terça-feira, fevereiro 27, 2007

Radiola (7)

Sinal Fechado
Paulinho da Viola

- Olá como vai?
- Eu vou indo, e você tudo bem?
- Tudo bem, eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro e você?
- Tudo bem eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe?
- Quanto tempo.
- Pois é. Quanto tempo.
- Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios.
- Ah! Não tem de que, eu também só ando a cem
- Quando é que você telefona, precisamos nos ver por aí.
- Pra semana prometo, talvez no vejamos, quem sabe?
- Quanto tempo.
- Pois é. Quanto tempo
- Quanta coisas eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas.
- Eu também tem algo a dizer, mas me foge a lembrança
- Por favor telefone, eu preciso beber alguma coisa rapidamente.
- Pra semana...
- O sinal. Eu procuro você.
- Vai abrir, vai abrir. Prometo, não esqueço.
- Por favor não esqueça. Não esqueça.
- Não esqueço, não esqueço.
- Adeus, adeus, adeus
- Adeus, adeus

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Na estante (8)

- Na hora em que você conseguir deixar para trás todos os Professores Vinsons, você vai começar a se aproximar cada vez mais - isto é, se você quiser, e se procurar, e se tiver paciência de esperar - da espécie de conhecimento que será muito, muito importante para você. Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e estusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmo, enfrentam os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia.
O Apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Metapoemas (4)

BRECHÓ

“Uma boneca de trapos
Não se parte se cair.
Fizeste-me a alma em farrapos...
Bem: não se pode partir”
Fernando Pessoa
A palavra é feita de farrapos.
Por que temer, se ela cair?
De tão usada se torna trapo,
Esgarça o tecido – fiapo por fiapo.
Mas quebrar?! Como, se não se pode partir?

Palavra guardada é fruta mofada.
Perde o viço, o brilho sedoso do cetim.
Palavra bela é palavra usada,
Gasta, catada no chão, no jardim.

O perigo da palavra
Não é utilizá-la nem deixá-la cair,
E, sim, que sua lâmina afiada
Corte a carne de quem a quer polir.
(Luciana Melo – 09/02/02)

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

vou ali e já venho... até março!

Lu, toma bem conta da casa... um beijo.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

a história que te conto (4)

terá sido no peito que
guardei o teu cheiro? terá
ele atingido proporções
de nenúfar como na história
de boris? é que há horas
em que o peito me rebenta
incomensuravelmente e
eu vivo uma espécie de
morte maravilhosa, como
se o fim que ela carrega
anunciasse o renascimento
do universo através de mim.
e se um dia partires será
pelo nariz que perseguirei
o teu corpo. serei parente
do cão cego de saint-jean
(lembras-te?) reconstruirei
a tua carne na minha como
ele reconstruía a cidade
inspirando as cores de cada
esquina, de cada estátua.
o meu amor não teme a
distância do teu corpo nem
a saudade dos teus beijos
ou dos teus abraços, teme a
impossibilidade do teu cheiro.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

As matriarcas (5)

- Bom dia.
- Bom dia.
- A senhora gostou do quarto?
- Sim, está confortável. Obrigada.
- Se precisar de alguma coisa...
- Na verdade, preciso, sim. Quero dar uma volta pela cidade, mas primeiro preciso encontrar o Tiziu. Ele disse-me que seu pai conseguiria uma boa bicicleta para mim.
- Ah, sim! Neste horário, o moleque Tiziu deve estar no Grupo Escolar, mas a loja do Geraldo fica bem perto daqui. Venha, eu mostro pra senhora.
De fato, a loja era bem perto. Do outro lado da praça, para ser mais precisa. Parece que tudo de relevante para a cidade ficava na praça da Matriz. Igreja, coreto, hotel, uma sorveteria e a loja do Sr. Geraldo.
Lembro-me perfeitamente das missas de domingo na Matriz. Eram longas, demoradas demais mesmo. Causavam sonolência nos fiéis. No entanto, era o dia mais movimentado e esperado da semana. Mamãe punha-me laços no cabelo. Vovó Totonha usava seu colar de pérolas – presente de casamento – e vestido de linho branco muito bem engomado. A bisa, como era muito gorda, estava sempre de chambre de algodão e um coque trançado. Tia Margarida, muito alta, pernas longilíneas, gostava de saias plissadas e de perfume. Ela passava tanto que eu ficava enjoada, mal conseguia tomar café da manhã, mas nunca a repreendi, nunca pedi que abandonasse tal prazer, afinal eles eram tão poucos.
Depois da missa começava o melhor: pipoca, algodão doce, bandinha tocando, as crianças correndo livres pela praça. Na época de quermesse, tia Margarida vendia seu famoso licor de jenipapo e vovó Totonha levava seus deliciosos beijus. Eu voltava para casa com dor de barriga.
Tia margarida, antes de ficar doente, dava aulas no Grupo. As crianças adoravam-na. Faziam fila na barraca para provar do seu licor, que era muito doce e tinha quase nada de álcool. Eu sei porque experimentava em casa. Ela dizia “a prova final é a Olívia quem dá”.
- D. Olívia. D. Olívia.
- Tiziu! Eu procurava mesmo por você.
- É?
- É. Estava indo à loja do seu pai alugar uma bicicleta, mas me diga, você não deveria estar na aula, mocinho?
- Eu tava, mas é que... é que...
- Mas é que você está cabulando aula.
- Não conta nada para o meu pai, por favor.
- Não conto se você der meia volta.
O bico habitual surgiu em seu rosto.
- Esse bico de novo, não! Volte para a aula e mais tarde convido você para um passeio de bicicleta e ainda contrato seus serviços de guia. O que acha? Vai querer?
O olhinho dele brilhou. O bico sumiu.
- E a dona paga? Quanto?
- Pago, claro que pago. Combinamos isso depois. Agora volte já para a escola.

sábado, fevereiro 10, 2007

imagens que se colam ao peito (18)

'Doubting Thomas', óleo sobre tela, Stiftung Schlösser und Gärten, Sanssouci, Potsdam, Alemanha, Caravaggio

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

sublinhado (53)

A propósito... alguém parece corroborar:

Uma pessoa faz amor simplesmente para confirmar a sua solidão. (Pursewarden) (pág. 72)

O Quarteto de Alexandria - Clea (Ulisseia), Lawrence Durrell

Memória

'My Memory no. 1' & 'My Memory no. 2', Zhang Xiaogang
Tinha lido os três primeiros volumes do Quarteto de Alexandria do Durrell. Há mais de quatro anos que não regressava àquela história. Na semana passada decidi completar o Quarteto. Abri ‘Clea’ o último livro da série. Nos dois primeiros capítulos todos os personagens ressurgiram como se o peso dos anos não os tivesse danificado. O enredo intacto, até o cheiro de Alexandria parecia estar vivo dentro de mim. Quando as emoções por algum motivo ficam vincadas na nossa cabeça, tudo se assemelha a uma litografia de Xiaogang: basta esgueirar a pupila ao canto do olho e a Memória encarrega-se de remontar o filme.

PARABÉNS CARLOS PELOS DOIS ANOS DE LEGENDAS...
& ETC...
*

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Confessionário (41)

Meu amigo,

Li tua última confissão atentamente e repetida vezes. Refleti sobre as questões que levantastes e conferindo a mim total liberdade de pensamento e análise crítica, respeitando meus pré-conceitos e limites, meus princípios e valores, de tal forma que o que escrevo agora é a expressão fidedigna dos meus sentimentos e avaliações. Com isso não almejo “a verdade” nem ser a voz que a proclama. É um ponto de vista tão somente a partir dos meus julgamentos. E como já disse no comentário, julgar, avaliar, especular, inferir é diferente de condenar. É um direito que tenho de fazê-lo quando me vejo direta ou indiretamente envolvida no problema.
Vítor, darei nome aos bois. Isentei-me até agora de comentar o ocorrido porque não conhecia a pessoa envolvida, mas isso não combina comigo. Costumo pronunciar-me diante do que me causa incômodo. Sou de dar a cara a tapa. Não sou das hipocrisias e das covardias. Os fatos geram críticas que geram posicionamentos. Eis o meu. Depois disso não falo mais. Não quero adicionar capítulos a esse episódio lamentável sobre todos os aspectos.
Quero, contudo, não perder o norte desse confessionário: a questão da confiança e do respeito, em primeiro lugar. Depois vem a questão maior: o Homem. Mas sobre isso não tenho a intenção ou pretensão de dissertar. Há milênios as mais diversas áreas do conhecimento têm tentado compreender sem chegar a nenhuma conclusão.

O caso M.E.G

Não a conhecia. Nunca trocamos e-mails. Não freqüentava seu blogue. Soube dela pelo link que colocastes na brasosfera e depois lendo amigos em comum. Num primeiro momento não entendi absolutamente nada. Imaginei que estava se despedindo da vida de blogueira. Foste tu quem chamou minha atenção para o fato de sua morte. Apesar de ter contato zero com ela, fiquei bastante consternada, afinal é uma vida e nesse universo virtual esse conceito ganha outras proporções. Estranho sentir pesar pelo desaparecimento de uma pessoa que nunca vimos e que de certa forma se torna tão presente. Senti pesar pela família dela – a sangüínea – e também pela família virtual que conseguiu formar através de seu blogue. Pensei em duas pessoas em particular: no Henrique e no Carlinhos – que eu não conheço e quero tanto bem. Freqüento com alguma assiduidade o blogue de ambos.
Mais tarde pensei em nós, meu Vítor. Se algo nos acontecesse (e um dia irremediavelmente acontecerá a todos nós). Fiquei silenciosa em sinal de respeito.
Poucos dias depois, vejo a rede em polvorosa: M.E.G não morreu! Como assim? Pensei comigo: que bom. Alguém deve ter feito confusão. Depois vi que não era confusão. Passei a ler atentamente os fatos apresentados – alguns mais imparciais; outros mais apaixonados – e entendi que não era engano, mas um blefe, uma história montada. Tive asco, horror e depois uma grande desesperança.
E aí nos vemos enredados pela máxima “Don’t trust nobody!”
O caso da M.E.G infelizmente é mais um para as estatísticas, meu Vítor. O mundo está recheado de infelicidade e solidão. Não é privilégio da internet. Somos quem somos, apesar das máscaras que usamos. E um dia elas caem, mesmo que acreditemos estarem tão entranhadas que jamais desgrudarão de nossas faces. Desgrudam! São pessoas que fazem a net, muito embora ela seja uma máscara poderosa, talvez a mais porque tem o anonimato como cúmplice. Mas o desejo prometeico do Homem é infinito e quando encontramos possibilidades materiais, damos um jeito de desbaratar o anonimato. Nós que o digamos!
Você melhor do que ninguém sabe que, no ano passado, saí de três experiências traumáticas que quase destruíram minha alma (ainda bem que existe um quase nesta frase!). Duas delas tiveram maior peso: descobrir um estranho na pessoa que convivia comigo e quase perder a minha vida e a de minha mãe num seqüestro.
Passei 2006 ruminando a frase “don’t truste nobody”. Jurei a mim mesma que me tornaria um bloco de gelo. Esqueci do detalhe que o gelo derrete e graças a Deus ele derrete! Não vou transformar-me em algo que não sou.
Como te disse no comentário, as doenças são passíveis de compreensão, mas não as atitudes doentias.
Hoje, com algum distanciamento, eu consigo discernir tanta violência e egoísmo. Isso é bom porque posso perdoar e seguir adiante sem avinagrar meu espírito, mas não significa em hipótese alguma que eu aceite tais comportamentos e seja conivente com eles. Não sou tão cínica, penso eu. Aceitar e ser conivente é tornar-me um igual.
Há gente de todos os tipos e não é exatamente isto que enriquece a experiência humana? Sim, eu abriria mão de viver coisas desagradáveis, mas tais coisas tornam-se indispensáveis para sermos quem somos.
Há muita merda no mundo. Mas há também tanta beleza e doçura! Prendo-me a isso para fazer a vida valer a pena. Senão seria como diz o Carlinhos: “bum-bum”.
Vou continuar acreditando porque acreditando é que você tornou-se realidade na minha vida a despeito da descrença de muitos.
E como diz o ditado por aqui:
Quem gosta gosta. Quem não gosta que coma bosta.

Metapoemas (3)

AS FASES DE UM POEMA

Acordo!
Imagens distorcidas,
Bocas estarrecidas
Apresentam o poema-farrapo.

Acordo!
Palavras esboçadas,
Rimas fatigadas
Turvam o poema-miragem.

Acordo!
Idealizo a arquitetura,
Costuro a urdidura.
E nasce o não-poema.

(Luciana Melo 20/11/01)

terça-feira, fevereiro 06, 2007

IVG

Vera Drake, Mike Leigh

É nossa prerrogativa no Sincronicidade não abordar política, foi um dos primeiros itens acordados entre mim e a Luciana quando decidimos criar este blogue. No entanto, sinto-me impelido e moralmente obrigado a manifestar a minha opinião quanto ao referendo que votaremos no próximo domingo sobre a interrupção voluntária da gravidez.
Antes de mais quero deixar claro que o que nos perguntam é: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”. A pergunta parece-me suficientemente clara. Existe uma lei que criminaliza a mulher que por sua opção decide interromper uma gravidez que não deseja e a pergunta que nos fazem é tão e somente se, até às dez semanas de gravidez e nas condições que nos são apresentadas (estabelecimento de saúde legalmente autorizado), deveremos ilibar a mulher desse crime ou continuar a penalizá-la. Ninguém nos pergunta se somos ou não contra o aborto, ninguém nos pergunta qual o nosso conceito de vida intra-uterina, nem o valor que a vida tem para cada um de nós. Dizem-nos: existe um crime e o que queremos saber é, se nestas condições, esse crime deverá continuar a ser ou não considerado pela lei. Tenho ouvido ao longo da campanha opiniões que ponderam a objectividade da pergunta, honestamente, ela parece-me muito evidente.
Não há para mim valor mais fundamental do que o direito há vida e tenho certeza de que a maioria dos portugueses que vão votar no referendo o defendem com igual convicção. Agora eu pergunto-me, votando NÃO à pergunta estarei eu a contribuir para a erradicação do aborto? A resposta parece-me clara como a água: não. Indiferentes ou indignados, a favor ou contra a nossa vontade, o aborto continuará a ser uma realidade como sempre o foi até agora. É um facto que mulheres abortam e continuarão a abortar pelas mais diversas razões, sejam elas mais ou menos legítimas, tenham para nós maior ou menor justificação. São as suas razões e ponto final. Concorde eu ou não com a sua opção não me sinto no direito de julgá-las. O actual quadro legal pune a mulher que decide interromper uma gravidez que não deseja, facto que muitos defensores do Não apresentam com elemento dissuasor. Eu acho de uma ingenuidade incrível esse argumento, como se uma mulher decidida a fazer um aborto não encontrasse formas de o levar a cabo. O que a lei actual potencia é tão e somente o aumento dos abortos clandestinos, executados sabe-se lá em que condições e que vão enriquecendo os bolsos de alguns habilidosos sem qualquer tipo de qualificação cientifica para o acto. Votando Não, estaremos simplesmente a deixar as coisas como estão: aumento dos abortos clandestinos com consequências graves para a saúde das mulheres, desaconselhamento, falta de informação e de alternativas, criminalização com todo o peso moral que ela acarreta. O Não venceu o último referendo e temos visto o que as coisas têm mudado!
Votando SIM à pergunta do referendo ninguém vai erradicar o aborto (da mesma forma que não o erradicaríamos votando NÃO) mas vamos pelo menos adquirir algum controlo sobre a situação. Asseguraremos que as mulheres que decidem voluntariamente interromper uma gravidez indesejada não serão perseguidas pela justiça e terão oportunidade de ser esclarecidas e aconselhadas por profissionais competentes sobre o que têm intenção de fazer.
Um cartaz de uma das campanhas pelo Não pergunta qualquer coisa como isto: ‘Os seus impostos para financiar clínicas de aborto?’ ao que eu respondo: antes os meus impostos a salvar vidas de mulheres que decidiram abortar do que outros a ganharem dinheiro com essas mortes.
Para mal, um mal menor. Eu voto SIM.

domingo, fevereiro 04, 2007

Babel

As críticas que li sobre o filme ‘Babel’ do mexicano Alejandro González Iñárritu (o mesmo realizador de ’21 gramas’) são, na sua grande maioria, muito más (no sentido de desfavoráveis ao filme) e consensuais entre os críticos da imprensa portuguesa. Transversalmente, os argumentos de uns e outros tocam-se, muito resumidamente: abordagem pouco pertinente relativa aos malefícios da globalização, três histórias paralelas que se entrelaçam muito forçadamente, lugares comuns e estereotipados de cenários e personagens (parafernália asiática, folclore mexicano, exibicionismo barato, os árabes ‘bonzinhos’, a repressão policial ocidental, etc etc), uma série de outros argumentos que não adianta agora estar aqui a enunciar… ainda assim corri o risco de ir ver o filme.
Ao sair do cinema e apesar do aviso dos críticos relativamente à mensagem política sobre os malefícios da globalização, apresentada por eles como uma visão panfletária e pouco imaginativa por parte do realizador, eu não vi mais para além de uma narrativa que questiona sobretudo a problemática da Comunicação ou da falta dela. Mais do que um choque entre sociedades e culturas intrinsecamente diferentes eu deparei-me com personagens bloqueados em si mesmos, sozinhos, e com imensa dificuldade em fazerem-se comunicar àqueles que lhes são mais próximos apesar de partilharem o mesmo código social e cultural: dois irmãos que não comunicam por disputarem liderança no seio da família, um pai que não sabe como chegar ao coração da filha que se afunda em solidão por não conseguir comunicar os seus impulsos e desejos às pessoas da mesma geração, um casal que procura restabelecer contacto numa viagem exótica, um patrão que não aceita o pedido da empregada para assistir ao casamento do filho, um sobrinho que por medo não escuta a tia… É certo que Babel tem como pano de fundo o choque entre culturas distintas acelerado pelos efeitos da tecnologia e da globalização, mas creio que Iñárritu quer sobretudo fazer-nos reflectir sobre a falta de comunicação a uma escala, digamos, mais doméstica: quando não escutamos e não somos escutados pelo nosso interlocutor mais próximo como poderemos nós compreender alguém com origens e valores completamente distintos dos nossos? Se repararmos no acontecimento que desencadeia toda a narrativa, o disparo contra o autocarro, ele nasce exactamente da falta de comunicação entre os dois irmãos marroquinos que lutam entre si por uma espécie de liderança moral da família e não de um simples ‘entretenimento’ de crianças aborrecidas com o trabalho de levar as ovelhas a pastar para a montanha como nos faz crer Mário Jorge Torres no Público. É a partir desse episódio e das sucessivas falhas de comunicação entre personagens que os acontecimentos atingem a proporção desequilibrada que assistimos ao longo da história, ampliada na mesma medida em que a distância cultural se vai impondo e fazendo sentir.
Durante o filme lembrei-me muitas vezes de ‘O Estrangeiro’ de Camus (ainda de leitura fresca), tudo parece apresentar um grau de casualidade absurda: um impulso momentâneo tem força suficiente para condenar uma vida (no caso do filme, muitas vidas).
‘Babel’ não é um filme excelente, mas também não é a narrativa simplista e demagógica que apregoam. É preciso ler nas entrelinhas.

Adriana Barraza, 'Babel' (2006), Alejandro González Iñárritu

sublinhado (52)

«Não, meu filho», disse ele, pondo-me a mão no ombro. «Estou consigo. Mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si.»
Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros, insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer.
Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto. Mas, ao menos, segurava esta verdade, tanto como esta verdade me segurava a mim. Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera uma coisa e fizera outra. E depois? Era como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto... e dessa madrugada em que seria justificado. Nada, nada tinha importância, e eu sabia bem porquê. Também ele sabia porquê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, na sua passagem, tudo o que me propunha nos anos, não mais reais, em que eu vivia. Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que, diziam como ele, serem meus irmãos? Compreendia, compreendia o que eu queria dizer? Toda a gente era privilegiada. Só havia privilegiados. Também os outros seriam um dia condenados. Também ele seria um dia condenado. Que importava se, acusado de um crime, era executado por não ter chorado no enterro da minha mãe? O cão de Salamano valia tanto como a mulher dele. A mulher-autómato era tão culpada como a parisiense com quem Masson se casara, ou como Maria, que queria que eu me casasse com ela. Que importava que Raimundo fosse meu amigo, ao mesmo título que Celeste, que valia mais do que ele? Que importava que Maria oferecesse hoje a sua boca a um novo Meursault? Compreendia, compreendia ele este condenado? E que, do fundo do meu futuro... Quase atabafava, ao gritar estas coisas. Mas já me arrancavam o padre das mãos, já os guardas me ameaçavam. Foi ele, no entanto, quem os acalmou. Olhou-me uns instantes em silêncio. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Voltou-se e foi-se embora.
Sentia-me agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a cama. Julgo que dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um «noivo», porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberta e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução, e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio. (págs. 117 e 118)
O Estrangeiro (Livros do Brasil), Albert Camus

Fogueira de vaidades

O que estaria por detrás da crítica azeda do grande prosador brasileiro ao seu contemporâneo português
Por Cláudio Mello e Souza*

Num intervalo de duas semanas, dias 16 e 30 de abril de 1878, Machado de Assis publicou dois artigos sobre Eça de Queirós, na imprensa da corte. Em forma polida e elegante, como lhe era natural, mas com vigor insuspeitado em homem que, tal como o Conselheiro Aires, padecia de “tédio à controvérsia”, desfecha sobre o autor de O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio duas acusações de arremedo literário e outra de inconsistência e puerilidade dramáticas.

O Crime, afirmou Machado, seria imitação de La Faute de l'Abée Mouret, de Zola. E O Primo não passaria de cópia malfeita de Eugénie Grandet, de Balzac. O terceiro erro de Eça, erro “grave, gravíssimo”, teria provindo do uso do acaso para acionar e sustentar o entrecho dramático de O Primo. Estranho que Machado tenha embirrado com essa travessura do destino, ele que pediu ao acaso que pusesse, numa mesma hora de um mesmo dia, num mesmo vagão de trem, a bela Sofia e o arrebatado Rubião. Sem falar em outros providenciais acasos de seus romances e contos, das Primas de Sapucaia às Memórias Póstumas.

Deixemos de lado acasos e inconsistências. Tornemos ao plagiato. As críticas de Machado fizeram furor e devotos. Ainda hoje servem de motivo para especulação maliciosa e julgamentos imprudentes. Eça de Queirós tomou conhecimento dos furores machadianos. Não lhes quis dar importância, porém. Durante dois anos, guardou silêncio, parente próximo do desdém. Fingidamente ou não, pareceu desinteressado de tão miúda polêmica.
Ao lançar a segunda edição do Crime, dois anos depois, tratou de precedê-la de uma nota em que, finalmente, respondia aos críticos. Mais exatamente ao crítico, o bruxo do Cosme Velho, que por essa época ainda não havia sido batizado de maneira tão ternamente lúgubre. Com a ironia de praxe, mas com impaciência e certa ponta de azedume, Eça desabafou:

“Os críticos inteligentes (epa!) que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l'Abée Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, que foi talvez a origem de toda a sua glória. A semelhança casual (desconfio desse casual) dos dois títulos induziu-os em erro. Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má-fé cínica poderia assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama duma alma mística, ao Crime do Padre Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa.”
Concordo, incomodado, com a reação de Eça. Quanto ao Crime do Padre Amaro, Machado errou gravemente ao aproximá-lo de La Faute, de Zola. As semelhanças entre os dois livros são poucas, aparentes e enganosas. Tenho hoje a certeza de que são nenhumas, excetuadas certas breves passagens que devem ter marcado fundamente Eça de Queiroz, e que ele na verdade copiou, por não ver nisso nada de mal. Foi resultado de apaixonada admiração. Ou decorrência do contaminatio que deixou Virgílio levar-se pelos ventos da Odisséia ou pelos ecos da Ilíada.

Acho boa razão para explicar as implicâncias de Machado. A de ter sido ele um crítico conservador; pior, moralista. Quem leu a sua pequena obra crítica deve ter chegado logo à conclusão a que cheguei. Toda essa visão conservadora, visão de seguidor de Fichte, está mais sucinta e obviamente resumida num artigo que leva o título de “Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de nacionalidade”.

Na parte em que ele trata do romance brasileiro, ao lado de preferência de gosto discutível, compensada por observações de fina sagacidade, há uma espécie de declaração de princípios, em que ressalta uma tomada de posição preconceituosa em relação às novas influências vindas da França: “As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão, de princípio a fim, irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa escola francesa (grifo meu), ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que já é de notável mérito”. Machado de Assis recusava-se, com fingida indiferença, a referir-se à escola realista. Tem reação de ofendido pudor.

A relação de Machado com Eça começou por escrito e começou mal. O ciúme levou-os à inveja; a inveja, à impaciência; a impaciência, ao azedume. Com relação ao azedume, restou-me a impressão de que, chegados os dois à velhice, os atritos hajam sido atenuados por obra devota dos amigos. Concluí assim, depois de reler a carta que Machado escreveu a Henrique Chaves, na qual lamentou o fato de a morte suprimir talentos que ainda teriam muito a criar. Como foi o caso de Eça, que Machado definiu como “o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido”. E Machado prossegue, ao falar da morte de grandes talentos:

“Onde ela é sem compensação é no ponto da vida em que o engenho subido ao grau sumo, como aquele de Eça de Queirós, – e como o nosso querido Ferreira de Araújo, que ainda ontem fomos levar ao cemitério – tem ainda muito que dar e perfazer. Em plena força da idade, o mal os toma e lhes tira da mão a pena que trabalha e evoca, pinta e canta, faz todos os ofícios da criação espiritual. Por mais esperado que fosse esse óbito, veio como repentino. Domício da Gama, ao transmitir-me há poucos meses um abraço de Eça, já o cria agonizante. Não sei se chegou a tempo de lhe dar o meu. Nem ele, nem Eduardo Prado, seus amigos, terão visto apagar-se de todo aquele rijo e fino espírito, mas um e outro devem contá-lo aos que deste lado falam a mesma língua, admiram os mesmos livros e estimavam o mesmo homem”. Não me lembro, em literatura brasileira, de necrológio mais comovido e verdadeiro. Creio até que sincero.

Manuel Bandeira, no artigo que escreveu para o Livro do Centenário, lembra que no dia 24 de agosto de 1900, dias depois da morte de Eça e de Ferreira de Araújo, a Gazeta de Notícias deu “toda uma página de colaboração em homenagem ao grande romancista: artigos de Araripe Júnior, Machado de Assis, Henrique Neto (...), versos de Osório Duque-Estrada, Luís Guimarães Filho e César Monteiro; ilustrações de Julião Machado (retrato de Eça e algumas figuras do Primo Basílio)”. Concluiu com a seguinte frase: “Machado de Assis dizia, lembrando-se sem dúvida de si próprio e de sua severa crítica ao Primo Basílio: ‘Tal que começou pela estranheza, acabou pela admiração’ ”.

A pena que criticou Eça foi a mesma que dele se despediu com admiração e encanto.
Árcades ambos.
*Jornalista, poeta, escritor e autor de Helena de Tróia – O Papel da Mulher na Grécia de Homero.

sábado, fevereiro 03, 2007

As matriarcas (4)

Estar de volta a São Pedro da Missões trazia-me antigas recordações. Não a mim exatamente, mas à Olívia da minha infância, a menina que testemunhou diversas histórias sem entendê-las muito bem.
Havia mais do que as lembranças de vestidos e passeios, das mãos hábeis de vovó Totonha e de sua força. Havia também a “loucura” de tia Margarida, a fragilidade das figuras masculinas – vovô Nico, tio Tatá e o meu próprio pai.
Ah, tinha também D. Lola, minha bisa! O ano que morei em São Pedro foi o primeiro e último do nosso convívio. Eu lembro-me tão bem de seus cabelos de nuvem – branquinhos e longos, muito longos. Eu passava a tarde a penteá-los e depois os trançava. Ela dormia na cadeira de balanço enquanto eu fiava suas madeixas. Bisa Lola estava quase sempre dormindo, rezando ou comendo. Quando morreu, pesava mais de cem quilos e tinha uns noventa anos.
Certo dia, vovó Totonha pediu que eu a acordasse para lanchar. Chamei e ela não respondeu. Brinquei nas suas tranças e ela lá, imóvel. Cutuquei e seu corpo estava gelado. Não demorei a perceber que o sono que dormia não era somente profundo, mas eterno. Foi então que descobri que a morte é fria e silenciosa.
Gritei por mamãe e vovó. Pedi que acudissem. Até tia Margarida veio ver o motivo de tanto barulho. Ao perceber o que acontecia ficou trêmula num cantinho da sala, repetindo sem parar, numa voz débil e baixa: “deixem a mamãe dormir”.
Vovô não estava em casa. Mamãe e vovó carregaram a bisa até o quarto. Foi grande a confusão. Mamãe não sabia o que fazer primeiro e numa rapidez incrível, deu o remédio de tia Margarida e depois fez com que deitasse; puxou minha mão e disse-me para subir na bicicleta e trazer ajuda.
Vovó Totonha não verteu lágrima, ficou firme o tempo todo. Com a ajuda de mamãe deu banho e vestiu a mortalha na bisa, puxou a reza, encabeçou o cortejo até o cemitério. Mais atrás, as mulheres carpideiras seguiam os homens. Foram necessários seis deles para carregar o caixão.
Depois de tudo, três coisas nunca saíram da minha memória: o cheiro de lavanda na casa, Tia Margarida na chuva e claro, a primeira vez que vi Vovó Totonha chorar.