segunda-feira, outubro 18, 2010

Tolstói: a literatura que não é literature


Em conflito permanente com a sua arte, Tolstói nos mostra como o nexo inevitável entre literatura e vida social pode se transformar numa vantagem artística

Rubens Figueiredo

Nos 60 anos que vão do início da década de 1850 até 1910, data de sua morte, Liev Tolstói sempre escreveu contos e romances. Ao contrário do que se repete tantas vezes, Tolstói jamais parou de escrever ficção e, ao morrer, deixou inéditas ou em andamento obras-primas como Hadji-Murat ou Padre Sérgio. O mal-entendido resulta, em grande parte, das objeções que o próprio Tolstói, desde jovem, levantou contra a atividade e contra o papel de um escritor no quadro da sociedade russa e do mundo moderno em geral.

Se Tolstói nunca fez segredo do seu desconforto no convívio com escritores nem do seu mal-estar por ser autor de romances e contos, suas críticas só se tornaram mais veementes e mais elaboradas a partir do romance Anna Kariênina. Ao redigí-lo (na década de 1870), Tolstói chegou a declarar numa carta: “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”. E daí para frente, construiu uma verdadeira rede de questionamentos dirigidos não só contra a literatura, mas contra a arte ocidental, em particular, mais tarde reunidos no livro O que é arte?

Drasticamente censurado pelo governo czarista e tratado, ainda hoje, com desdém ou perplexidade, esse livro, no entanto, contém hipóteses que merecem mais atenção. Sobretudo quando Tolstói põe em dúvida a reivindicação, tão cara ao século 20, de uma autonomia para a arte e quando expõe suas desconfianças sobre o significado de tal pretensão. E também quando mostra, como que pelos bastidores das obras, que ao tentar se esquivar de seus efeitos formadores e em última instância educadores, a arte abre espaço para a manipulação e o autoritarismo, com um caráter de classe. A rigor, Tolstói acusa a arte de servir como legitimadora das desigualdades sociais, reforçar as distinções de classe e realimentar o mecanismo que reproduz as estruturas da sociedade.

Com isso em mente, podemos entender melhor, por exemplo, a marcante tendência antiartística presente na prosa de Tolstói desde os seus primeiros textos. Os Contos de Sebastópol, por exemplo, escritos na década de 1850, recapitulam episódios da árdua campanha militar russa na Criméia e no Cáucaso, da qual Tolstói participou como oficial. Sem respeitar fronteiras ou hierarquias, esses três contos já misturam ficção, memória, reportagem, etnografia, polêmica e relato de viagem, numa prosa que tende a ser despojada de requintes poéticos e até bruta, na sua objetividade. “Nunca vi lábios cor de coral, mas vejo lábios da cor de tijolo”, diz numa anotação, feita à margem de seus rascunhos de Infância, livro de memórias escrito pouco antes.

Em Contos de Sebastópol, a exemplo de obras posteriores, Tolstói mergulha o leitor num ambiente onde estão concentradas e em conflito convenções retóricas diversas. Pois os contos querem ser lidos ora como ficção, ora como etnografia, ora como narrativa de viagem, ora como polêmica política. Em suma, desde o início de sua carreira, Tolstói recusa, tanto para o autor como para o leitor, o privilégio e os prazeres da posição de um observador desinteressado, prazeres supostamente reservados à arte. Em troca, lança sobre o autor e o leitor todo o peso da responsabilidade daquilo que está sendo representado. A fim de minar a autonomia e o distanciamento artístico, sua tática é a de uma arte que é e não é arte, uma literatura que é e não é literatura.

Portanto, dizer que Tolstói abandonou a literatura parece uma forma de esquivar-se da consistente crítica que ele formulou ao papel histórico da arte, em geral. Da mesma forma, à luz das circunstâncias históricas, retratá-lo como um doutrinador religioso parece um expediente destinado a neutralizar a potência da sua crítica ao mundo moderno. Na verdade, não se pode fazer justiça a Tolstói, nem aos escritores russos em geral, sem uma ideia da posição da Rússia no mundo, naquela época.

O trauma da modernização

A introdução de modos de vida capitalistas e europeus na Rússia foi especialmente traumática. Trata-se de uma sociedade que tinha presentes formas de vida próprias, de feição e conteúdo orientais e medievais, e que precisava modernizar-se aos saltos, e não gradualmente, como haviam feito os países ocidentais dominantes, seus modelos. O choque foi ainda maior porque a Rússia era um país orgulhoso de suas tradições, provido de uma religião própria e de formas muito peculiares de organização social. Se a isso acrescentarmos as ambições imperiais dos czares que, a partir do século 17, levaram a Rússia a expandir as fronteiras e russificar populações vizinhas, podemos ter uma ideia da intensidade do conflito vivido por aquela sociedade, ao sentir-se em posição de inferioridade em face dos países ocidentais dominantes.

Em contrapartida, a consciência de que era preciso transformar a fundo a sociedade russa gerou um debate intelectual de uma riqueza e de um vigor talvez sem paralelo. Trata-se do confronto entre os projetos da modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel Aarão Reis bem definiu a situação). Em virtude da censura, mas também de fatores culturais mais profundos, os canais de expressão desse debate não eram os mesmos dos países ocidentais e incluíam, com grande peso, a literatura e a teologia.

Longe de se limitar às palavras, tal debate, em regra, desaguava numa militância ferrenha, da qual os escritores participavam, sem dissociá-la de cada uma de suas escolhas estéticas. Por outro lado, nesse debate, as linguagens artística e a religiosa contêm muito mais do que aquilo que as sociedades ocidentais estavam habituadas a atribuir a elas. Tais linguagens, na Rússia, não eram um mero disfarce, tampouco uma metáfora, mas sim um veículo poderoso em si mesmo. Pois permitiam pôr em questão os pressupostos não só do discurso da ciência dos países dominantes − sentida como ponta de lança da sua dominação −, como também dessas mesmas linguagens, em seu modelo ocidental.

Tolstói, portanto, foi um dos expoentes desse debate nacional e sua literatura, assim como suas polêmicas, não podem ser bem entendidas na ausência desse componente. Da mesma forma que pôs em questão a arte estabelecida, Tolstói foi um crítico ferino da religião institucional. O rito ortodoxo é duramente desmistificado no romance Ressurreição (de 1899), por via da técnica do estranhamento (da qual Tolstói foi o mestre, segundo o teórico russo Chklóvski). Mas já em Guerra e paz e Anna Kariênina, romances anteriores, Tolstói se mostrou implacável com a piedade e a caridade religiosas das classes privilegiadas e com seus modismos religiosos.

Por outro lado, as últimas páginas de Ressurreição dão prova de uma desenvoltura nada cerimoniosa com os dogmas, ao emendar livremente as palavras de Cristo, no Evangelho. De resto, será muito difícil encontrar algum teor sobrenatural, milagroso ou criador na forma como Tolstói emprega a palavra “Deus” (a qual, aliás, está longe de ser frequente). Por último, vale a pena sublinhar que Górki, em geral um observador muito agudo, deixou registrada, em suas lúcidas memórias sobre Tolstói, a impressão de que estava diante de um ateu.

A ficção como experiência de pensamento

De todo modo, o que importa é que literatura e religião, no caso de Tolstói − como em muitos escritores russos −, são linguagens apontadas para uma intervenção concreta nas formas de vida presentes. E os três grandes romances de Tolstói denotam a agudeza crescente da sua visão crítica. Guerra e paz tende a mostrar uma imagem menos questionadora da nobreza russa: em face do inimigo externo − as tropas de Napoleão −, as diferenças internas ficam um pouco na sombra.

Por outro lado, os expedientes mentais usados pelos países dominantes para justificar sua agressão e sua superioridade, em relação aos russos, são postos em relevo. Anna Kariênina já examina uma sociedade em crise − conjugal, familiar, cultural e social. As classes populares aparecem como uma brecha, uma janela: ou uma fonte de ar puro e renovador para o herói nobre, ou um índice do conflito social subjacente. Já em Ressurreição, o conflito é aberto, declarado e frontal. O romance trata do mundo prisional e judiciário, no qual as classes populares são segregadas e eliminadas, sob a bênção do discurso racional e humanista da justiça, da lei e do progresso.

Todavia, seria enganoso supor um fio de progressão contínua que uniria os três grandes romances. Em Guerra e paz, há mais do que simples prenúncios de tudo aquilo que virá em Ressurreição. Observando em retrospecto, percebe-se que as mesmas questões se apresentavam a Tolstói desde o início e, no máximo, pode-se dizer que as suas hesitações diminuíram com o correr dos anos.

Mesmo no aspecto da linguagem, as inquietações do escritor levaram-no, por exemplo, a escrever, quase ao mesmo tempo, obras tão díspares como o conto O prisioneiro do Cáucaso e o romance Anna Kariênina. No conto, Tolstói experimenta uma prosa de fortíssima concisão e simplicidade, com marcante predominância do período simples e sem nenhuma digressão. Um estilo elaborado a custo e com rigor, à luz das narrativas orais populares e dos textos destinados à alfabetização de crianças camponesas − textos que o próprio Tolstói criava, junto com seus pequenos alunos. Em contraste, no romance Anna Kariênina, o autor lança mão de uma frase de arquitetura complexa, longa, desdobrada em ramificações sintáticas de grande fôlego. Qual dos dois escritores é Tolstói?

Tudo indica que Tolstói − a quem tantos acusam de doutrinário − não tinha resposta pronta e fixa para as questões que ele mesmo formulava. Em troca, não se cansava de se impor problemas, nem de arriscar respostas fortes. Em boa parte, seus romances e contos constituem experiências de pensamento, testes e hipóteses, experimentos para os quais convoca os seus leitores. As constantes hesitações e dúvidas de seus personagens dão um bom testemunho desse processo.

Isso faz mais sentido ainda se pensarmos que, num célebre comentário a Guerra e paz, Tolstói afirmou que todos os livros russos relevantes se desviavam dos modelos literários europeus.

Ou seja, os problemas estavam postos, à frente de todos, mas a forma de pensar sobre eles tendia a vir pronta dos países dominantes, não só nos modelos da arte, mas também nos modelos do próprio pensamento social. A resistência de Tolstói à arte literária caminha em paralelo à hipótese de que narrar compreende a possibilidade de criar formas específicas de pensar e de conhecer. É bem possível que por isso ele nunca tenha sido capaz de abandonar a literatura, a despeito das suas repetidas e sinceras objeções e queixas contra a arte.

Hoje, quando a literatura carece tanto de encontrar o seu caminho e de renovar o seu papel crítico no mundo contemporâneo, pode ser de grande ajuda reexaminar com olhos menos arrogantes todo o pensamento e o rico percurso de Tolstói.

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