quarta-feira, maio 31, 2006

Confessionário (22)

Eu realmente não sei o que Mme. Beauvoir diria a respeito da sua reflexão... talvez concordasse, levando em consideração toda a questão existencial; talvez discordasse porque era uma mulher inquieta e polêmica. O próprio Sartre em O que é literatura, dedicou-se a entender os mistérios da escrita.
Clarice manuscrevia seus livros e só então os datilografava. Detestava a idéia de reler o livro depois de publicado. Ela dizia: “cada livro meu é uma estréia penosa e feliz”. Eu complementaria – e única.
Falo por mim que sempre fui uma leitora ávida e hoje, atendendo um antigo chamado, sou uma escritora em aprendizado e como tal tenho um comportamento estranho. Lido mal com meus textos. Enquanto os escrevo, o envolvimento é íntimo, dividimos o dia-a-dia da hora que levanto até a hora de dormir. Nem quando sonho as palavras me abandonam, mas quando os textos ficam prontos, acabou. Não os releio na procura de falhas. Não acredito em reescritura, toda reescrita é um novo texto. Eu reviso no momento mesmo em que estou escrevendo.
Quando alguém os lê, sinto um misto de ciúme e orgulho.
Como leitora, sou uma sanguessuga quando escolho um livro, mas quando sou escolhida por eles, sou toda maleável, aceito ser guiada e seduzida.
Sabe o mais engraçado, Vítor? Os livros que se tornaram referência na minha vida, passaram por um processo de decantação profundo.
Dom Casmurro e Memorial de Ayres são livros preciosos para mim. Perdi as contas de quantas vezes os li e cada vez são sempre outros, mas também os mesmos. Machado é uma referência da minha formação literária.
Com o Avalovara (uma estória de amor que conheces bem) a experiência foi diferente. Quando o li, senti que naquele instante eu tomava consciência de outras vidas, houve um aprimoramento da minha matéria humana. Foi como um beijo roubado, causou frio na barriga. Fui tomada por um medo danado que alguém descobrisse como aquele beijo era bom e resolvesse também querer ser beijado. Então, como uma amante ciumenta, escondi o livro só para mim. Não parava de falar dele, mas jamais o apresentava.
Nesse meio tempo, li o Rayuelas. Adorei. Procurei conhecer mais o Cortázar e li outros livros dele.
Voltei ao Avalovara, receosa de que a experiência não fosse boa. Errei. A segunda leitura tornou-me mais generosa e quis que outras pessoas soubessem quem era Osman Lins. Passados sete anos, continuo relendo o Avalovara e ele tem uma força estarrecedora sobre mim.
É mais ou menos assim: sabe quando amamos alguém? Quando finalmente temos intimidade com essa pessoa pela primeira vez e é maravilhoso? Depois de dois, três, quatro anos ainda achamos incrível fazer amor com essa pessoa? Pois bem, é isso, meu amigo.
Ano passado, reli Rayuelas e foi uma decepção, fim de caso. Eu continuo achando o Cortázar um grande escritor. Rayuelas, enquanto projeto literário é fabuloso, mas sua história não comove mais minhas entranhas. Passei a achar aquelas personagens desprovidas de humanidade, acho a Maga uma débil, tenho desprezo por ela.
Fiquei triste por um longo período, vivendo o luto desse livro.
Essa longa história é para dizer o que eu, a Luciana, penso sobre o que me confessaste.
As leituras servem para nos confrontarmos conosco mesmos, meu Vítor. O medo da segunda leitura é também o medo do desencanto, da descoberta de que o amor acaba (mas não se perde). Os livros também são vida, uma vida, quem sabe?
O medo de dessacralizar algo que nos é inviolável é justificável, porque as experiências não se repetem e queremos sempre congelar na alma as coisas que nos são caras. Descobrir que aquilo que já foi tão importante um dia não tem mais tanta relevância tem um lado triste, profundamente melancólico...

Vou te contar um segredo. Eu ainda me devo uma segunda leitura de um livro chamado O gato malhado e a andorinha sinhá, da Zélia Gattai.
Quando o li, eu tinha uns sete anos. Foi tão frustrante, querido. Enquanto criança, ficara arrasada e inconsolável com o final. Ora, histórias infantis deveriam ter finais felizes! Nunca mais toquei no livro. Por sinal, ele sumiu da estante e não consigo me lembrar que fim lhe dei.
Acho que merecemos a oportunidade desse reencontro.

Do tédio...

Vendo reuniões com técnicos municipais (barato... a preços de saldos)

terça-feira, maio 30, 2006

Da tristeza...

Uma septuagenária irada com a criança que sujou o tapete.

Da injustiça...

Fechar os olhos definitivamente e no milésimo de segundo anterior ter percebido que as pálpebras não puderam ser esculpidas pelo tempo.

segunda-feira, maio 29, 2006

Na estante (3)

De agora em diante, tudo o que é exterior a mim me é estranho. Neste mundo, não tenho mais próximo, nem semelhantes, nem irmãos. Estou na terra como num planeta estranho, onde teria caído daquele em que habitava. Se ao meu redor reconheço alguma coisa, são apenas objetos aflitivos e dilacerantes pra o meu coração e não posso olhar o que me toca e me envolve sem encontrar sempre algum motivo de desdém, que me indigna, ou de dor, que me aflige. Afastemos, portanto, de meu espírito, todos os objetos penosos com os quais me ocuparia tão dolorosa quanto inutilmente. Sozinho pelo resto de minha vida, posto que somente em mim encontro a consolação, a esperança e a paz, não devo nem quero mais ocupar-me senão comigo mesmo. É nesse estado que retomo a continuação do exame severo e sincero que outrora chamei minhas Confissões. Consagro meus últimos dias a estudar-me a mim mesmo e a preparar de antemão as contas que não tardarei a dar de mim mesmo. Entreguemo-nos inteiramente à doçura e conversar com minha alma, já que é a única coisa que os homens não me podem tirar. Se, à força de refletir sobre minhas disposições interiores, consigo pô-las em melhor ordem e corrigir o mal que nelas pode ter ficado, minhas meditações não serão inteiramente inúteis e embora não sirva mais para nada na terra, não terei perdido completamente meus últimos dias. Os lazeres de minhas caminhadas diárias foram freqüentemente preenchidos por contemplações encantadoras das quais tenho o desgosto de ter perdido a lembrança. Fixarei pela escrita as que ainda poderei ter; cada releitura me devolverá sua alegria. Esquecerei minhas infelicidades, meus perseguidores, meus opróbrios, pensando na recompensa que merecera meu coração.

"Primeira Caminhada", in Os devaneios do caminhante solitário.
Jean-Jacques Rousseau.

sábado, maio 27, 2006

histórias terminadas (ou com fim assistido)

Canto Trigésimo Segundo

Vinte dias atrás meti uma rosa no copo
perto da janela em cima da mesinha.
Quando reparei que as folhas
perdiam o vigor
sentei-me diante do copo
para ver a rosa morrer.

Esperei um dia e uma noite.

A primeira pétala desprendeu-se às nove da manhã
e deixei que caísse em minhas mãos.
Nunca tinha estado ao leito de morte de um moribundo
nem quando minha mãe morreu,
pois então estava de pé, ao longe, no fundo da rua.

Tonino Guerra
O Mel (Assírio &Alvim)
Trad. Mário Rui de Oliveira

sexta-feira, maio 26, 2006

Da solidão

Na brincadeira de faz-de-conta, disfarço-me de Tempo para esquecer de mim.

quinta-feira, maio 25, 2006

LADO B (14)


Da certeza

Este blogue é chato, eu sei.

imagens que se colam ao peito (1)

La Vecchia, c.1502-1503. Óleo sobre tela. Galleria dell'Accademia, Veneza, Itália, Giorgione

no papel que segura na mão lê-se "col tempo" (com o tempo)

imagens que se colam ao peito (intro)

Inicia-se hoje uma nova série no Sincronicidade dedicada às artes plásticas, onde semanalmente publicaremos pinturas, esculturas, fotografias, imagens que entraram por dentro dos nossos olhos e ganharam morada definitiva no nosso espírito. Por outras palavras, se eu fosse milionário este seria o museu que eu construiria.

Da liberdade...

Tocar-te ao acordar e sentir que escolheste acompanhar-me mais um dia. E olhar a tua face ciente que se partires a dor tornar-se-á insuportável. Se essa hora chegar, não hesitarei em esganar o meu coração para te deixar voar. Porque amar-te só fará sentido se continuares a sorrir e o meu amor será tanto maior quanto maior for a tua liberdade.

quarta-feira, maio 24, 2006

O Outro Lado (12)

Da felicidade...

Vivo feliz desde que me mostraram que a vida pode ser um grande sorriso. Já lá vão quase quatro anos. O amor transforma-nos em pessoas optimistas e obriga-nos a receber a frescura de cada manhã como se fosse a última. A felicidade nasceu no dia em que, resgatando-me a alma, me permitiram ser livre.

terça-feira, maio 23, 2006

segunda-feira, maio 22, 2006

Do medo...

Há livros que me descobrem tão intimamente que evito contar aos outros que os li. Dizer ‘eu li o livro x’ é para mim mais assustador do que nomear quem se deitou comigo ontem.

Confessionário (21)

Disseste-me que lias Simone de Beauvoir na última confissão, e que os livros nos escolhem quando sentem que estamos preparados para escutá-los. Eu sinto isso, sinto que me chamam da prateleira da estante e me vão contando segredos, histórias, vidas que eu não conheço. Mas os livros que me surpreendem são aqueles que me descobrem, aqueles que viajam bem dentro dos meus próprios segredos… aqueles livros que soletram as palavras que tenho medo de dizer a mim próprio. É um misto de êxtase e pavor quando livros assim me ardem nas mãos. Há com eles um reencontro, a sensação que uma sensibilidade parecida existiu ou existe, como que para aliviar a nossa solidão… como que para anular a nossa diferença e afugentar o medo de existirmos duma forma que nos assusta. Por outro lado cresce uma vontade de não voltar a tocá-los, de não voltar a lê-los. Tornam-se objectos incrivelmente poderosos, uma espécie de espelhos imutáveis e irreversíveis, duros e frios como o confronto inesperado com a verdade. É provável que Sartre tenha sentido o mesmo ao ler Beauvoir, é provável que o mesmo pânico lhe tenha crescido ao reler a sua própria obra. Não sei porquê, mas tenho um pressentimento de que Sartre nunca voltou a ler um dos seus livros, exactamente pelo impacto forte e severo do encontro com esse espelho – não há coisa mais cruel do que ser-se responsável por si próprio. O desajuste entre a sua obra e a sua vida parece-me argumento suficiente para justificar o meu pressentimento. Qual seria a opinião de Beauvoir sobre o assunto?

quinta-feira, maio 18, 2006

dias 18, 19, 20 de Maio no Auditório Almeida Garrett

O Corta - Festival Internacional de Curtas Metragens do Porto começa hoje no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett e apresenta-se assim:
"A terceira é desta vez. O corta! festival internacional de curtas metragens do porto 2006, auto define-se como o pulsar de algo que cresce e se multiplica. De cada edição anterior surgem novas ramificações que se desenvolvem e tocam na ideia seguinte.O conceito abrangente de curta metragem como elemento de convergência da multiplicidade dos estímulos que nos envolvem e definem, faz cada vez mais sentido. E a acessibilidade tecnológica, base da filosofia da democratização produtiva, libertou o espírito para todos os sentidos que o estimulam.Assim, o caminho para a criatividade total está aberto. Sem restrições, sem condicionalismos mais ou menos profissionais, o que procuramos é conhecer e dar a conhecer tudo o que possa transmitir uma atitude nova e que surpreenda. E que não fique fechada em si mesma, que interaja com quem a confronte, que deixe questões em aberto, que faça parte de um todo. O festival. A consciência sócio-cultural desperta.Foi este caminho que surpreendeu e mexeu com o público e os media, na edição de 2005, e é isto que queremos consolidar em 2006. As diferentes áreas competitivas vão ser cada vez mais definidoras deste conceito, os workshops e ‘live demos’ mais interventivos e integrados, as mostras de escolas e festivais vão em busca de quem traz este espírito novo, o som, a palavra e a imagem fundem-se em inter-eventos de pura fruição sensorial, projectos de interacção artística e visionamento de trabalhos inéditos vão ser mostrados.Tudo isto, num único momento. O festival. E, uma vez mais, privilegiando a evolutiva construção de uma relação criadores-público, o corta! é um espaço de acesso livre e gratuito."

quarta-feira, maio 17, 2006

Querido amigo,

Apesar de estar um tanto quanto ausente, gostaria que soubesses que não esqueci do teu aniversário.
Tenho tido enorme dificuldade em postar, mas saiba que guardo cá comigo um abraço apertado, desses que enlaçam e deixam coração contra coração, pulsando num só ritmo.
Desculpe pelo atraso, mas não poderia deixar de desejar um Feliz Aniversário para a pessoa incrível e especial que é você, pelos caminhos que temos trilhado juntos, pelas confissões, pelo crescimento, pelo cuidado, pela lágrima e riso.
Aceita essa rosa e um beijo, Vítor.
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blá blá blá literário

Caríssimos, saudades, saudades!
Gostaria de compartilhar com vocês algumas impressões e reflexões que tenho feito, uma vez que o tempo sobra-me.
Como voltei a ter crises horrorosas de insônia alternadas com um cansaço Drummondiano, passei a dedicar minhas madrugadas ao estudo da literatura, acompanhado, é claro, do meu diletantismo arcaico papel e caneta.
Ontem, lá pelas quatro da manhã, descobri que ‘faço parte’ de um grupo de pessoas que sempre combati no plano das idéias: os herméticos.
Sorri de mim para mim.
Tentarei explicar essa aparente contradição.
Nessa madrugada, li dois livros inteirinhos (e há quem diga que a insônia não traz benefícios), um deles – eu havia começado, mas não terminara – é Uma poética do romance – matéria de carpintaria, do Autran Dourado.
Sou fã de carteirinha desse mineiro de escrita altamente sofisticada e complexa, mas de vocabulário singelo e sem rococós, apesar de Autran ser todo barroco.
Apaixonei-me tardiamente por ele. Nosso primeiro encontro deu-se com O risco do bordado, logo mais vieram Ópera dos mortos, Os sinos da agonia, A barca dos homens. Todas essas obras são extremamente calculadas, pode-se dizer que possuem uma planta baixa por onde podemos entender sua arquitetura e visualizar sua dimensão.
No Brasil é bastante incomum ver o escritor “teorizar”, quer dizer, fazer uma análise da própria obra, atuando como um crítico. É preciso ressaltar: o escritor de ficção, o prosador, porque em matéria de poesia, verificamos o oposto.
Temos, mais recentemente, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, cujas obras são uma análise do fazer literário, da ars poética.
A metalinguagem sempre foi usada em abundância na poesia sem acarretar revolta dos críticos. Há quem goste, há quem desgoste e pronto.
Quem me conhece sabe que eu adoro meta-poemas. Amo a ‘procura (incansável) da poesia’ em Drummond; os versos duros fundando uma educação pela pedra do gênio JCMN; o itinerário poético que levou Bandeira à sua Pasárgada. Fascinada por essas trilhas, escrevi alguma poesia na tentativa de edificar minha cidade poética.
Por outro lado, sempre tive debates acalorados com uma vertente acadêmica que defende a poesia pela poesia, a arte pela arte como uma forma de limitar o acesso dos leigos ao território dos símbolos.
Ora, já não basta o fato da literatura ser a mais exigente das artes?
Qualquer pessoa sensível pode ser tocada ao escutar uma música sem ter o menor conhecimento de teoria e escala musicais; qualquer um de nós pode admirar uma obra arquitetônica sem nunca ter visto um croqui, uma planta; podemos nos deliciar com um Molière sem saber quem foi Molière; encantamo-nos diante de uma quadro de Rafael ou de Renoir sem entender nada de renascimento ou impressionismo, mas é impossível gostarmos de um livro se não soubermos ler.
Todas as artes permitem a fruição sem necessariamente termos um conhecimento prévio e específico, mas a literatura só aceita iniciados.
Partindo desse ponto, sempre me opus ao discurso da arte para poucos, à defesa do hermetismo como forma de manter a massa longe do processo de criação.
Eu defendo a infecção em detrimento do purismo asséptico. Gosto de ver a contaminação atingindo as pessoas de formas diferentes.
Com a literatura, as coisas tomam proporções maiores, pelo menos no Brasil, onde o analfabetismo ainda é um mal a ser combatido. Dessa forma, infelizmente, a literatura é a priori uma arte excludente, uma vez que o público que não sabe ler está fora do círculo da fruição.
Aqui, então, entra o meu posicionamento político que acredita que a literatura tem uma missão, sim. (ver A arte engajada.)
Se o público que lê é um público iniciado, logo privilegiado, então penso que este mesmo público tem o direito de se refinar, não para se distanciar da massa, mas para agregá-la a um universo maior que extrapole as paredes da ficção.
Depois de toda essa reflexão, descobri meu 'hermetismo bom selvagem'.
Aprecio esse modo encalacrado de escrever, essa forma labiríntica de construir histórias e personagens, que ao olhar desavisado, pode parecer segregadora, mas na verdade é extremamente livre e plural.
Querem ver?
As mil e uma noites. Livro antiqüíssimo que possui uma estrutura em espiral, ou seja, sua leitura tende ao infinito. Existe sofisticação no modo de apresentar as histórias que são construídas para enredar o sultão, mas se alterarmos a ordem dada por Sherazade, não comprometeremos nem a estrutura narrativa, nem o entendimento nem o interesse pelo livro porque atrás desse labirinto, Sherazade esconde a tradição do rapsodo, da oralidade, do contador de histórias. A simplicidade é a caixa de Pandora que se encontra no centro do labirinto.
O mesmo ocorre no D. Quixote, de Cervantes, no Jogo da amarelinha, de Cortázar, nas obras de Osman Lins e Autran Dourado, na estrutura borgeana.
No fundo, o hermetismo literário, assim como o entendo e descrevi aqui, é antes um exercício de liberdade, um jogo de detetive cheio de mistérios a desvendar.
Ruim é quando o hermetismo coincide com a prolixidade e a redundância, características que reduzem o potencial e afronta a inteligência do leitor.

terça-feira, maio 16, 2006

'O Outro Lado' em exposição...


A série fotográfica ‘O Outro Lado’ que vem sendo publicada no Sincronicidade, ganha, a partir do dia 20 de Maio, espaço físico. As vinte imagens (onze já publicadas no blogue) vão estar expostas na Casa da Eira – Associação Cultural (Parque Urbano de Paços de Ferreira) até ao dia 11 de Junho. Estão todos convidados para uma visita. Desde já o meu muito obrigado ao Nuno Oliveira pelo convite e disponibilidade em acolher a exposição.
[Vítor Leal Barros]

sábado, maio 13, 2006

sublinhado (31)

"Nem eu era eu para ele, nem ele era ele para mim. Mas, naquele momento, esse não nos sermos constituía a nossa realidade de podermos ser muito mais profundamente do que, dali a instantes, tornaríamos a poder ser." (pág. 373)

Sinais de Fogo (Público), Jorge de Sena

sexta-feira, maio 12, 2006

um presente (porque há poemas demasiado perto de nós)

A Magnólia

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria – na metáfora –
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

Luiza Neto Jorge
Poesia (Assírio & Alvim)

domingo, maio 07, 2006

LADO B (12)


sublinhado (30)

"Que tinha eu com aquilo tudo? Nada. Mas este nada é que era o tudo, como compreendi. O não ter-se nada em comum, senão as circunstâncias que nos juntam, é que é a verdadeira sujeição mútua. Muito maior e mais profunda que a que me ligava à família, aos companheiros de sempre, a tudo o que sempre tivera um lugar marcado e habitual na minha vida. Tudo isto não é a nossa vida, mas o pretexto em que nos refugiamos, para não sermos atacados por ela. A nossa vida é esse ataque vindo de fora, por mãos ocasionais, e que, descobrindo-nos que não somos 'nós próprios' (com tudo o que, à nossa volta, nos dá essa segurança unitária), nos obriga a reconhecermo-nos 'nós outros', 'nós multiplos', conforme as ocasiões e conforme as circunstâncias. Eu não era eu, mas o eu-Mercedes, eu-Rodrigues, eu-Macedos, eu e toda a gente que não fosse um passado sem tempo nem acontecimentos." (pág. 312)
Sinais de Fogo (Público), Jorge de Sena

sábado, maio 06, 2006

O Outro Lado (11)

quinta-feira, maio 04, 2006

Confessionário (20)

Meu amigo,

Como sinto-me reconfortada por saber que ainda posso juntar letras e construir discursos não lineares! Como é bom poder voltar a esse espaço e dividir contigo experiências variadas.
Ainda estou longe de sair do olho do furacão. Ainda sinto náuseas fortes pelo rodopiar vertiginoso. Estou no ápice dos círculos e tudo é um constante 360°.
Abandonei-me à mercê dos ventos, Vítor. Parei de tentar escapar, de fazer esforços. Simplesmente entreguei-me ao balé do ar. Leva-me, leva-me, leva-me onde quiseres, digo eu. E subitamente parei de sofrer demais, de me cansar demais, preocupar-me demais... eu sou e isso me basta.
Ao ouvir tua última confissão senti minha garganta estreitar-se e doer.
Lembrei-me que em uma de nossas cartas, falei da receptividade e compreensão que tens sobre a minha pessoa e acabei externalizando isso com algo do tipo: como alguém tão mais novo blá blá blá.
Conheces-me tão bem, Vítor! Minha referência a este fato é uma admiração em ao uma crítica porque a idade cronológica pode ser uma tremenda armadilha.
Há pessoas que nunca crescem, jamais serão contemporâneas de seu tempo; teimam em ser menos, em se infantilizar. Não há nada mais ridículo do que uma pessoa adulta que age como se fosse um bebê.
Recusar-se a aceitar o tempo é recusar-se a viver e eu quero tudo da vida, Vítor. Quero reter nas mãos o sabor de todas as idades. Sim, quero conservar a juventude, mas de outra forma.
Quero uma mente jovem, um espírito inquebrantável, uma alegria pueril, a esperança, mas isso não exclui a experiência de viver as fases, todas elas.
Desprezar a experiência de alguém – tenha ele 20 ou 80 anos – é negar sua capacidade criadora.
Estou concluindo a leitura de Todos os homens são mortais, da Simone de Beauvoir. Os livros nos escolhem, meu amigo e ler este livro no momento dessa conversa é uma dádiva maravilhosa!
O argumento do livro não é novo nem criativo. Simone relata a vida do imortal conde Fosca que se recusou a aceitar o tempo e extrair o melhor dele. Sua arrogância e inexperiência fizeram que desejasse a imortalidade. Tanto fez que conseguiu e o que deveria ser um dom tornou-se maldição. Viu tudo e todos passarem e só ele ficou. A vida tornou-se monótona e sem atrativos, uma vez que não tinha mais expectativas. Ele sempre sabia como as coisas seriam. O nascer e o pôr-do-sol eram-lhe maçantes. O amor uma fraqueza, não havia mistérios nem novidades. Essa sucessão interminável das horas era pesada demais.
Sabe, Vítor, fico imaginando um mundo sem poesia, palavras, romance, crianças... mesmo nas maiores adversidades há uma razão para se viver, para prosseguir.
Eu insisto, meu amigo. Eu insisto em ser feliz em todas as idades, mas sem pensar muito nisso.
Não pense demais nos rótulos que tentam nos definir, eles são sempre muito menos do que nós. Os potes são menores do que nosso tamanho, oprimem nossa alma imensa e livre e freqüentemente nos tornam infelizes.
Que venham os furacões, Vítor!

O diário de G.H (6)

Não pude ficar no bar. Estava excitada com a descoberta dos reflexos do espelho. Dirigi, sem direção, cortando ruas, reconhecendo avenidas, perdendo-me em becos. É que eu tenho essa mania de viajar, essa facilidade de me desligar do tempo e me descolar do espaço. Posso passar o dia inteiro debruçada numa janela observando o movimento da rua.
Lembro-me que ele espumava de ódio toda vez que me teletransportava. Podíamos estar no calor da maior discussão, mas se escutasse passos na calçada ou uma música que me tocasse, eu simplesmente não estava mais lá.
De repente, eu não estava mais lá nem aqui. Eu estava no vapor do banheiro, na palavra escrita a dedo no espelho. Era preciso voltar e descobrir não quem eu sou, mas qual delas sou eu.
Estava em casa, sentei-me diante do espelho oval adquirido num antiquário. "É um legítimo espelho da era vitoriana" - disse a vendedora toda afetada. Vitoriana era eu ali, parada, tentando reconhecer minhas verdades. E eu não queria que tais verdades fossem usadas como um pretexto para mentir. Confessar-me poderia ser uma grande vaidade e eu queria me despojar dela; queria tocar nessa coisa áspera que se oculta no breu da noite.
Essa coisa áspera era a tal AIRTEMIS? Quer dizer, SIMETRIA.
O que isso queria dizer?
Simetria seria essa minha pretensa vocação para organizar as coisas ao meu redor? Ordenar as coisas era o primeiro passo para meu processo criativo. Juntar fragmentos, liberar o caos para depois aprisioná-lo. Era como colocar os planetas em órbita. Mas a órbita de fora nada tinha de simétrica com a órbita da minha cabeça e das coisas efervescentes que agastavam meu juízo.
Foi então qu lembrei de G.H, estupefacta diante da barata.
Eu entendia seu horror e sua atração pelo inseto que sempre existira antes de toda e qualquer existência.
Suei frio só de pensar que aquela outra era imemorial. Era a matéria viva tentando rasgar minha pele morta e inexpressiva. Eu só consegueria sair vivificada se a enfrentasse e, numa atitude antropofágica, a devorasse.
Fiquei atenta aos movimentos. Era irremediável o encontro perigoso e necessário.

Confessionário (19)

Espero uma resposta tua.

nem de propósito...

Pouso "Sinais de Fogo" após o fim da terceira parte. E vem-me o pressentimento de que na poesia poderia encontrar pistas para entender a confusão que vai na alma de Jorge, o personagem. Aleatoriamente abro a "Antologia Poética" e, com surpresa, vejo legitimado o que tenho escrito em "De preferência sem palavras", um poema que remata e dá por terminada a série:
A Miséria das Palavras

Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.

Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.

Assim, apenas se fala do que não se fala,
apenas se vive o que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.

E a miséria é isso: não imaginar
o nome que nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a língua em algo mais
que o falar por falar.

Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.

Jorge de Sena
Obras de Jorge de Sena, Antologia Poética (Asa)

quarta-feira, maio 03, 2006

De novo Tom Hunter


The Dolphin, 2003, Tom Hunter

De preferência sem palavras (3)

Disse-vos que devíamos matar as palavras, pedi até um sacrifício para que o fizéssemos. Não há mais o que escrever, o que dizer. Não há. O tempo esgotou-nos o vocabulário no dia em que aceitámos viver sem pesar o caminho do Sol, no mesmo dia em que acenámos o último adeus à alvorada e ao entardecer.
As Palavras não existem mais, não como a roldana do mundo… não como a roldana do mundo! Morreram quando a terra caiu sobre o olhar manso de Hölderlin, quando o vento apagou de Lisboa os passos de Pessoa. As Palavras morreram no dia em que o diabo lançou tempestades sobre o deserto e impediu o mundo de sentir o cheiro ácido do suor de Rimbaud. O poema morreu com elas.
Órfãos de beleza, chamamos Palavra à tira de celofane com que envolvemos o coração. E vendemo-lo depois, higienizado, com o nome de poema. Não há Palavras desde que eliminámos o hálito da terra. Não há Palavras desde que os fumos das fábricas e dos automóveis abafaram o perfume da chuva. Não há Palavras desde que deixámos de acreditar em pactos de sangue. Sem Palavras ficámos e de palavras vamos vivendo, até ao dia em que, de novo, a Ceifeira cante.

O Outro Lado (10)

segunda-feira, maio 01, 2006

De preferência sem palavras (2)

Permanecer em surdina para ouvir o grito da poesia quando nasce. E sentir que o poema cresce por dentro. Sentir que cria raízes no sangue e nos músculos, sentir que vasculha cada canto do corpo e o percorre até às profundezas da alma. Uma viagem sem palavras, sempre sem palavras, apenas como se fosse um raio de luz… ou um cheiro, ou um arrepio, um tremor, um frio leve no peito… as substâncias verdadeiras do poema. E fazer um esforço, um sacrifício se preciso for, para matar todas as palavras. Assassiná-las sem dó nem piedade, para que o poema seja, para que o poema exista ausente às paisagens desfocadas dos signos e dos sinónimos. Porque o poema é o exacto inverso das palavras. Porque a poesia é o que as palavras não dizem, como se atrás dum espelho vivesse um pomar de magnólias.

Um Homem na Cidade

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.

José Carlos Ary dos Santos

LADO B (11)


sublinhado (29)

"O que eu estava descobrindo era terrível, muito mais terrível do que a descoberta que o Rodrigues fizera, diante de mim, da natureza do mal, que era não existir. Os acontecimentos não tinham 'causa', as pessoas não tinham 'motivações'. Aqueles e estas recebiam uma causalidade 'à posteriori'. E, quando provocávamos, voluntária ou involuntariamente, acontecimentos, não o fazíamos por vontade própria, nem levados por uma fatalidade qualquer. Só a ideia de causalidade é que criava o dilema da autonomia ou da fatalidade. Onde não há causas, nem motivações, não há relação necessária entre o gesto que desencadeia e o processo desencadeado. Se o passado de uma pessoa a condiciona para proceder desta ou daquela maneira, nestas ou naquelas circunstâncias, condiciona-a igualmente para proceder de maneira exactamente contrária. E os acontecimentos, no seu encadearem-se, tanto podiam ser entendidos na ordem por que aconteciam, como de trás para diante. (...) Não havendo causas nem motivações de nada, tudo se passava como se cada qual fosse o responsável exclusivo de coisas que não tinha a mínima responsabilidade. E este estava sendo o sentido da vida. Daí que eu, mesmo à custa de outros, pudesse fazer dela o que me apetecesse, desde que aceitasse como parte do meu apetite as consequências dele que, imprevisivelmente, desabassem sobre mim." (pág. 236)
Sinais de Fogo (Público), Jorge de Sena