Quando dei por mim, estava de volta ao meu quarto, na pensão do Agenor. Levantei-me sobressaltada e sentei-me na cama e qual foi o susto quando vi o Tiziu com aqueles olhos arregalados, sentado na poltrona de veludo, a olhar para mim:
- O que houve? E o que você faz aqui, Tiziu?
- Não está lembrada, D. Olívia? A gente estava andando de bicicleta lá pras bandas do Largo da Esperança quando a senhora passou mal e desmaiou. Acho que foi o sol. Estava quente por demais e a senhora não deve de tá acostumada.
- Não deve estar acostumada!
- Pois não foi o que eu disse? Então, voltei correndo na bicicleta, busquei a charrete e o Nhô Agenor para ajudar.
- Ah, sim! Agora estou me lembrando... Diga-me, faz muito tempo que estou dormindo?
- Não. Coisa de meia hora.
- E você ficou aqui esse tempo todo, velando meu sono?
Acho que a comoção na minha voz o deixou enrubescido.
- É. Queria saber se a professora tava bem – disse um Tiziu todo envergonhado.
- Estou ótima, Tiziu. Agora você pode ir. Descanse um pouco e faça seus deveres de casa. Mas antes, pegue ali a minha bolsa.
Ele foi pegá-la, todo preocupado.
- Aqui está o seu pagamento.
- Não, D. Olívia. Não precisa pagar. A gente nem chegou a fazer o passeio direito.
- Pegue. Esse é o combinado. Além do mais, você ainda teve o trabalho de voltar para buscar ajuda. Vamos, vamos. Pegue.
Relutante, ele esticou a mão para receber o dinheiro. Eu o puxei e disse-lhe:
- Muito obrigada. O dinheiro é seu para comprar o que quiser, mas não vá gastar com bobagens, sim?
- Pode deixar, D. Olívia.
Quando Tiziu bateu a porta, fiquei lembrando-me de tia Margarida, da procissão, de seus surtos, de sua dor.
A primeira vez que vi tia margarida se descontrolar foi na morte da bisa Lola. Mais tarde, na procissão e depois disso, ela nunca mais foi a mesma.
Antes de tudo isso começar, ela dava aula no Grupo Escolar. Era uma excelente professora. As crianças adoravam-na. Lembro de tia Guidinha sempre perfumada, usando saias esvoaçantes. Ela tinha pernas escandalosas. Ela gostava de poesia e me fez ter gosto por literatura. A primeira vez que li Bandeira, deparei-me com um poema seu que dizia assim:
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos era muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do
[corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Disse a ela que achei Tereza a sua cara e que mesmo sem conhecê-la, Manuel Bandeira escrevera aqueles versos para ela. Ela divertia-se com essa minha idéia.
Quando tia Margarida surtava, escutar a mim declamando esse poema era uma das poucas coisas que a acalmava.