouve apenas o respirar da natureza. Toma um café bem quente e sai de casa ainda noite fechada enquanto os outros quinze habitantes da aldeia dormem. Pensa as galinhas, sega erva para os coelhos e ainda o sol não nasceu vai ao cemitério rezar pelos seus.
M. foi a salto para França em 70. Levava dois filhos pela mão, outro ainda no bucho, o dinheiro para o passador no soutien e no bolso da saia a morada de F., seu marido, emigrado dois anos antes para adiantar a vida.
M. não sabe ler nem escrever, fala apenas o português da terra e o francês que por lá desenrascou, mas diz quem a conhece que nas contas é infalível e que não há ninguém capaz de lhe dar a volta. Todos os anos, pelo Natal, telefona às madamas para quem fazia a ménage, todas muito bôs senhoras nas suas palavras e que lhe deram o pão e os trocos que foi juntando para construir a casa na aldeia.
M. volta do cemitério está o sol a lançar os primeiros raios sobre a serra. Acorda F. com um beijo e prepara-lhe o pequeno-almoço. Vai a casa do Ti Q., o parente mais velho da aldeia acamado há quase dois anos. Lava-o, muda-o, faz o almoço que lhe serve na boca e sai antes do meio-dia, depois de ligar o rádio a pilhas que o entretém durante a tarde. Ao cair da noite, antes de se sentar à mesa com F., corre de novo a casa do Ti Q. para lhe enfiar a sopa. Às dez horas mete-se na cama, enrosca-se em F. e espera por mais um dia.
Diz quem conhece M. que nada a faz mais feliz do que o 15 de Agosto quando os três filhos chegam de França para a romaria da aldeia. Espera-os todos os anos da mesma maneira, de pé, no início da única estrada que serve a terra, as mãos encostadas contra o peito, as lágrimas a correrem-lhe pela face e o coração aberto ao abraço tão desejado.

Sebald, Koudelka e o Exílio

Enquanto lia ‘Os Emigrantes’ do W. G. Sebald veio-me à lembrança um texto sobre a relação Invasão/Exílio que escrevi há coisa de um ano e pico a partir de uma fotografia do Josef Koudelka. Antes de qualquer conclusão sobre obra do escritor alemão gostaria de relançar o tema, na expectativa de que o assunto não morra aqui e seja tema de conversa no Sincronicidade durante os próximos dias.

Invasion by Warsaw Pact troops in front of the Radio headquarters, 1968, Praga, Rep. Checa, Josef Koudelka

Sobre uma Imagem de Josef Koudelka

Invasão: Acto ou efeito de invadir (…)”;
Invadir: 1. Entrar bruscamente, irromper; 2. Penetrar pela força e em grande número num país e ocupá-lo; 3. Espalhar em ou sobre alguma coisa; 4. Ganhar o espírito de alguém; 5. Monopolizar alguém ou o seu tempo.” [i]

Em Agosto de 1968 Josef Koudelka, fotógrafo checo, registou com a sua objectiva a invasão de Praga pelas tropas do extinto Pacto de Varsóvia. Ao recuarmos na história até ao momento preciso em que Koudelka congelou esta cena, apercebemo-nos da importância e da simbologia que uma fracção de segundo possui e como uma parcela tão curta de Tempo poderá dominar ou condicionar o próprio Tempo. Ora vejamos, Praga acabava de despertar da sua Primavera e ainda se sentia no ar o cheiro democrático das políticas reformistas de Dubcek; o povo, estalinizado desde o fim da Segunda Grande Guerra, redescobria o significado da Liberdade, entusiasmado pela rebeldia dos estudantes parisienses e pela utopia exalada nas flores e nos colares de missangas da juventude norte-americana; o mundo ocidental acreditava que o exemplo dos checos derrubaria o Muro mais cedo do que o previsto, a esperança reinava nas ruas de Praga e alastrava-se como um eco a todo o bloco ocidental. Tanta vontade, tanta esperança, tantos sonhos arruinados no preciso momento em que Koudelka dispara o obturador da sua lente, talvez ele próprio a mesma imagem indignada e revoltada do rapaz que “recebe” os soldados russos, um reflexo consternado no qual “the photographer engages us with a symbolic interval of his resistence as a fighter on behalf of the Dubcek liberalization” como faz crer Max Kozloff.[ii]
Se buscarmos uma interpretação política desta imagem retiraremos dela uma quantidade de significados, que vão desde anulação de valores como a identidade e a liberdade de um povo que é ocupado militarmente por outro, mais poderoso e cujas consequências se manifestam de modo quase irreversível durante o período de domínio e de ocupação; questionaremos se a identidade ideológica das personagens que a compõem corresponde à identidade política das facções que representam (acreditamos na revolta e na consternação do rapaz checo – o invadido – mas a mesma crença não será partilhada em relação ao soldado russo – o invasor – sentado na traseira do tanque de guerra, que parece executar uma ordem da qual não partilha acordo); questionaremos por fim a importância de momentos como o da fotografia de Koudelka, capazes de direccionar a História num ou noutro sentido como que perguntando: se a Primavera de Praga tivesse vingado, não teria o Muro de Berlim caído mais cedo e onde estaríamos nós agora, se o caminho percorrido pela humanidade tivesse atalhado o Tempo em Agosto de 1968?
A imagem de Koudelka é passível de todas as interpretações políticas descritas, bem como doutras deixadas para segundo plano deliberadamente. Muito provavelmente esta imagem atinge hoje uma conotação iconográfica e, partindo do pressuposto que estamos perante um ícone, ela não só simboliza um momento histórico específico – a invasão de Praga pelas tropas soviéticas – como todas as outras invasões militares, ou tão e somente a INVASÃO como acto ou conceito, onde algo ou alguém exerce um poder deliberado sobre outro que não o consente ou aceita. Como ícone, a imagem atinge “the feeling of strangeness that overcomes the actor before the camera […] basically of the same kind as the estrangement felt before one’s own image in the mirror”.[iii] Podendo esta imagem reflectida ser transportada, separada do contexto onde foi registada, independência essa conseguida pelo seu estatuto iconográfico, resta-lhe, como afirma W. Benjamim, a exibição perante o público, que reconhecerá não apenas o significado histórico que ela acondiciona como legitimamente lhe atribuirá um significado mais amplo e intimamente ligado ás suas próprias questões existenciais e filosóficas. Quer-se com isto dizer que, independentemente do conhecimento histórico do observador sobre o acontecimento decorrente da imagem, ele reconhece nela um significado – A INVASÃO, partilha a mesma consternação e a mesma raiva do INVADIDO e sente também a agressão e a violação do INVASOR. A imagem de Koudelka não representa só um acontecimento longínquo lá nos late sixties, ela confronta o observador com um acto que ele reconhece da sua rotina quotidiana – o acto de ser invadido, a sensação de que alguém lhe “ganhou o espírito”.[iv]
É, portanto sobre a Invasão enquanto conceito que nos fala a imagem de Koudelka. Fala-nos sobre o “triunfo da natureza mais baixa sobre a mais alta (…) da tirania do fraco sobre o forte” que Oscar Wilde refere numa das suas peças “como sendo a única tirania que perdura”.[v] A Invasão enquanto exercício deliberado do poder de um sobre o outro, sem permissão ou consentimento - a imposição de material bélico sobre uma nação ou a simples manipulação psicológica de um ser humano sobre outro, na qual o Invasor detém uma posição de conhecimento e domínio sobre os medos, as fobias e as inseguranças do Invadido e de forma deliberada os usa para diminuir o outro na sua personalidade e no seu carácter. É a imagem do triunfo da tirania sobre a liberdade e que só pode ser interrompida pelo Invadido, uma vez que o Invasor, conhecedor do poder que detém, dificilmente se desprende dele, pelo menos enquanto se mantém conhecedor daquilo que considera frágil no outro. Para aniquilar a Invasão, o Invadido tem três alternativas possíveis: tornar-se ele próprio num Invasor, num Resistente ou num Exilado.
Tornando-se num Invasor, aprende a jogar com as mesmas regras do Invasor, ou seja, inventa-as consoante a necessidade ou a conveniência, golpeando e sendo golpeado segundo o maior ou menor grau de distracção do outro. Talvez seja o percurso mais penoso e o sucesso depende sempre do desequilíbrio de uma das partes, começando o jogo sempre no prato mais baixo da balança para o Invadido, visto ter sido ele o primeiro a ser dominado.
O Resistente, combate a Invasão de forma heróica e altruísta. Sabe que o jogo é desigual mas o seu estoicismo acaba sempre por demover o Invasor, se não mais, apenas pelo cansaço.
O Exílio é a atitude dos homens livres, depende exclusivamente das decisões por eles tomadas assumindo que a sua força é suficiente para continuar o caminho. Ao afastarem-se do seu país, da sua terra ou de si próprios (como até então se conheciam) optam pelo caminho duro da solidão e arriscam-se a carregar consigo a eterna saudade da proveniência. Apesar de tudo escolhem sempre e por escolherem são terrivelmente livres. “Freedom of exile is of that lofty sort, though it is imposed by circumstances and, therefore, deprived of bathos. A brief formula may encapsule the outcome of that struggle with our own weakness: exile destroys, but if it fails to destroy you, it makes you stronger”[vi]. Sabemos que Josef Koudelka foi um Exilado. Talvez o rapaz da fotografia tenha sido um Resistente. Optemos sempre em LIBERDADE.

____________________
[i] Nova Enciclopédia Larousse, vol. 13, págs. 3837 e 3838
[ii] KOZLOFF, Max; “Lone visions, Crowded Frames – Koudelka’s Theater of Exile”
[iii] BENJAMIN, Walter; “The work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”, cap. X
[iv] Nova Enciclopédia Larousse, vol. 13, págs. 3837
[v] WILDE, Oscar; “De Profundis”, pág. 18
[vi] MILOSZ, Czeslaw; “Exiles – On Exile”

quinta-feira, setembro 21, 2006

quarta-feira, setembro 20, 2006

sublinhado (40)

Nos arquivos da Sociedade Britânica de Medicina, dizia a notícia, encontrava-se, por exemplo, a descrição de um caso extremo desse envenenamento em que o corpo de um assistente de um laboratório [de fotografia] de Manchester, nos anos 30, teria, ao cabo de anos de prática profissional, absorvido tanta prata que ele próprio se tornara uma espécie de chapa fotográfica, o que se confirmava, explicava-me Aurach com o ar mais sério do mundo, pelo facto de o rosto e as mãos do assistente se mostrarem azuis sob uma luz forte, ou seja, por assim dizer, se revelarem. (pág. 158)
Os Emigrantes (Teorema), W. G. Sebald

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (7)

sobre o amor:

se os meus olhos penetrarem bem fundo dentro de ti
e no lugar do coração eu encontrar uma pedra, se eu amar essa pedra,
se lhe tiver amor verdadeiramente, então terei sido salvo.
*

terça-feira, setembro 19, 2006

imagens que se colam ao peito (10)

Não sei o que me atrai naquela imagem do Henri Cartier-Bresson, a das três mulheres valencianas. Não apenas naquela imagem, mas em todas as que fez durante a Guerra Civil Espanhola. Parece-me uma realidade conhecida, próxima, como se fosse uma memória minha, um conjunto de situações e acontecimentos que eu próprio tivesse vivido de corpo presente. Sinto a mesma sensação quando vejo os filmes do Fellini ou leio a poesia do Tonino Guerra ou me passeio pelo Douro. Senti-o ao ler Sinais de Fogo do Jorge de Sena. As imagens, as palavras, os lugares, as pessoas pertencem-me, fazem parte da minha memória, não sei como, mas fazem…

Alicante, Espanha, 1933, Henri Cartier-Bresson

O Sob(re) a Pálpebra da Página faz 1 Ano. Parabéns Carlos!
*

LADO B (23)


janelas abertas (2)

J. é um rapazinho de 6 anos. É muito educado e respeitador, gosta de honrar os ensinamentos de sua mãe. Hoje, ao entrar na sala de aula alheio ao tumulto dos colegas que se empurravam na disputa da carteira mais distante da professora, as mãos tremiam-lhe e suavam. Sabia que tinha sido ele. Não tenho culpa, foi um acidente, obrigava-se a crer em si próprio.
J. procurou um lugar vago, caminhou pela sala e em silêncio sentou-se ao lado de L.. Olhou-a na expectativa de algum conforto mas L. permanecia fria e imóvel como o resto da turma. J. levantou de novo os olhos e reparou que A. se aproximava da secretária da professora com uma bola de lona laranja furada na mão. Fui eu, pensava. A. entregou a bola à professora e apontou o braço na direcção de J. gritando convictamente, foi ele!
J. que honra os ensinamentos de sua mãe, baixou a cabeça e olhou fixamente o chão. Sentia medo e culpa. A professora caminhou na sua direcção segurando a bola de lona laranja furada na mão. Apontou-lhe um dedo flácido e amarelo à cabeça e num grito exigiu-lhe uma satisfação.
J. não ousou levantar a cabeça. As pernas tremiam-lhe. Obrigava-se ao silêncio, sabia que devia honrar os ensinamentos de sua mãe. De olhar cativo no chão, sentiu que um lago amarelo lhe nascia pelas pernas e se desenhava redondo no ângulo agudo formado pelas suas botas castanhas.

segunda-feira, setembro 18, 2006

sublinhado (39)

O meu tio-avô refere também que na véspera, nas últimas horas da tarde, começava a nevar e que ver, pela janela do hotel, a cidade branca suspensa na sombra nascente do crepúsculo, o levara a pensar muito no passado. Recordar, acrescenta ele num post-scriptum, parece-me muitas vezes uma espécie de estupidez. Faz-nos a cabeça pesada, tonturas, como se não olhássemos para trás pelas vias do tempo volvido, mas caíssemos ao chão de uma dessas torres que se perdem nas nuvens. (pág. 139)
Os Emigrantes (Teorema), W. G. Sebald

eu sabia que alguém tinha dito o mesmo...

Es maravillosa esa mezcla de horror y de felicidad. Como si tus personajes supieran encontrar en medio del infierno, como quería Calvino, aquello que no es infierno, y se las arreglaran siempre para hacerlo durar en sus vidas. Esa mezcla tan tuya de candor y perversidad, que hace graciosas las cosas más tremendas y acierta a encontrar la belleza y la esperanza donde parece que no pueden existir, me parece una de las cosas más maravillosas de tu cine.
Gustavo Martín Garzo em carta a Pedro Almodóvar
Este excerto da carta que Gustavo Martín Garzo escreveu a Pedro Almodóvar após ter lido o guião de 'Volver' diz, de forma muito clara e objectiva, aquilo que eu queria dizer no post anterior. Para além disso é também um pretexto para publicar a fotografia de Carmen Maura em cima... fiquei num dilema quando escolhia a foto para acompanhar o post anterior... não resisti a publicar as duas...

'Volver'

Confesso que sou fã do cinema de Almodóvar, portanto, qualquer coisa que eu possa escrever sobre “Volver”, o seu último filme, pode mostrar-se, ou até mesmo ser tendenciosa.
Não vale a pena falar sobre aquilo que toda a gente sabe: que o filme é um retorno do cineasta ao universo feminino, a um mundo quase sem homens, onde as mulheres conduzem à força do carácter os seus destinos e os destinos da família. Agrada-me especialmente a imagem da mulher ‘terra’, a mulher cuja força não vem de outro lado que do seu próprio interior, do sangue que lhe corre nas veias, tão bem representada neste filme pela impetuosidade de Penélope Cruz e o olhar intenso de Carmen Maura. Agrada-me sobretudo a representatividade desta imagem de mulher, a sobrevivente, a Gradisca de Fellini, a mulher mediterrânica cujos seios bem avantajados são a melhor metáfora da sua força, agrada-me até porque vivi e vivo e rodeado delas - a história da minha família é uma história de mulheres deste calibre.
O filme começa com uma cena no cemitério, onde as mulheres lavam e enfeitam as campas dos maridos, num dia de vento que mais parece significar uma revolta dos mortos. Almodóvar condensa nos dois ou três primeiros minutos do filme os ingredientes da história: as mulheres como as células da família, sobreviventes aos homens e cuja sorte se encarrega de as fazer cúmplices, e a ideia do fantasma, das histórias não resolvidas, da vontade de fazer as pazes com o passado, um passado ‘kármico’ que se renova e se repete continuamente de geração em geração. Uma cena é suficiente para apresentar a história e conter em si todos esses significados. Na hora e meia que se lhe segue, Almodóvar encarrega-se ‘apenas’ de aperfeiçoar o drama, de o tornar específico, expondo-o e dissecando-o de todos os ângulos.
Há uma característica no seu cinema que me agrada particularmente e que neste filme ele desenvolve de forma ainda mais perfeita, a capacidade de aproximar a tragédia da comédia. Se analisarmos os seus guiões verificamos que eles apresentam uma carga trágica incrível, são duros, cruéis, nas suas histórias não há uma segunda opção, as narrativas apresentam sempre uma espécie de fatalidade, um pouco à semelhança da vida por muito que isso nos custe. No entanto, Almodóvar acaba sempre por transformar essa carga trágica num acontecimento natural e fá-lo sempre recorrendo ao humor, ao caricato, ao insólito. Eu sou daqueles que acredita que a tragédia e a comédia se tocam continuamente. Ao contrário daquilo que se possa pensar, brincar com situações dramáticas, aligeirá-las, não representa desrespeito ou leviandade, mas antes uma atitude humilde perante a tragédia, perante o irremediável. Não há forma de apagar o passado, mas há a possibilidade de conviver melhor com ele, creio que o humor é um bom caminho.
A propósito do que acabo de escrever lembro-me de um diálogo entre a minha mãe e a minha bisavó, teria eu uns 5 ou 6 anos de idade, em que a minha bisavó, já com os seus oitenta e muitos mas ainda muito lúcida, afagando as lágrimas da cara da minha mãe lhe dizia: “não chores meu filhinho (ela usava a expressão sempre na forma masculina, vá-se lá saber porquê), não chores que estragas a tua carinha linda. Sabes, o teu avozinho também era assim malandro, fez-me a vida num caco… mas olha, morreu, fodeu-se… e eu ainda aqui estou para fazer a minha vidinha. Porque este mundo é muito bonito, meu filhinho… isto passa tudo muito rápido, meu filhinho… e se Deus nosso Senhor quisesse, não me importava de ficar para semente… isto é tudo tão bonito, meu filhinho, tão bonito. Pensa nos teus filhotes e em pôr-te bonita, assim como eu, meu filhinho… ou não gostas de me ver assim, sem o lenço preto na cabeça?” (Ela recusava-se a usar o véu preto na cabeça, o que para a sua idade e para a sua geração era uma espécie de excentricidade.) Sempre que a minha mãe repete esta história, rimo-nos imenso e sai-nos esta frase da boca: “ela é que a levava!”

domingo, setembro 17, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (6)

sobre a saudade:

ver-te desse lado da câmara deveria significar o fim do oceano,
a erosão dos morros que te envolvem, trazer-te a mim.
pelo contrário. faz crescer no peito um espasmo que ainda agora começou.
*

sexta-feira, setembro 15, 2006

Poema

Cumpridos os deveres compridos deixaram
De assediar minhas horas

Doce a liberdade retoma em si minha leveza antiga

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética III (Caminho)

Da Irracionalidade

Há coisas inexplicáveis, coincidências que ultrapassam qualquer tipo de lógica. No dia 7 deste mês publiquei um pequeno texto (um daqueles tercetos) sobre o suicídio. O tema do terceto não surgiu por acaso. Soube por pessoas amigas que um acidente desses se tinha dado com alguém que eu não privava mas que conhecia de vista. A notícia não me saiu da cabeça durante dias. Do dia 10 para o dia 11 assisti a um documentário na televisão sobre os jumpers do WTC. O assunto voltou ao de cima e publiquei aquela reflexão sobre a fotografia do Richard Drew. A leitura que andava a fazer de Simone Weil voltava a fazer-me reflectir sobre o assunto, o seu pensamento em relação à dor e ao sofrimento, a ligação de tudo isto com o divino traziam-me novas coordenadas para a equação. De seguida a Lu escreve aquele post cheio de perguntas pertinentes obrigando-me a raciocínios que eu nem tinha formulado. Pouco depois de ter lido o post da Lu, numa visita ao Insónia, encontro um texto sobre um filme do Kiarostami onde a certa altura aparece esta frase de Kirilov: «Aqueles que se matam por loucura ou desespero, não pensam no sofrimento. Mas os que se matam por raciocínio, pensam demasiadamente nele.» Pensava eu que as coincidências tinham ficado por aí. Ontem, pousei o livro de Simone Weil na estante e percorri-a com o olhar à espera que outro livro me chamasse. Tinham-me oferecido “Os Emigrantes” do W. G. Sebald em Maio deste ano. Eu tinha lido “Austerlitz” e tinha-me entretido, decidi então que seria esse o livro que iria começar a ler. Agora pasmem! Os dois primeiros personagens do livro suicidam-se, um em cada capítulo. Como só li os dois primeiros não sei o que me espera, mas imagino.

O Dr. Selwyn, depois desta visita, passou a vir a nossa casa cada vez mais espaçadamente. Vimo-lo pela última vez no dia em que levou a Clara um ramo de rosas brancas entrelaçadas com gavinhas de madressilva, pouco antes de partirmos de férias para França. Poucas semanas depois, no fim do Verão, pôs termo à vida com a sua grande espingarda de caça. (pág. 25)

Em Janeiro de 1984 chegou-me, vinda de S., a notícia de que Paul Bereyter, com quem fiz a escola primária, tinha, na tarde do dia 30 de Dezembro, portanto uma semana após ter feito 74 anos, posto termo à vida, para o que, a pouca distância de S., onde a linha férrea encurva para sair de um pequeno bosque de salgueiros e entrar em campo aberto, foi deitar-se diante do comboio. (pág. 29)
Os Emigrantes (Teorema), W. G. Sebald

O Outro Lado (18)

quinta-feira, setembro 14, 2006

Eu sempre acreditei que a Arte abarca toda a dimensão da vida, imprimindo sentidos, signos, interpretações e respondendo a muitas inquietações.
Ao ler o post que o Vítor publicou sobre o suicídio e todas as questões e reflexões que ele evoca a partir de uma fotografia, lembrei-me imediatamente de uma outra imagem: a explosão da Challenger.
Fiquei apavorada com os sentimentos que ecoaram em mim: tristeza, comoção, compaixão, solidariedade e beleza. Como eu achei belo aquela nave virando uma densa nuvem branca, parecia um espetáculo aéreo e, na verdade, aquilo era uma tragédia.
Naquela época, eu concluí (apenas para mim, é claro) que o terror, a morte, a dor possuem uma estética profunda, pungente, tocante.
Tive receio de compartilhar isso com meus pares e ser tomada por louca, sádica ou amoral, mas a História está repleta dessas “belas” tragédias: Pompéia, Atlântida, os carvoeiros da Revolução Industrial, os rebeldes da Revolução Francesa... atualmente tem o WTC, o retrato da fome e da miséria feito por Sebastião Salgado.
Refletindo sobre isso, eu trouxe para mim algum conforto ao diferenciar as coisas. Existe, sim, por mais perverso que seja (e é), uma estética na morte, na dor, ou seja, in loco. Caso contrário, seríamos seres desprovidos de sensibilidade e incapazes de reverter os quadros de dores em esperança; seríamos absorvidos pela dureza.
A estética na é diferente da estética de. Essa alimenta-se das tragédias e as reproduz, perpetuando-se no tempo. Aquela desperta a mente, deixa-nos alertas para que não compactuemos com tudo que é daninho.
Bem, isso foi a primeira coisa que pensei ao ler-te, meu Vítor. A questão da estética e da culpa. A segunda trata-se das escolhas e da liberdade de escolhas.
Concordo contigo em muitos aspectos, mas gostaria de lançar uma sementinha de provocação.
Penso que o suicídio é um ato extremo. Imagino em que mar de desespero está lançada uma alma que decide pela morte. Nesse momento, nada nem ninguém faz diferença, esgotaram-se todas as possibilidades. Nessa situação limítrofe, existe mesmo uma escolha? Acho que não. Se ela pudesse, tivesse forças, acredito que escolheria viver, ser feliz, sorrir.
Quando tudo o que resta é morrer é porque não há escolhas. Não sei se a pessoa, nesse caso, escolhe pela liberdade eterna. Liberdade no sentido amplo e maravilhoso que sei que tu entendes (bem como eu e muitos dos nossos amigos).
Um suicida deve pensar em parar de sentir e a liberdade profunda almeja sentir e desfrutar de tudo. Acho que o dilema de um suicida não é ser ou não livre; ter ou não liberdade, mas, sim, suportar ou não a dor.
Depois que li teu último quote da Simone Weil, isso ficou mais claro para mim em todas as dimensões. A dor é a prova de que estamos vivos, é como ser beliscado para sair do transe e, entenda, não estou fazendo apologia à dor. Eu preferiria mil vezes não passar por tantas dores como as que tenho vivido nos últimos meses e tu sabes de todas elas.
No olho do furacão, eu pensei cá comigo: a morte resolveria todas as minhas dores, mas não resolveria as saudades, o apego aos amigos e família, o amor pelo João, a lacuna deixada pelo abraço irrealizado no verão de 2007.
Nesse ponto, a dor é útil, é a grande virada, o momento catártico, é a hora do basta, it’s enough!
Não há liberdade de escolha, mas um cárcere insuportável. A decisão de pôr fim a tudo não se dá no momento de luminosa liberdade, mas de cárcere sombrio.
Toda vez que penso num suicida, vem à tona a cena de uma pessoa numa ponte estreita. De um lado, encontra-se um leão faminto; do outro, um canibal voraz e abaixo um penhasco imensurável.
Que escolha essa pessoa tem? Qual a saída?
O medo mata a esperança do milagre, da possibilidade... mas isso também já é uma outra conversa.

P.S.: Meu Vítor, estou aqui acreditando no milagre e trabalhando para que ele aconteça. Quero que saibas que já consigo ver um bravo caçador por trás do leão. Na verdade, uma domadora chamada Cecília.

Esperar do lado de fora

Não se pode concordar com tudo o que Simone Weil escreve em “Espera de Deus”, seria como entrar por um caminho tortuoso e agreste, possivelmente inundado de luz como única contrapartida se possuíssemos uma robustez de espírito digna de a apreciar. A recusa de Weil de entrar na Igreja Católica, a sua ‘espera’ do lado de fora, observando, compreendendo, pesquisando, pode muito bem ser a metáfora do nosso comportamento enquanto leitores e testemunhas do seu raciocínio. Ao ler Weil, fico como ela, quase sempre à porta, fascinado pela mente, pelas ideias, até pelos radicalismos e pontos de não retorno, mas não arrisco entrar no seu pensamento. Seria demasiado perigoso.
A imagem do Cristo crucificado sempre foi algo que me causou muita impressão desde novo. Nunca tinha pensado na Cruz de Cristo como ‘a própria necessidade posta em contacto com o mais baixo e o mais alto de nós mesmos, com a sensibilidade carnal pela evocação do sofrimento físico, com o amor sobrenatural pela presença de Deus.’ Para Weil, o encontro com Deus só poderá acontecer através do Amor, e aquele que ama debaixo de uma dor física intensa e prolongada (para ela a única dor que a nossa sensibilidade não tolera, a única que a nossa natureza não aceita), aquele que é capaz de amar quando se vê transformado numa espécie de animal ‘paralisado e completamente repugnante’, é o mais digno representante de Deus, ele é a própria encarnação do Amor. Segundo a lógica de Weil, a Cruz de Cristo encerra em si própria todos esses significados, ela representa o sofrimento físico duro e prolongado e a capacidade de amar infinitamente nas condições mais insuportáveis e intoleráveis. ‘A infelicidade numa só coisa permite consentir, na contemplação da Cruz de Cristo’ como o exemplo de amor supremo e universal – amar quando não se é nada, quando o sofrimento apagou em nós qualquer vestígio da personalidade. É insuportável o raciocínio de Weil, remete-nos para aquela ideia muito cristã de que só se chega ao verdadeiro Amor (e para ela Amor é Deus) através do sofrimento, seguindo o exemplo do Cristo na Cruz. Mas uma coisa não deixa de fazer sentido, se formos capazes de amar na completa adversidade, se formos capazes de reconhecer a beleza do mundo quando o sofrimento nos fez esquecer de nós próprios e da nossa personalidade, então é porque atingimos um estado mais elevado de existência, então é porque percebemos o sentido e o significado do ‘amor universal’; o amor que Weil chama de Deus e Verdade. O que me assusta em todo este raciocínio é a necessidade de extremar as possibilidades, a vontade de as levar ao cúmulo, a ideia platónica de um virtuosismo ascético, confirmado ao longo de todo o livro pela a admiração dos exemplos de S. Francisco de Assis e S. João da Cruz. Tenho dúvidas quanto à necessidade de um processo tão radical. É por isto que ler Weil se torna perigoso, apesar do fascínio e da identificação com muitas das suas ideias (acho que nunca transcrevi para o blogue tantos parágrafos como durante a leitura deste livro). Como Roberto Calasso diz na contracapa do livro, 'estamos perante algo de que muitos poderiam mesmo ter perdido a memória: um pensamento ao mesmo tempo transparente e duro como um diamante, um pensamento concentrado num débil feixe de palavras.'

janelas abertas (1)

M.A. é uma mulher de 35 anos. Por volta das seis da tarde quando regressava do trabalho, lembrou-se que deveria passar pelo supermercado. Tinha-se esquecido de comprar ovos e farinha na compra do mês e hoje queria oferecer um bolo a si própria. Há muito tempo que não fazia um bolo.
M.A. não tem família. Vive sozinha desde a morte da mãe. O pai nunca conheceu. Homens também não. Gosta de coisas simples, do gato, dos vasos que rega diariamente, do sol, e de vez em quando de fazer bolos. Agrada-lhe o tempo de espera enquanto o bolo coze. É como se sentisse que mesmo seguindo rigorosamente as receitas, os resultados não dependessem exclusivamente de si. Quando abre o forno e se depara com a forma e o cheiro final é sempre um momento de grande satisfação, até nas ocasiões em que o resultado não é o mais desejado. M.A. é daquelas pessoas que acha que nada acontece por acaso e que para tudo há uma solução, e portanto, não se aborrece quando o bolo sai do forno completamente queimado.
As amigas estão quase todas casadas. Algumas já têm filhos. No trabalho perguntam-lhe dia sim, dia não se já arranjou namorado. M.A. responde-lhes que se está solteira é porque Deus assim quer e que se sente feliz com a vida que tem. Esperar não é coisa que lhe cause angústia.

quarta-feira, setembro 13, 2006

vertigem

...não sei se aguento por muito tempo a fotografia do Richard Drew publicada no blog (num post em baixo). sempre que faço um scroll da página tenho a sensação que o corpo em queda ganha velocidade... é pavoroso...

imagens que se colam ao peito (9)

American Beauty, 1999, Sam Mendes

sublinhado (38)

A beleza do mundo não é um atributo da matéria em si mesma. É uma relação do mundo com a nossa sensibilidade, essa sensibilidade que se liga à estrutura do nosso corpo e da nossa alma. (pág. 168)
A beleza é a única finalidade neste mundo. Como Kant bem disse, é uma finalidade que não contém qualquer fim. Uma coisa bela não contém qualquer bem senão ela mesma na sua totalidade, tal como nos surge. Nós dirigimo-nos para ela sem saber o que lhe pedir. Ela oferece-nos a sua própria existência. Nós não desejamos outra coisa, possuímo-la, e contudo desejamos ainda. (pág. 170)
Espera de Deus (Assírio & Alvim), Simone Weil

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (5)

sobre a dor:

quando chegar o dia que não permite a dor
o mundo ter-se-á transformado num local inóspito e estéril.
a vida é suficientemente generosa para aguentar o seu peso.
*

LADO B (22)


...ainda sobre os modernos

Vista interior de um apartamento, Cité Radieuse, 1953, Marselha, França, Le Corbusier
A dúvida questionava o carácter revolucionário (ou não) do Modernismo enquanto estilo, e se existiria (ou não) corte epistemológico com a história. Há quem defenda que o Modernismo não é mais do que a “cristalização dos sintomas que desde o Renascimento se fizeram sentir”, o que tem a sua lógica, até porque nenhum estilo ou corrente artística se faz em tabula rasa, é sempre o produto, o somatório, a “cristalização” ou condensação de uma série de condicionantes, que em determinado intervalo de tempo parecem fazer sentido como resposta aos problemas e necessidades que lhe são impostas. (Por essa ordem de ideias não haveria nunca corte epistemológico de qualquer movimento artístico com a história, até porque todos nascem da história. Nem mesmo Michelangelo “às suas costas e às suas custas” o conseguiria fazer.) Outros há, como eu, com dúvidas acerca desse carácter diluído e disseminado do Modernismo na história, assim como da sua atitude não revolucionária.
Façamos novamente a pergunta: o Modernismo constitui ou não uma Revolução?
Se exceptuarmos o argumento que usei atrás, de que qualquer movimento artístico é um produto da história, excluindo, portanto, a possibilidade de um corte epistemológico com ela, existem ainda assim várias hipóteses que nos levam a crer que o Modernismo constituiu realmente uma Revolução.
Algumas delas já foram enumeradas pelo António no ‘odespropósito’ quando destaca alguns autores independentes e anteriores ao movimento como A. Loos, Voysey ou Plecnik como “feridas aberta(s) na linearidade da leitura da história”. Podíamos ainda falar do espírito corporativo e associativo dos arquitectos modernistas, da sua ortodoxia, dos seus princípios, da ambição de criarem uma arquitectura iminentemente nova, a primeira a condensar em si os ideais iluministas de Kant e Rousseau e as preocupações ideológicas (à esquerda e à direita) de uma sociedade industrializada. Mas, o que na minha opinião faz do Modernismo um movimento revolucionário é exactamente o que faz de qualquer outro estilo uma revolução: uma abordagem espacial iminentemente nova. O JMAC, que defende o carácter não revolucionário do Modernismo, num dos seus textos do HardBlog toma este argumento como válido em relação ao Gótico: “Confirmar o Gótico, que, mais que um estilo, seria um “sistema construtivo”, que articulava as necessidades espirituais com as possibilidades construtivas. Sem fazer épicas digressões históricas mas dando uso a uma fina inteligência intuitiva que ainda hoje surpreende.
A revolução modernista está muito mais nas características dos seus espaços do que na vontade de romper com o passado ou nos discursos eloquentes e reaccionários dos seus precursores. O espaço modernista é o espaço específico por natureza, a forma existe para responder à função (seja ela material ou ideológica). O Siza, ainda na última entrevista ao JA, dizia isto muito claramente quando comparava os espaços modernos à casa palladiana: “O Movimento Moderno estabeleceu – a partir de um ponto de vista analítico e cientifico – os usos com uma especialização total. Tudo estava sujeito aos movimentos interiores e aos equipamentos domésticos necessários. Na casa palladiana não há especialização dos espaços, logo existe uma grande flexibilidade”. A verdadeira revolução dos modernos, na minha opinião, nasce a partir desta tipologia espacial verdadeiramente nova e em ruptura com o passado. O espaço doméstico moderno, e centremo-nos apenas nesta tipologia para não dispersar, é significativamente diferente dos anteriores. É o espaço que pede ao observador um cálculo em vez de uma emoção, uma avaliação objectiva em vez de uma atitude subjectiva de admiração como diz Benévolo num dos seus livros. Não estamos neste momento a estabelecer qualquer juízo sobre as aptidões ou falhanços da arquitectura moderna, seria uma outra conversa. A revolução é exactamente a tal “especialização moderna” dos espaços, o funcionalismo, o racionalismo abstracto, o ‘modulor’ e menos o carácter panfletário e propagandista de Le Corbusier ou dos mestres da Bauhaus.
Esta conversa fez-me lembrar de uma aula com o professor H. Bonifácio onde se colocava a questão de o Manuelino poder ou não ser considerado um estilo arquitectónico independente ou se deveria ser considerado um Gótico tardio. Depois de analisarmos os Jerónimos, uma análise profunda sobre o espaço, sem nos preocuparmos com as decorações alusivas às descobertas ou às proezas nacionais, chegamos à conclusão que o edifício, era ele próprio, uma revolução.

segunda-feira, setembro 11, 2006

este não é um post fácil


"The Falling Man", 11 de Setembro de 2001, Richard Drew

Esta é uma daquelas imagens que exerce sobre mim emoções tão ambíguas que, falar sobre ela, analisá-la, se torna num exercício penoso, incongruente e difícil de suportar.
Não conheço ninguém que não saiba o que estava a fazer no dia em que foi captada. O mundo mudou. Não sabemos muito bem no que se tornou a partir daí, mas sabemos que mudou. Sabemos que vivemos com medo e sabemos que hoje somos menos livres. Só existem dois limitadores da Liberdade: o Medo e a Culpa.
Não gosto de cair em julgamentos fáceis sobre o suicídio, até porque o suicídio em si não é nunca uma decisão fácil. Há liberdades que fazem parte da esfera individual de cada um, o suicídio é uma delas, e se há alguém que decide usufruir dessa liberdade, algum motivo, alguma razão, por incompreensível que nos possa parecer, deverá existir. A incompreensão não invalida o respeito pelo outro e, se realmente formos dignos desse respeito, não haverá da nossa parte qualquer julgamento ou juízo de valor. Tenho sobre o homem retratado em “The Falling Man” esse tipo de respeito.
Sei que sou capaz de compreender que alguém assuma a responsabilidade e o controlo da sua própria vida, mas não sei se compreendo a mesma responsabilidade e o mesmo controlo sobre o fim dela. Pensar se sou ou não capaz de o fazer é qualquer coisa que me assusta e me cria pânico, pela simples razão de abalar a minha estrutura e os meus princípios enquanto ser vivo. Mas quando olho a tranquilidade daquele corpo em queda e sinto que aqueles segundos significaram a libertação de alguém obrigado a viver um inferno que não construiu ou desejou, cresce-me uma espécie de cumplicidade desconfortável, como se numa situação semelhante eu fosse capaz de desejar o mesmo.
Houve alguém que investigou a identidade do homem retratado. Não sei se ver cumprido o desejo lhe trouxe alguma satisfação. Indo em sentido contrário àquilo em que acredito e que tenho como valor essencial e inabalável, a VIDA, “The Falling Man”, para mim, representa escolher a Liberdade à tirania do Medo imposta pela maldade deliberada, ainda que escolher, signifique ser-se livre apenas por 4 ou 5 segundos.
Porque não esquecemos e não podemos esquecer.

sábado, setembro 09, 2006

Da esperança

Janeiro, além de cheiro de verão e da esperança alvissareira dos começos, tem também o sabor do abraço fraterno tão avidamente acalentado.

sexta-feira, setembro 08, 2006

O Outro Lado (17)

quinta-feira, setembro 07, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (4)

sobre o suicídio:

dizer que se deseja pôr termo à vida
é atoarda indigna até ao mais reles dos covardes.
já matá-la, é um caso de ter ou não ter tomates.
*

sublinhado (37)

Fomos nós que inventámos a distinção entre a justiça e a caridade. É fácil compreender porquê. A nossa noção de justiça dispensa aquele que possui de dar. Se ele dá não obstante, crê sentir-se satisfeito consigo mesmo. Pensa ter feito uma boa obra. Quanto àquele que recebe, consoante o modo como entende essa noção, ou esta o dispensa de toda a gratidão, ou o constrange a agradecer de forma indigna. (pág. 147)
Espera de Deus (Assírio & Alvim), Simone Weil



um concerto soberbo!
a agripina diz algumas das coisas que eu queria dizer, mas como hoje estou preguiçoso, a MM que me perdoe, fico-me pelo elogio banalíssimo (apesar das emoções ainda revirarem por dentro)

quarta-feira, setembro 06, 2006

O diário de G.H (7)

Finalmente aceitei o encontro.
Preparei o banho tendo o cuidado de deixar o vapor tomar conta. Mergulhei na banheira disposta a deixar na água todos os meus medos. Eles escoariam pelo ralo e pronto. Seríamos eu e ela.
Habituei-me a chamá-la assim: ela. Não sabia de quem se tratava, mas estava certa do seu gênero.
Encarei o espelho prestando atenção na umidade que escorria por ele e pelas paredes. Não pude conter o gesto. Toquei no seu ‘suor’ e levei a ponta dos dedos aos lábios: tinha gosto de sal.
Passei a mão pela superfície lisa e a imagem dela surgiu. Ela é... ela sou eu! Não escondi o espanto, mas a imagem não respondia aos meus movimentos e expressões, permanecia imóvel, impassível, olhos oblíquos.
Como se lesse meus pensamentos, deixou transparecer sua inquietude e voltou a cabeça em direção ao seu peito.
Esfreguei novamente o espelho e vi aquilo com olhos surpreendidos e admirados. Ela tinha um buraco enorme vazando seu corpo, no peito, exatamente entre os seios.
Estendi meu braço a fim de alcançar sua ferida e de repente a imagem não estava mais lá.

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (3)

sobre os dias:

sinto a vida como uma casa sem telhado:
as horas como paredes desbotadas pela chuva,
os dias como um choro de cal que tinge de branco o chão
*

terça-feira, setembro 05, 2006

imagens que se colam ao peito (8)

"La Baignade", 1937, Óleo, crayon conté e carvão sobre tela, Peggy Guggenheim, Veneza, Itália, Pablo Picasso
É difícil esquecer o impacto de o ver pela primeira vez à entrada do Peggy. Da segunda vez foi ainda mais forte. Hoje senti muita vontade de trazer ao presente essas emoções.

É interessante analisar o vaivém da blogosfera. Blogues que visitávamos todos os dias e que deixámos de visitar, pessoas que nos visitavam e que deixaram de o fazer, novas afinidades, novos desencontros, é tudo tão parecido com vida, as pessoas aproximam-se ou afastam-se num fluxo tão natural como o equilíbrio energético de uma célula. De todos há sempre aqueles que persistem, vá-se lá saber porquê. Por esses, porque nos dizem que não falamos no vazio, porque nos permitem a sua companhia, esta história vale a pena.

“Lar doce Lar”

No último número do Jornal dos Arquitectos, o “Vírus”, secção editada por uma equipa exterior ao jornal mas escolhida pela direcção e pelos editores do JA, apresenta os resultados de um questionário sobre a “Morada”, tema central desta edição. O autor do “Vírus”, João Bártolo, diz-nos no texto que introduz o questionário, que “a escolha dos questionados tentou ser o mais diversa, dentro do espaço possível” das “16 páginas” que constituem o caderno. Uma das questões colocadas é a actividade profissional dos inquiridos. Passo a enumerar as respostas: Fotógrafa; Assistente Administrativa; Conservadora de Museus; Professor do 2º Ciclo da disciplina de Educação Visual e Tecnológica; Estudante PhD; Reformada da Função Pública; Actor/Escritor; Professora/Produtora Cultural; Licenciado em Direito; Artista/Designer/Professora; Escritora Freelancer; Ocioso; ou seja, actividades profissionais que representam de forma significativa o panorama socio-económico português. Honestamente, um questionário aos ‘amigos’ não pode nunca ser um objecto de estudo rigoroso digno de qualquer tipo de conclusão por parte dos leitores. Ás vezes pretendem-se artigos mais sérios e idóneos.

LADO B (21)


segunda-feira, setembro 04, 2006

MINGUANTE

A Minguante é uma revista literária on-line. Vai no número 1, o segundo. Já tive vontade de fazer referência a este último número, até porque está on-line há umas semanas, mas decidi que só o faria quando tivesse tempo de o ler e de recolher dois ou três textos que me falassem de perto. Hoje, tive oportunidade de vasculhar a Minguante, e do "banal" ficaram-me os textos do José Manuel e da Maria João Fernandes.
Pelo que disse o Henrique, o próximo tema será o "azul"

sábado, setembro 02, 2006

Simone Weil

O raciocínio de Simone Weil é tão veloz que, a leitura não interrompida de dez ou quinze páginas dos seus escritos, se torna tão difícil de assimilar como se nos propuséssemos a interiorizar itens seguidos de uma enciclopédia. Mas se no final desse esforço, e se o tivermos feito com atenção* (no mesmo sentido que Weil disserta sobre a atenção), veremos as nossas limitções recompensadas e, sobretudo, a nossa alma um pouco mais tranquila.

*Vinte minutos de atenção intensa e sem fadiga valem infinitamente mais do que três horas dessa aplicação de sobrolho franzido que faz dizer com o sentimento do dever cumprido: “trabalhei bem”.
Espera de Deus (Assírio & Alvim), Simone Weil

sexta-feira, setembro 01, 2006

O Outro Lado (16)

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (2)

sobre o silêncio:

há horas em que o silêncio me atropela
como uma locomotiva viajando a alta velocidade,
o impacto significa quase sempre uma morte
*