terça-feira, janeiro 30, 2007

confessionário (40)

Crimes de la Commune: Le Massacre des dominicains d'Arcueil, le 25mai 1871,
Photomontage destiné à la propagande Versaillaise,
Eugène Appert

Minha querida, no último e-mail que me enviaste, a certa altura dizias que tinha sido uma sorte termo-nos encontrado e que uma amizade sincera poderia nascer e sustentar-se através de um meio cada vez mais perigoso onde o indivíduo real parece ter sido substituído por personagens talhados à medida das conveniências, dos medos, dos anseios e das fobias. Não quero cair no erro de tecer juízos de valor em relação a pessoas que não conheço ou basear a minha opinião em narrativas mais ou menos indignadas que vou lendo em blogues que visito diariamente. O que me preocupa realmente não é o maior ou menor grau de sordidez das novelas blogosféricas mas o que elas determinam como consequência. Entra-se num mundo onde a desconfiança se impõe como a única arma usada em legítima defesa na relação com o outro. Confiar torna-se um risco e confiar mal uma factura com preço demasiado alto a pagar. ‘Don’t trust nobody!’ como dizia o Henrique noutro dia no Insónia parece-me ser a atitude mais sensata a adoptar nos dias que correm. É triste que se entreponha esse ‘don’t trust’ naquilo que nos liga ao outro mas talvez seja a única forma de salvaguardarmos o que ainda resta em nós de integridade, dignidade e amor-próprio.
A Maria João tem levantado muitas questões pertinentes nos textos da série ‘Perguntar Ofende?’. O último questionava o poder das imagens e da sua manipulação. Transcrevo: “A primeira vez que observei as fotografias deste livro, fiquei cheia de medo; porque foi possível apagar pessoas de fotografias, retocando-as manualmente com tinta de forma a que elas continuassem a ter uma certa verosimilhança, com meios rudimentares.”; foi possível perverter a História, reconstruir os factos ainda que momentaneamente, já que as falsificações não conseguiram apagar os crimes que Estaline impregnou na pele daquela gente. Os ditadores soviéticos não foram os únicos a usar o seu poder para reescrever a história. A falsificação de imagens é quase tão antiga como a própria história da fotografia. A primeira fotografia reconhecida é uma imagem de Niépce de 1825. Em 1871, ou seja 46 anos depois, é publicada por Eugène Appert uma série de imagens manipuladas anti-communards intitulada ‘Crimes de la Commune’. A mais célebre dessas imagens retrata o 'massacre' (se é que foi realmente um massacre) levado a cabo pela Comuna contra os dominicanos de Arcueill a 25 de Maio de 1871. A pedido de Thiers, Appert fez multiplicar os elementos da Comuna na imagem e inseriu alguns frades em súplicas mártires de forma a dramatizar a cena e evidenciar o carácter sanguinário dos communards. Todos estes acontecimentos desenvolveram-se numa época em que as técnicas e os instrumentos eram rudimentares e pouco verosímeis. Imaginemos o que não se poderá passar hoje em dia com a capacidade técnica que possuímos.
Ao olharmos essas imagens enchemo-nos do medo que a Maria João falava. No entanto, e apesar da perversidade contida nesses actos, mais perversas e absurdas são as suas consequências sobre todos nós. Ao descobrirmos que essas forjas aconteceram sistematicamente ao longo da História, perceber que apurámos a verdade não é mais do que um presente envenenado: o medo e a incredibilidade de olharmos um documento falsificado transforma-se no medo da repetição, perguntamo-nos se neste momento somos vítimas do mesmo ou se o provaremos num futuro próximo. O medo da estupefacção transforma-se no medo de acreditar, no medo de dar o benefício da dúvida.
Sobrevoando o século XX apercebemo-nos que apesar da indignação e da revolta em relação às vicissitudes dos tempos, os pensadores, artistas e escritores modernos acreditavam na construção de um novo mundo. Apesar dos regimes totalitários, das guerras, da fome, da exploração, havia no que acreditar. Por outras palavras a fé ainda não tinha sido condenada. Após a Segunda Grande Guerra parece que todos os valores ruíram. Havia demasiado lixo debaixo do tapete, tanto que ainda hoje nos sentimos sujos. Nos dias que correm acreditar é um risco: o homem perdeu por completo a capacidade de confiar em si próprio. Não acreditamos nos políticos nem nas religiões, não acreditamos na economia nem no progresso, não acreditamos sequer no nosso vizinho do lado, nem em Deus acreditamos. Vivemos permanentemente sem saber como e no que acreditar. Este é o nosso drama.
Detemos todos demasiado poder, minha amiga, da maior à menor escala. É tão fácil e acessível ao governo dos Estados Unidos da América (ou de outro país qualquer) reescrever a história ao sabor das suas ambições, como é para nós, com exacta facilidade, forjarmos a nossa identidade e fazermos de nós mesmos o personagem que mais nos aprouver. Tudo é demasiado virtual e já ninguém tem fé em absolutamente nada. ‘Don’t trust nobody!’ não te esqueças. Sem ponta de ironia é o melhor conselho que te posso dar, ainda que contra mim fale.
Para finalizar: Lu, tem sido muito gratificante correr o risco de confiar em ti. Tem sido muito gratificante correr o risco de confiar em mais quatro ou cinco pessoas. Alimenta-me a fé… quase moribunda.

sublinhado (51)

Havia pessoas mais infelizes do que eu. Acabamos por nos habituar a tudo, gostava a minha mãe de dizer. (pág. 84)
O Estrangeiro (Livros do Brasil), Albert Camus

Metapoemas (2)

SANTO OFÍCIO

Inicio minha rotina:
Prostro-me sobre o papel
Arrisco algumas palavras
Que nada traduzem,
Só me servem de broquel.

Recomeço tudo de novo.
Faço esforço, me contorço
E uma minúscula gota de seiva
pinga. Verto sangue
E consigo a base do poema.

Busco acessórios, complementos.
Eles não combinam...
Torço a pena,
Espremo o bagaço da tinta.
E uma nova palavra ilumina
Meu poema tosco.

Invento sentidos para o que me consome.
O vazio arde de dia
E à noite, ele fica insone.
Modelo a estrutura
Da tessitura do verso inconsútil.
Mas ela não se revela,
Permanece rija e pura.

Cedemos ao cansaço
do nosso embate diário.
Permitimo-nos o silêncio e
a pausa para o abraço.

Mais tarde, porém,
A luta recomeça.
Eu tento domá-la - a palavra;
Ela reage, possessa.

(Luciana Melo 27/12/01)

segunda-feira, janeiro 29, 2007

a solidão e as narrativas góticas de Bill Henson

Untitled #22, 2006, Bill Henson

Ontem, depois de publicar 'a história que te conto', vinham-me sucessivamente à cabeça os personagens das narrativas de Bill Henson. Quando olhamos os rostos pálidos iluminados ao jeito de Caravaggio e perdidos no meio da escuridão, cresce-nos uma sensação de alienação, de deriva, de seres errando absolutamente sós. Na primeira vez que me deparei com as imagens do artista australiano foi esse cenário cinematográfico que me ficou na memória: rapariguinhas frágeis e desprotegidas, alienadas, entregues à sorte que a noite na sua perversidade fosse capaz de lhes oferecer. Olhava-as como se a sua solidão tivesse sido obra do destino, casual, como se ao final da tarde errassem o caminho de regresso a casa e a noite as engolisse e as levasse para a escuridão do bosque. Via-as perdidas, desprotegidas, expostas a penas e perigos que rapariguinhas daquela idade não podem suportar. Depois de escrever o último texto lancei-me ao site para rever as imagens e apercebi-me de que a minha primeira análise estava completamente errada. A solidão daquelas rapariguinhas assemelha-se muito à ideia de solidão que eu queria fazer transparecer naquele texto. Não é uma solidão alienada, aterrorizada, que transforma em vítima quem, ou o que se perdeu. É antes uma solidão activa, assumida, de alguém que entra na noite à procura de se redescobrir, de testar em si a amplitude dos seus próprios limites. Não é uma mulher abusada entregue ao desespero e à solidão que vejo na imagem em baixo, mas antes uma outra, que na sua solidão deseja o abuso e o desespero. O desenho dos seus lábios parece dizer-me que se trata de uma escolha tranquila.

Untitled #7, 2005/06, Bill Henson

a história que te conto (3)

falas-me no tom correcto
quando afirmas que esta
história tem o cheiro das
palavras em despedida.
no fundo é de um adeus
que se trata. não há mais
nada para além de uma mão
que acena (sem lenço branco)
à crença de que um homem
possa ser maior do que a
solidão. e quando te falava
do lugar de onde todos viemos
e ao qual regressamos sempre,
não era vontade minha ser
cruel, nem tão pouco absorver
o mundo com desesperança.
haja ou não fé, carregamos
quotidianamente o estigma
do ilhéu e não há amor que
nos salve… a não ser que o
mesmo amor possa existir
independente e se aproxime
daquilo que o homem provou
quando inventou a liberdade.
não é de ti que me despeço,
nem de mim, nem do meu
amor. despeço-me da ideia
de não existir só. apenas.
a poeta dizia que a ‘arte da
natureza pede o amor em
dois olhares.’ e não poderia
tê-lo dito mais correctamente:
a natureza pede o teu olhar
e pede o meu olhar. o meu
amor por ti exige-me que
eu possa olhar o mar contigo,
ainda que o meu mar seja
verde e o teu mar seja azul.
e verde seja a cor da minha
solidão e azul a cor da tua.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Salve Maestro!

Photobucket - Video and Image Hosting

Se ele ainda estivesse entre nós, completaria 80 anos, mas um Sabiá travesso ou qualquer outro Passarim amigo seu veio buscá-lo para um passeio pelos céus.
Antônio Carlos Jobim, além das saudades, deixou um vasto repertório e uma contribuição inestimável para a música brasileira.

Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro partiu mas não pegou
Passarinho me conta então me diz
Porque eu não fui feliz
Me diz o que eu faço da paixão
Que me devora o coração
Que me devora o coração
Que me maltrata o coração
Que me maltrata o coração
E o mato que é bom, o fogo queimou
Cadê o fogo, a água apagou
E cadê a água, o boi bebeu
Cadê o amor, gato comeu
E a cinza se espalhou
E a chuva carregou
Cadê meu amor que o vento levou
Passarim quis pousar, não deu, voou
Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro feriu mas não matou
Passarinho me conta então me diz
Porque que eu também não fui feliz
Cadê meu amor minha canção
Que me alegrava o coração
Que me alegrava o coração
Que iluminava o coração
Que iluminava a escuridão
Cadê meu caminho, a água levou
Cadê meu rastro, a chuva apagou
E o meu amor me abandonou
Voou, voou, voou,
Voou, voou, voou,
E passou o tempo e o vento levou
Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro feriu mas não matou
Passarinho me conta então me diz
Porque que eu também não fui feliz
Cadê meu amor minha canção
Que me alegrava o coração
Que me alegrava o coração
Que iluminava o coração
Que iluminava a escuridão
E a luz da manhã, o dia queimou
Cadê o dia, envelheceu
E a tarde caiu e o sol morreu
E de repente escureceu
E a lua então brilhou
Depois sumiu no breu
E ficou tão frio que amanheceu
Passarim quis pousar, não deu, voou,
Passarim quis pousar, não deu, voou,
Voou, voou, voou, voou.

Passarim, Tom Jobim

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Metapoemas (1)

ESPECIARIAS

Compartimentalizo as salas
Sem mobílias.
Mas as mobílias,
Ah, as mobílias são as palavras!!!
Ecos de pessoas,
Vozes mudas moduladas.

(Luciana Melo 04/06/01)

Gracie #1, Cibachrome mounted to plexi , Angela West

quarta-feira, janeiro 24, 2007

a história que te conto (2)

e vivo os melhores anos
da minha vida na certeza
de que se partires haverá
sempre céu entre nós; e
quando olhar uma pedra
no chão, ou a porta bater,
ou este vento frio de inverno
me queimar a face como
o fez hoje, saberei que é
a tua boca que me beija.
se levares o teu corpo para
longe, se o roubares de mim,
a minha alma será sempre o
reflexo exagerado dos teus olhos:
se sorrirem ela dará gargalhadas,
se chorarem ela morrerá de
tristeza. antes de me seres
já o eras, e eu amava-te…
como te amava! do que é teu
só o meu amor me pertence,
nada mais. o teu corpo
não é propriedade minha,
nem o teu coração, nem
o teu amor. nem o teu amor.
se partires ficará a saudade
do teu cheiro a lembrar-me
continuamente como sou feliz.
porque amar-te é lavar-me dia
após dia a alma, mesmo que
o meu corpo não se vista de ti e
os meus olhos não te alcancem.

terça-feira, janeiro 23, 2007

*

segunda-feira, janeiro 22, 2007

sublinhado (50)

Um homem é mais um homem pelas coisas que cala do que pelas coisas que diz.

O Estrangeiro (Livros do Brasil), Albert Camus

domingo, janeiro 21, 2007

Fiama Hasse Pais Brandão: para a Eternidade

DO AMOR IV

Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
in "As Fábulas", quasi edições

sexta-feira, janeiro 19, 2007

As matriarcas (3)

Maria Antônia da Anunciação. D. Antônia. Vó Totonha. Mulher forte e homem da casa. Levava a família na rédea curta. Sempre solicitada nas horas de aflições. Criou sete filhos e alguns irmãos. Trabalhou feito louca para que nunca faltasse o necessário. Rigorosa na educação. Temente a Deus. Suas feições duras escondiam um bondoso coração. Com a chegada dos netos, o franzido da testa atenuou-se.
Ensinou-me a fazer contas. Toda a tarde tomava-me a tabuada com direito à prova dos nove. Ralhava quando me via contar nos dedos, coisa que ainda hoje faço. Ela esmerou-se, mas sempre fui péssima em matemática, não tenho a menor afinidade com os números.
Coisa que eu gostava era vê-la costurar. Fazia coisas lindas. Lembro-me de um vestido de casamento todo de organza. Sonhei com ele por muitas noites, imaginando-me naqueles saiotes rodados, flutuantes. Ele tinha flores aplicadas que ela mesma fez. Recortava os moldes, passava goma no tecido e depois metia-lhe o ferro quente para moldas as pétalas. Eu olhava tudo aquilo maravilhada, com olhos de admiração e cobiça. Um dia teria um vestido como aquele, cheio de flores e laços.
Vovó Totonha sempre fez minhas roupas. Só comecei a usar roupas de lojas no colegial, quando minha mãe comprou meu primeiro jeans. De resto, tudo era feito por vovó. As outras meninas morriam de inveja porque minhas roupas eram únicas. Nunca corri o risco de ver alguém com o mesmo modelo. Não sabia eu que a exclusividade das minhas peças não era um capricho ou vaidade, mas contenção de despesas. Melhor assim, ao invés de carregar o trauma da pobrezinha, desfilei com brejeirice o prêt-a-porter de vovó Totonha.
Ela também me ensinou a bordar, fazer crochê, capas de almofada, trabalhar com retalhos... de todas essas atividades manuais, a única habilidade que me restou foi manejar a caneta e isso também devo a ela que alternava a lição da tabuada com as aulas de caligrafia. Eu adorava desenhar as letras na pauta, vê-las transformando-se em palavras redondinhas sobre o papel.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

imagens que se colam ao peito (17)

Williamsburg, 2001, 125x165mm, Pierre Gonnord

quarta-feira, janeiro 17, 2007

a história que te conto (1)

a história que te conto
não tem o lume branco
do poema, nem a água
turva do mar alto, existe.
como se reais fossem os
sonhos que alimentam
o desejo de querer-me,
querendo-te. não falarei
de amor. não falarei de
mágoa nem de saudade
nem da curva que se ergue
sobre o teu pescoço onde
descanso todas as noites.
dir-te-ei que se partir, tu
saberás como e para onde
vou, saberás que estarei
onde sempre me achaste;
porque não se pode ser
duas vezes. não se pode
amar duas vezes quando
deus nos lava as mãos
com fogo. estarei lá, enfim,
no monte dos ascetas. o
mesmo de onde vieste,
de onde vim, de onde
viemos todos. sem medo,
pagarei com a alma e com
o corpo a solidão e o desejo
que não soubemos guardar.

Na estante (7)

Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu - eu e os meus irmãos - sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho determinado antes da grande aventura.
Sim. Conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras palavras. As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o contrário dos pássaros, embora «pássaro» seja uma das minhas palavras. A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não me interessa. Alguém que me procure tem de começar - e de ficar - pelas palavras.
Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.

"Não sei nada" in Homem de Palavra[s]. Ruy Belo.


Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor que se despeja no copo da vida, até meio, como se o pudéssemos beber de um trago. No fundo,como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na boca. Pergunto onde está a transparência do vidro, a pureza do líquido inicial, a energia de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa da alma suja de restos, palavras espalhadas num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez, esperando que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo e veja, através dele, o teu rosto inteiro.
"Plano". Nuno Júdice.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

As matriarcas (2)

- Desfaz esse bico, Tiziu! Anda, diga, o que você faz em São Pedro?
- Eu ajudo meu pai.
- E o que seu pai faz?
- Ele é ferreiro. Conserta as carroças e bicicletas de todo o povoado.
- Parece divertido.
Ele deu de ombros.
- E a escola?
- O que tem?
- Como o que tem? Você estuda, não estuda, Tiziu?
- Estudo, mas não gosto muito. Eu gosto mesmo é de correr por aí no meu cavalo.
- Uma coisa não impede a outra
Mudou de assunto:
- A dona é parente do Nhô Agenor?
- Não.
- Então o que veio fazer aqui?
- Uma pesquisa.
- Não entendi.
- Quero saber sobre algumas pessoas que viveram aqui.
- A dona é da polícia?
Não pude evitar o riso. Sua pergunta continha tanta excitação e aventura.
- Não, Tiziu. Eu conto histórias e elas viram livros.
- Ah! – exclamou todo frustrado.
Minha vez de mudar de assunto:
- Tiziu, será que seu pai me aluga uma bicicleta? Acho que vou precisar de uma.
- Claro. Depois eu levo a senhora lá na oficina para escolher uma bem bonita.
- Ótimo.
- Chegamos.
A pensão do Agenor era um casarão estilo colonial, antigo, mas bem conservado. Móveis rústicos, toalhas de linho, portas pesadas, assoalho brilhando e um cheiro forte de óleo de peroba.
- Vou pegar suas malas.
- Obrigada.
Agora que eu já recuara no tempo, deveria ir até o fim. Sabia que não se tratava de uma história qualquer.

sábado, janeiro 13, 2007

presentinho...


Radiola (6)

Porque hoje é um daqueles dias que põe a gente sentimental pra diabo sem qualquer razão aparente. É um cheiro no ar, um céu azul cobalto... e para completar, um bom vinho tinto convida Lady Day a cantar:

Strange Fruit

The Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves, and blood at the roots
Black bodies swinging in the Southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

Pastoral scene of the 'Gallant South'
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolia, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

Here is a fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the tree to drop
Here is a strange and bitter crop...

quinta-feira, janeiro 11, 2007

As matriarcas (1)

O trem finalmente pára na estação.
A velha maria-fumaça gemeu sobre os trilhos por todo o percurso. Trezentos quilômetros de ranger de ossos.
Desço e o chefe da estação grita as boas-vindas. Ele ainda se veste como os antigos chef de gare do final do século XIX. Sua roupa não tem um único vinco, o quepe está impecável em sua cabeça, mas a estação está abandonada, tudo é só pó, paredes rachadas precisando de tinta. São Pedro das Missões parou no tempo. Todas as coisas têm cheiro de passado.
- Por favor, como faço para chegar até a cidade? Poderia me conseguir um táxi?
O chefe sorriu:
- Em São Pedro não temos táxi ou ônibus. Mas posso conseguir uma charrete.
Uma charrete!! Meu Deus, o povoado ainda usa charretes. Depois de trezentos quilômetros trepidando num trem ainda terei de agüentar uma boa meia hora numa carroça.
- Pois que seja.
- A dona não é daqui, vê-se logo. O que a traz a esse fim de mundo?
- Meu ofício.
Saquei da bolsa minha cadernetinha de anotações. Chico do táxi. Chico, segundo relatos da vovó, era o único do povoado que tinha carro. Um velho Ford amarelo que ele usava para prestar socorro aos moradores. Nunca cobrava pelos serviços.
- o que aconteceu com o Chico do táxi?
O homem arregalou os olhos como se tivesse visto uma assombração. Será que disse algo errado?
- O Chico morreu, dona. Faz três anos.
- Lamento muito. Deixe que eu me apresente. Sou Olívia, neta de Totonha, bisneta de D. Guidinha.
Pensei que o homem fosse morrer na minha frente. Ficou paralisado com uma estátua de sal.
- Minha avó contou-me muitas histórias daqui.
- Prazer, D. Olívia. Desculpe o espanto, mas tem tanto tempo.
- Eu sei. Estive aqui uma única vez. Eu tinha sete anos na época. Retive algumas coisas na memória e pelo que vejo, não mudou muito. Achei que fosse ter um impacto, mas sinto-me como a menina de sete anos.
- É, as coisas não mudaram muito mesmo. Vou chamar um moleque para levá-la até a cidade. A senhora deve está cansada.
- Estou mesmo. Diga-me, a pensão do Agenor ainda existe?
- Existe, sim.
- Tiziu, ó Tiziu vem cá, menino.
Tiziu era um garoto negrinho como a noite, mas tinha olhos enormes e um sorriso tão branco e largo que espantava qualquer medo ou receio. Porque devo confessar, estava receosa com os fantasmas que encontraria.
- Olá Tiziu. Eu sou Olívia. Poderia me deixar na pensão do Agenor?
- Posso, sim, dona. Tenho o cavalo mais rápido e valente daqui.
- Então, vamos.
- Tiziu, não vá em disparada. Não apronte nenhuma com a moça.
Ele amuou e murmurou um “tá bem” a contragosto. Agradeci ao chefe da estação. Quando a charrete ia adiantada, ele gritou:
- Esqueci de dizer, sou mestre Antônio.
Acenei com a mão e respondi.
- Eu sei.

Confessionário (39)

Hoje, depois de tantos dias, sento-me em silêncio, no meu quarto para escrever-te.
Essa coisa do tempo é um mistério! E pensar que há alguns dias tinha a ti ao alcance da mão, do olhar e agora, novamente, voltamos à correspondência. Não há tristeza, não!! É a constatação da imponderabilidade da vida e de seus sortilégios que tornam a vida tão espantosa. E claro, a saudade. Uma saudade imensa no peito, aquele sentimento acre-doce tão insubstituível. É como teu terceto diz: “há cheiros que a distância não apaga”.
O Sincronicidade fica, meu Vítor. Construímos esse espaço com tanto carinho, vertemos nas letras tanta sinceridade que as almas sensíveis que nos visitam reconhecem o calor que emana daqui.
Um dia, nos encontraremos todos e faremos uma boa farra. Quero dividir com eles a harmonia que nos envolve. Queria que toda gente experimentasse a felicidade que partilhamos ao longo desse ano e antes dele.
Aqui tem feito dias quentes e noites lindas. Toda vez que olho para o céu lembro da nossa promessa de continuar até virarmos estrelas... e ponho-me a rir de nossa ‘ingenuidade’, do nosso idealismo. Sinto-me tão imensa quanto Quixote.
Bem, deixa-me dizer dos meus dias. Os meninos ainda perguntam muito por ti e pela família portuguesa. Eles ficaram encantados mesmo!
Amanhã João fará aniversário: 7 anos, Vítor. E eu olho pra ele e vejo o quanto sou afortunada por poder vê-lo crescer tão feliz.
Nosso chow-chow, que infelizmente não conheceste, partiu... foram dias tristes por aqui, Vítor. Foi difícil conter o choro das crianças. Acho que foi a primeira perda com que tiveram que lidar e estão descobrindo que a vida continua mesmo assim, mesmo com a dor, com a saudade... por conta disso, estamos mais juntos, conversamos muito e nossa relação vai ficando mais e mais sólida.
Estou com grande fé em 2007, meu querido. Estou certa que começo a sair daquela zona sombria, afinal, eu não fiz nenhum pacto com a infelicidade.
Beijo grande.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (22)

sobre a amizade:

pouco importa se estou longe
ou se o mar é o abraço que nos une.
há cheiros que a distância não apaga.
*

terça-feira, janeiro 09, 2007

Reiniciando... 1º Aniversário do Sincronicidade

Fez no passado dia 7 de Janeiro UM ANO que eu e a Luciana demos corpo ao Sincronicidade. A nossa correspondência na altura era já longa, a nossa amizade tamanha, mas faltava-nos um espaço onde pudéssemos dialogar mais intimamente, um lugar onde nos cruzássemos diariamente, como se frequentássemos o mesmo café todos os dias, trocando ideias sobre arte, literatura, enfim, sobre tudo o que nos aprouvesse.
A tecnologia possibilitou que uma amizade honesta nascesse, crescesse e se materializasse, um ano depois, num abraço apertado, num acariciar de mãos, num olhar atento como um espelho cristalino, onde o amor, o carinho, a consideração se reflectiam sem disfarces, completamente nus perante a alma. Ver a Lu pela primeira vez em carne e osso, ali à minha frente, não me causou estranheza nenhuma… eu já a conhecia, eu sabia bem dentro de mim como era o seu sorriso, o seu olhar, o seu choro… eu já conhecia tudo sem nunca ter visto. Tocar a Lu foi única e exclusivamente uma confirmação de que aquilo que existia nos nossos corações era absolutamente real, mais verdadeiro do que muitos olhares que cruzamos diariamente com amigos, familiares ou colegas de trabalho.
Numa conversa que tivemos em Brasília decidimos que o Sincronicidade continuaria como o nosso ponto de encontro e que tencionávamos mantê-lo até nos ser completamente impossível o contrário. Por isso vão ter de gramar connosco durante muitos, muitos anos. Não seremos atacados por artrites ou artroses tão cedo!
Para celebrar a nossa amizade e este primeiro ano do Sincronicidade prestamos uma homenagem às nossas mãos; elas que imprimem no teclado ou na caneta as notícias de cá e de lá, os desabafos, as alegrias, as angústias, elas que constroem este diálogo assiduamente respondido e compartilhado, elas que se tocaram ainda há poucos dias e registaram na pele a imensa amizade que nos une.
Obrigado Lu por tudo, obrigado mesmo.

As nossas mãos, Brasília, 30 de Dezembro de 2006

"MONÓLOGO DAS MÃOS"
Giuseppe Ghiaroni

Para que servem as mãos?
As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder, ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar, confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar, acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir, reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever... As mãos de Maria Antonieta, ao receber o beijo de Mirabeau, salvou o trono da França e apagou a auréola do famoso revolucionário; Múcio Cévola queimou a mão que, por engano não matou Porcena; foi com as mãos que Jesus amparou Madalena; com as mãos David agitou a funda que matou Golias; as mãos dos Césares romanos decidiam a sorte dos gladiadores vencidos na arena; Pilatos lavou as mãos para limpar a consciência; os anti-semitas marcavam a porta dos judeus com as mãos vermelhas como signo de morte! Foi com as mãos que Judas pos ao pescoço o laço que os outros Judas não encontram. A mão serve para o herói empunhar a espada e o carrasco, a corda; o operário construir e o burguês destruir; o bom amparar e o justo punir; o amante acariciar e o ladrão roubar; o honesto trabalhar e o viciado jogar. Com as mãos atira-se um beijo ou uma pedra, uma flor ou uma granada, uma esmola ou uma bomba! Com as mãos o agricultor semeia e o anarquista incendeia! As mãos fazem os salva-vidas e os canhões; os remédios e os venenos; os bálsamos e os instrumentos de tortura, a arma que fere e o bisturi que salva. Com as mãos tapamos os olhos para não ver, e com elas protegemos a vista para ver melhor. Os olhos dos cegos são as mãos. As mãos na agulheta do submarino levam o homem para o fundo como os peixes; no volante da aeronave atiram-nos para as alturas como os pássaros. O autor do «Homo Rebus» lembra que a mão foi o primeiro prato para o alimento e o primeiro copo para a bebida; a primeira almofada para repousar a cabeça, a primeira arma e a primeira linguagem. Esfregando dois ramos, conseguiram-se as chamas. A mão aberta, acariciando, mostra a bondade; fechada e levantada mostra a força e o poder; empunha a espada a pena e a cruz! Modela os mármores e os bronzes; da cor às telas e concretiza os sonhos do pensamento e da fantasia nas formas eternas da beleza. Humilde e poderosa no trabalho, cria a riqueza; doce e piedosa nos afetos medica as chagas, conforta os aflitos e protege os fracos. O aperto de duas mãos pode ser a mais sincera confissão de amor, o melhor pacto de amizade ou um juramento de felicidade. O noivo para casar-se pede a mão de sua amada; Jesus abençoava com as mãos; as mães protegem os filhos cobrindo-lhes com as mãos as cabeças inocentes. Nas despedidas, a gente parte, mas a mão fica, ainda por muito tempo agitando o lenço no ar. Com as mãos limpamos as nossas lágrimas e as lágrimas alheias. E nos dois extremos da vida, quando abrimos os olhos para o mundo e quando os fechamos para sempre ainda as mãos prevalecem. Quando nascemos, para nos levar a carícia do primeiro beijo, são as mãos maternas que nos seguram o corpo pequenino. E no fim da vida, quando os olhos fecham e o coração pára, o corpo gela e os sentidos desaparecem, são as mãos, ainda brancas de cera que continuam na morte as funções da vida. E as mãos dos amigos nos conduzem...
E as mãos dos coveiros nos enterram!

“MÃOS DADAS”
Carlos Drummond de Andrade
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.