terça-feira, outubro 31, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (13)

sobre sonhar:

nunca soube o nome das paisagens que topografam
os meus sonhos. não é coisa grave nem importante. pecado é
perder-me nelas e esquecer-me repetidamente do presente.
*

Lipovetsky

Ao ler ‘A Era do Vazio’ de Gilles Lipovetsky, senti um misto de atracção e repulsa pelo seu raciocínio. Concordo analiticamente com ele, especialmente nos capítulos dedicados à dissecação do Modernismo e do Pós-Modernismo, mas discordo quase sempre dos juízos que imprime às análises, quase catastróficos. Fica-me a sensação que se déssemos o livro a ler a um extra-terrestre ele virava costas na hora e iria tentar fazer amigos para outro planeta. Há no discurso de Lipovetsky um quê de saudade de uma sociedade ‘holista’, como lhe chama, assente em valores palpáveis, concretos, concentrada num todo social e um descrédito completo no modo de viver contemporâneo, que considera extremamente ‘cool’, narcísico e hedonista, onde o indivíduo passa a ser o centro das atenções.
Há um pessimismo latente no texto de Lipovetsky que me chateia. Aponta-se o dedo constantemente, mas raramente se vislumbra alguma solução. Acho que o panorama não é tão dramático, todas as sociedades possuíram e possuem os seus calcanhares de Aquiles e, apesar da miséria que assistimos diariamente, creio que nunca houve uma percentagem tão elevada da população com a qualidade de vida que este mundo narcísico e hedonista nos oferece... para provar o que estou a dizer basta recuarmos apenas 60 ou 70 anos, muito provavelmente estaríamos todos a plantar as batatas que não teríamos na sopa... não sei se seríamos mais ou menos felizes, sem dúvidas que seríamos diferentes, não sei se para melhor ou pior. E definitivamente, não teríamos a oportunidade de ler o Lipovetsky (a não ser que fôssemos filhos aristocratas, ou burgueses, da dita sociedade 'holista').
imagem de Olivier Roller

segunda-feira, outubro 30, 2006

imagens que se colam ao peito (15)

German farmers fleeing their burning houses after the battle between German and American troops, Março 1945, Robert Capa

CANÇÃO

Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas
Umas vivem em palácios, outras em mansardas;
contudo não há lugar para nós, minha querida, não há lugar para nós.

Uma vez tivemos uma pátria e julgávamos que era bela.
Olha para o mapa e lá a encontrarás;
mas não poderemos regressar tão cedo, minha querida, não poderemos regressar tão cedo.

O cônsul deu um murro na mesa e disse:
se não têm passaportes estão oficialmente mortos;
mas nós ainda estamos vivos, minha querida, ainda estamos vivos.

Lá em baixo no adro um velho teixo
todas as primaveras floresce de novo:
e os velhos passaportes não florescem, minha querida, os velhos passaportes não florescem.

Fui a um comissariado e ofereceram-me uma cadeira,
disseram polidamente para voltar no ano seguinte:
mas onde iremos agora, minha querida, onde iremos agora?

Fui a um comício público; o orador levantou-se e disse:
se os deixarmos cá dentro, roubar-nos-ão o pão de cada dia;
estava a falar de mim e de ti, minha querida, a falar de mim e de ti.

Ouves um ruído como um trovão roncando no céu?
É Hitler sobre a Europa dizendo: "Eles têm de morrer!"
Nós estávamos no Seu pensamento, minha querida, estávamos no Seu pensamento.

Vi um cão de luxo de jaqueta apertada com um alfinete,
vi uma porta aberta e um gato entrando;
mas não eram judeus alemães, minha querida, não eram judeus alemães.

Desci ao porto e parei no cais
vi os peixes a nadar. Como são livres!
a dez pés de distância, minha querida, só a dez pés de distância.

Passeei pelo bosque; há pássaros nas árvores,
não têm políticos e cantam livremente.
Não são da raça humana, minha querida, não são da raça humana.

Sonhei que vira um edifício com mil andares
mil janelas e mil portas;
nenhuma delas era nossa, minha querida, nenhuma delas era nossa.

Corri à estação para apanhar o expresso,
pedi dois bilhetes para a Felicidade;
mas todas as carruagens estavam cheias, minha querida, todas as carruagens estavam cheias.

Fui parar a uma grande planície, no meio da neve a cair:
dez mil soldados marchavam de um lado para o outro,
olhando para mim e para ti, minha querida, olhando para mim e para ti.

W.H. Auden
Rosa do Mundo (Assírio & Alvim)
trad. Jorge Emílio

sexta-feira, outubro 27, 2006

Quando criança minha mãe dizia:
Enxuga essas lágrimas, menina.
Ainda acabas por inundar o mundo
.
Pela janela, eu vejo ruas alagadas.
Chove muito lá fora.
E eu, mulher feita, me pergunto:
- Será que Deus também chora?

Confessionário (33)

'Nan one month after being battered', 1984, Nan Goldin

Minha amiga, peço-te desculpa pela demora na resposta. Sei que devia ter existido da minha parte uma resposta anterior, mas se não o fiz foi por pura falta de tempo para responder como mereces. Porque escrever-te não é uma coisa que faça levianamente. Exige de mim. É uma escrita viva, feita de emoções tão fortes e à flor da pele que por vezes só alguma distância me permite analisar os factos com alguma imparcialidade. Fazendo isso, tento evitar que ambos apaguemos a luz ao mesmo tempo e de repente as nossas vidas se transformem numa imensa escuridão. Quando te sinto vulcânica como na última confissão, vejo-me compelido a cuspir fogo contigo, não me faltam motivos para odiar a compostura e tu sabes disso. Seria muito fácil para mim dizer-te: ‘Lu, espera, eu compreendo a tua indignação e quero embarcar no mesmo navio.’ Mas tu sabes que as coisas não são assim tão lineares. Certamente vais odiar o que te vou dizer de seguida, mas tenho que o fazer como bom amigo que tu sabes que sou: não vale a pena quereres transformar-te numa pessoa que não és. A infelicidade será triplicada, o peso da vida insuportável e a máscara que tu dizes que deixaste de usar colar-se-á à tua face novamente, mas desta vez pintada de vermelho e negro substituindo o azul celeste da menina boazinha que tu dizes que morreu.
Eu não sou ninguém, absolutamente ninguém para dar lições de vida a seja quem for. Não sou um bom exemplo, não sou um poço de virtudes, tenho mil e um defeitos, coisas que eu mudaria em mim e outras que provavelmente nem mudaria apesar de parecerem monstruosas aos olhos de alguns. Como na tua carta, muitas vezes tenho vontade de dar um chuto na vida e virar esta merda toda do avesso. Digo muitas vezes a mim próprio, devia era fazer como este ou aquele, filhos da puta inatos, cuja consciência tem para eles um peso semelhante ao do algodão enquanto para nós, em situação semelhante, seria como uma imensa viga de metal caindo sobre as nossas cabeças do alto de uma daquelas torres de Manhattan. O que é que eu pretendo dizer-te com isto tudo minha amiga? Quero dizer-te que compreendo bem a tua indignação perante a fraqueza, perante a covardia, perante o desperdício da vida. Quero dizer-te que compreendo os enganos, as traições. Quero dizer-te que compreendo o porquê dessa culpa que falas e acrescento que não há nada mais terrível do que sentirmos culpa e medo de alguma coisa, nada nos tira mais liberdade do que isso, e quando nos vemos embrulhados em sentimentos tão atormentadores o espírito asfixia e, sim, depois é uma luta involuntária pela sobrevivência, darwinismo puro como bem descreveste.
Acho que me concedes a presunção de afirmar que te conheço profunda e verdadeiramente. Eu concedo-te o mesmo. Conheces-me melhor do que a grande parte das pessoas que me cruzo diariamente. Luciana, tu não és a vilã da tua história, por muito que te custe aceitar esse destino. Definitivamente não és. Também não és a menina boazinha e educada, o poço de virtudes inviolável e que oferece sempre a outra face. Só o Outro a ofereceu e porque sabia que o Pai o pouparia e lhe ofereceria o reino dos Céus. Tu és uma sobrevivente, é o que tu és. Tu e grande parte de nós. Somos quase todos sobreviventes. Humanos cansados, fustigados, magoados. Humanos cuja dor por vezes tão profunda, obriga-nos a odiar o mundo, a vida, o outro. O ódio não é um sentimento mau ao contrário daquilo que todos pensam. É o melhor detergente para a alma que conheço. O ódio é aquele grito de Munch que publicaste noutro dia. Peço-te para que grites bem alto e projectes esse ódio bem forte contra o Presente. Arranca-o do mais profundo recanto do teu corpo e cospe-o de uma vez por todas. Quando o vires desenhado na tua frente, quando lhe vires o rosto, saberás amá-lo, e a verdadeira Luciana abraçar-te-á como aquela mulher que uma vez me descreveste, num movimento simétrico.
A Nan Goldin tem uma imagem de que gosto muito. Auto retratou-se com um olho violentamente esmurrado depois de ter sido agredida pelo seu companheiro da época. Há pormenores interessantíssimos na fotografia. Ela pinta os lábios de encarnado forte, espalha um creme hidratante pela face para que a pele brilhe, coloca um flash a meio metro de si para que o impacto da luz branca sobre a pele luzidia seja ainda mais forte. Fá-lo numa atitude de desafio, de ódio, de intolerância… fá-lo para não esquecer, para não consentir… fá-lo como um grito de revolta, fá-lo por quer que sejamos seus cúmplices, quer que digamos com ela que aquele episódio não voltará a repetir-se. No dia em que vi pela primeira vez essa imagem pensei, o que leva uma mulher neste estado a fotografar-se com esta frieza? A resposta que me ocorreu foi algo de muito parecido com o fim da tua confissão: ainda não perdeu a coragem!
Sabes, as fotografias mais recentes da Nan Goldin são bem mais pacíficas. É estranho constatar que uma mulher que viveu e sentiu tão intensa e violentamente o drama humano e que teve a coragem de o expor ao mundo, seja hoje capaz de fotografar coisas tão serenas como uma jarra de gladíolos ou um bando de pássaros planando ao som crepuscular. Parece estranho, há qualquer coisa ali que não bate certo, como se tivéssemos saído do purgatório e encontrássemos as portas do paraíso abertas. Sabes do que se trata, minha amiga? Sabes que coisa estranha é essa? É tão e somente a coisa mais bela e maravilhosa que possuímos enquanto reles seres humanos que somos: a capacidade que cada um de nós possui de regenerar através do amor. O nosso corpo fá-lo a todo o momento em silêncio. Repara, cortas-te com uma faca por acidente quando estás a preparar o jantar. Sai imenso sangue. Dói. Acalmas colocando a mão debaixo da torneira para que a água fria possa limpar a ferida. Depois desinfectas, colocas um penso rápido. Passados uns dias retiras o penso, olhas o corte em fase de cicatrização. A mão ainda está um pouco inflamada, mas a pele começa a evidenciar o amor que o teu corpo lhe tem, já não corre sangue. Aos poucos e poucos, sem que te apercebas, as células agredidas vão sendo substituídas por outras novas, semelhantes a todas as que povoam a tua pele. Passadas umas semanas apenas uma ligeira marca permanece para te lembrar que deves ter cuidado quando estás a cozinhar. Mas não é só isso que essa pequena cicatriz te lembra, ela tem o mesmo poder da fotografia da Nan Goldin, existe para te provar que sabes amar, que podes seguir o exemplo do teu corpo e regenerar como ele. Sei que um dia me falarás de simples jarros de gladíolos, ou de um bando de pássaros planando ao crepúsculo, ou de outra coisa qualquer digna do teu amor. Pensa nisto que te digo, promete-me que o farás de coração aberto. Despeço-me parafraseando a Lia, com um beijo na alma. Espero um sinal teu. Se ele não vier e o teu desejo for o silêncio como pressenti na última carta, aviso-te que não o respeitarei. Continuarei a escrever o nosso diálogo esperando resposta atrás de resposta até ao dia em que, de novo, eu não seja o único a acreditar. Eu também não perdi a coragem minha amiga. E lembra-te, até porque o tens bem gravado na alma neste momento: só há uma coisa na vida que exige coragem, AMAR ... e é por não termos colhões que o mundo é a miséria que conhecemos.

[Confessionário (32)]

quinta-feira, outubro 26, 2006

Confessionário (32)

Nota de rodapé

Incrível como a culpa é um sentimento cambiante, oportunista e desleal.
Uma coisa é sentirmo-nos culpados porque o chute que demos em alguém quebrou-lhe a canela; outra, totalmente absurda, é saber que um torturador durma pacificamente, imbuído do espírito de dever cumprido, enquanto os prisioneiros torturados varem as noites atormentados pela culpa.
Vítor, lembra que uma vez falei-te do fascínio, da identificação sedutora que sinto pelos vilões? Os bonzinhos são tão aborrecidos, enfadonhos... não, eu não gosto de gente boazinha, definitivamente.
Bem, e qual a relação disso com a culpa? Meu Vítor, hoje, comecei a enxergar uma luz no fim do túnel.
Dei-me conta que passei a vida toda alimentando uma personagem que eu não criei! Com o tempo, eu podia ter negado alimento a essa criatura e tê-la matado à mingua, mas não, fui permissiva e construí um monstro de muitas bocas e muito, muito voraz. Fui salva por um triz. Quando notei que a personagem estava assumindo o meu lugar no mundo, resolvi me rebelar. A isto chamo instinto de sobrevivência, darwinismo puro e simples.
O fato é que eu sempre senti muita culpa de ser uma vilã. Quantas vezes, querido, eu não me violentei brutalmente para agradar os outros. Não era medo, era o mais genuíno sentimento de culpa a me corroer.
Disseram-me que eu deveria ouvir, estimular, dar colo, oferecer apoio, ser companheira. E eu mergulhei fundo nesse ensinamento e cabulei as aulas sobre limites.
Mesmo quando estava cansada, destruída, sangrando, eu sempre dava um jeito de ser legal, de estar disponível. Eu sentia-me culpada só de pensar em dizer a um amigo: “agora não posso”. Eu sempre pude mesmo quando não podia nada. No dia em que a situação se inverteu, as pessoas ao meu redor não se sentiram culpadas por não corresponderem e eu, então, caí nas trevas.
Vítor, tudo, absolutamente tudo fez sentido: Osman Lins, o Avalovara, o caos, a constatação sábia de que os começos jazem nas sombras. Não dá pra ver a luz se não aprendermos a usar a escuridão de forma criativa. Entendi A. e V., a Valentina, o diário de G.H. Sobre isso especificamente depois lhe escrevo, porque acho que não vou mais continuar esta série, acho que ela não faz mais sentido... não sei. Isso é assunto para depois.
Hoje eu parei de chorar, meu amigo. Parei de sentir pena de mim. Hoje eu tirei a máscara: a boa moça tirou férias e queira Deus que seja para sempre.
Pela primeira vez, talvez em toda a minha vida, eu tenha me odiado de fato, porque eu odeio gente boazinha e eu fazia parte desse time – os bonzinhos. Então, a partir de hoje não sou mais boazinha. Eu não sei o que eu sou ainda, mas boazinha de jeito nenhum!
Já te adianto, algumas pessoas me perguntarão: essa mudança se deu assim, num clique, de uma hora para outra?
Ah, Vítor, gostaria que me visses agora, as faíscas loucas dos meus olhos! Um clique? Há 35 anos, meu Vítor. 35 anos. Sendo que nos quatro últimos, vivo numa tristeza sem precedentes. Há 4 anos, pelo menos, eu agonizo em silêncio. Ninguém sabia, claro, eu me sentia culpada por isso também.
Hoje eu sorrio, querido. Eu queria logo que soubesses disso. Eu prometi esta partilha. Ainda não é o riso farto, mas será em breve. Eu posso sentir. Afinal, antes tarde do que nunca, como diz o ditado. E saiba, Vítor, nunca é tarde para essas descobertas.
Eu ficaria extremamente decepcionada comigo, se lá adiante, eu olhasse para trás e constatasse que, por inércia, desperdicei tanta vida por não ter rompido os grilhões que me escravizavam.
Eu ainda não perdi a coragem.

Poetrix (4)

Na espiral da vida,
O tempo dá tantas voltas:
inspira, expira.


(Luciana Melo 26/10/01)

Teorias amorosas (8)

Ele quis ver com os próprios olhos. Há menos de um mês atrás, ela andava se arrastando pela casa, chorando as mágoas, sentindo a sua falta e agora, soube pelos amigos em comum que andava em grandes noitadas.
- E é assim que você me ama?
- ‘Alguém’ me ensinou a máxima: vai doer, mas depois passa. Passou.
- Tempo rápido o teu, hein?
- Não culpe o tempo. Ele não mitiga nada. Não é atenuante. Seu único mérito é deslocar o foco da nossa dor. E quer saber? Vá à merda.
- Que ridículo. Depois de velha, ficou obscena.
- Obsceno é o abandono. E velha é a tua mãe.

Teorias amorosas (7)

Ela nervosa: “Você disse que me amava, caralho”.
Ele impassível: “Exatamente”.
Ela histérica: “Exatamente o quê?”.
Ele mais impassível ainda: “Amava. Não amo mais”.

Teorias amorosas (6)

Vivia pelos cantos, amuado, murcho, na defensiva. Era refratário ao mundo ao seu redor. Dormia muito, tanto que já não era capaz de distinguir os dias.
Tentei contato:
- Que tal uma caminhada?
- Não tenho vontade.
- Já sei. Vamos sair, chamamos os amigos, tomamos uma cerveja.
- Vai você.
- Eu vou, mas e você?
Deu com os ombros.
- Esse teu silêncio é o que me mata.
De repente, num estalar de dedos, ele veio de braços abertos em minha direção. Ele sempre agia assim quando lhe faltavam argumentos, tão patético. Esquivei-me dos seus tentáculos. Seu abraço não iria mais abafar o grito:
- Do que você tem medo? Seja qual for o problema, eu não vou te abandonar!
- Talvez eu queira ser abandonado.
Talvez eu queira ser abandonado. Talvez eu queira ser abandonado. Isso ecoava nos meus ouvidos numa avalanche de sinonímia: “cai fora”, “eu não te quero mais”, “acabou”. Foi o que ele disse sem dizer. E se não foi, também não se retratou.

quarta-feira, outubro 25, 2006

terça-feira, outubro 24, 2006

imagens que se colam ao peito (14)

O meu primeiro contacto com a obra de Helena Almeida foi um daqueles acontecimentos que nos marcam para toda a vida. Faz parte de uma das experiências académicas mais importantes e significativas da minha formação enquanto profissional e enquanto homem. Porque nem tudo no ensino é mau, e há professores que nos marcam profundamente, pessoas que graças à sua singularidade intelectual e a uma entrega apaixonada ao que realmente acreditam, exercem sobre nós um tipo de fascínio que transportamos sob forma de admiração para o resto da vida.


Tela Habitada, 1976, Helena Almeida
Início do ano lectivo. Aula de apresentação do professor e do programa da disciplina de Projecto II. A turma sentada. A banda sonora tradicional, o burburinho característico do início de aula. Poucos alunos: as aulas de apresentação são sempre fastidiosas e não passam de um pró-forma curricular, ninguém dá bola. Uma mulher dos seus trinta e picos entra na sala, dirigindo-se para a secretária junto ao quadro negro. A turma silencia, provavelmente é a professora. Um auxiliar entra na sala transportando um projector de imagens enquanto a mulher retira de uma pasta duas gavetas de diapositivos. Agradece ao auxiliar e sorri à turma enquanto este se retira. Monta o estaminé. Percorre a turma com o olhar e solta novo sorriso. Diz: “Boa tarde a todos, o meu nome é Teresa Novais, e serei a vossa professora nas aulas práticas desta disciplina.” Pede aos alunos do fundo da sala para desligar as luzes e inicia a sua apresentação. Durante cerca de uma hora toda a turma permanece em silêncio. Não há qualquer tipo de murmúrio com o vizinho do lado. Percorro a turma com o olhar e os meus colegas escutam aquela mulher com o mesmo entusiasmo e mesmo fascínio com que eu a escuto. Passam imagens de várias obras de arquitectura (a Casa de Ofir do Távora é uma das que me lembro), desenhos académicos da Alison e do Peter Smithson, uma fotografia interessantíssima da Faculdade de Arquitectura de São Paulo, em que uma multidão de alunos discute e troca argumentos sobre vários trabalhos expostos debaixo do grande átrio desenhado pelo Vilanova Artigas, passa uma imagem do estúdio da Lina Bo mais um desenho hiper rigoroso do projecto de execução do museu do Siza na Galiza, um trecho do manifesto do Gropius, fala-se de multidisciplinaridade, da importância da arte e da história, fala-se de pesquisa, de descoberta, fala-se de paixão, de entrega, explica-se e ilustra-se que não há apenas uma forma ou um caminho, potenciam-se as possibilidades desde que perseguidas de forma honesta, fala-se de rigor, de discussão, de não esconder os trabalhos dos colegas, fala-se de abertura e de coerência. A aula termina com um grito, um pedido, uma espécie de prece escrita em letras garrafais sobre um plástico que parece abafar uma mulher: OUVE-ME, diz a prece… OUVE-ME. Eu penso que ouvi e que ainda não me esqueci das palavras. Obrigado.

Nota: Esse grito, essa imagem extremamente poderosa foi retirada do filme ‘Ouve-me’ de 1979, onde Helena Almeida executa uma performance de cerca de quatro minutos. Não consegui encontrar na web uma reprodução da obra com o tamanho que pretendia, daí ter optado por ilustrar o post com a série ‘Tela Habitada’. A melhor reprodução que consegui encontrar de ‘Ouve-me’ pode ser vista aqui.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Radiola (3)

Let Your Soul Be Your Pilot
(Sting)

Let your soul be your pilot
Let your soul guide you
He'll guide you well

When you're down and they're counting
When your secrets all found out
When your troubles take to mounting
When the map you have leads you to doubt
When there's no information
And the compass turns to nowhere that you know well

Let your soul be your pilot
Let your soul guide you
He'll guide you well

When the doctors failed to heal you
When no medicine chest can make you well
When no counsel leads to comfort
When there are no more lies they can tell
No more useless information
And the compass spins
The compass spins between heaven and hell

Let your soul be your pilot
Let your soul guide you
He'll guide you well

And your eyes turn towards the window pane
To the lights upon the hill
The distance seems so strange to you now
And the dark room seems so still

Let your pain be my sorrow
Let your tears be my tears too
Let your courage be my model
That the north you find will be true
When there's no information
And the compass turns to nowhere that you know well

Let your soul be your pilot
Let your soul guide you
Let your soul guide you
Let your soul guide you upon your way...

*

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (12)

sobre mim:

se um dia eu for capaz de me levar em menor conta
tenho certeza de que serei mais sensato e justo.
muito provavelmente um ser humano mais feliz.
*

pergunta cínica

De vez em quando gosto de vasculhar os arquivos do Sincronicidade, ver o que foi escrito há meses atrás. Tenho quase sempre uma e a mesma sensação... de que tudo... de que quase tudo o que escrevi é terrível e verdadeiramente ridículo. Apercebo-me de gravidade e do ar sério com que certos textos foram escritos e obervo-me ainda mais patético... conclusão: acabo sempre por ter um ataque de riso fenomenal... um longo ataque de riso! Nem tudo é mau e o riso tem um efeito terapêutico notável. Já vos aconteceu o mesmo?

quinta-feira, outubro 19, 2006

alguem chegou ao Sincronicidade digitando no Google a frase que se segue:

'mulheres casadas para ménage masculino'
*
!e eu que não fazia ideia que havia destas coisas cá no blogue...hehehehe!

quarta-feira, outubro 18, 2006

penumbra

tu sabes que procuro a sombra
no trilho dos dias que correm para o mar.

esbracejando como um corpo infantil
que aprende a equilibrar-se ao som das ondas.

ou como uma borboleta em pleno outubro,
perdida na estação que nos orfanou.

estranhaste a palavra? eu sei…
mas o verbo existe e esculpiu-nos no peito

um marco de pedra que nos cospe o tempo.
diz que um ano amor, diz que orfanámos há um ano.

a vida remeteu-nos para
um endereço falso, impossível.

um lugar instável e impróprio. indigno.
um lugar covarde como a penumbra.

o espaço que eu proibiria se fosse deus.
um lugar morno, terrivelmente morno

sem sal nem suor, sem lágrimas.
nem deus desejou tanto mal a eva.

deu-lhe o mundo, amor, deu-lhe filhos
depositou-lhe o desejo nas mãos.

onde nos encarceraram amor?
fomos eternamente endereçados

à fronteira cruel que divide a sombra
do vazio preenchido pelo branco da luz.

como pude eu desejar viver nessa casa?
diz-me amor, como pude querê-lo?

estaria invariavelmente cego, distraído,
um idiota brincando como sempre, tentando

guardar as palavras onde elas não cabem
e os ódios debaixo do coração, sim,

porque nunca o romperam amor.
tu nunca o permitiste, lembras-te?

e há um ano que vagamos nesta prisão
como as sementes perdidas de caim

atiradas sobre os despojos de deus
nos lugares onde a espera é eterna.

ajudas-me a procurar a sombra?
promete-o, faz-me uma jura de sangue

e depois rega-me dele, enche-me com o sabor
da carne porque não aguento esta palidez,

esfrega-te violentamente em mim, encharca-me
para que saiba que mesmo órfão

estarei pintado de encarnado forte.
lava-me com o teu sangue, festeja,

para que a morada se desfaça e a ruína apague
a crueldade de habitar entre a luz e a sombra.

lava-te também em mim se o desejares.
pinta-te com o meu sangue, chafurda.

juntos negaremos o limite desta fronteira amor.
e um dia, faremos como a criança e a borboleta:

procuraremos a sombra junto do mar,
órfãos, reequilibrando-nos ao som das ondas.

traremos os braços marcados pelas veias
rasgadas do nosso pacto. cansados e exaustos.

e uma réstia de força para enterrar na areia
o cadáver moribundo da estação que nos orfanou.

porque haveremos de matá-la amor...escreve:
um dia arrastaremos o outono pelos cabelos.
*

*

sublinhado (45)

Fountain, 1917, Marcel Duchamp

A arte moderna dissolveu a tal ponto as normas estéticas que um campo artístico aberto a todos os níveis, a todas as formas de expressão, pôde por fim emergir. A vanguarda facilitou e desculpabilizou as tentativas e diligências artísticas de todos, lavrou o campo onde eclodiria uma expressão artística de massa. (pág. 117)

A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky

terça-feira, outubro 17, 2006

Contra-anúncio chulo

Embaixo da porta, lê-se em letras garrafais:
Proibida a entrada de covardes, avaros, sanguessugas.
Pelo amor de Deus, tenham culhão, minhas senhoras e meus senhores: se abrirem a porra da porta, entrem. Não fiquem espiando da soleira feito bandido.
Comprem o pacote completo.
Aviso: Se houver pechincha, faço beber cicuta!

ANÚNCIO (sobre o dueto fotográfico aí em baixo...)

aceitam-se vampiros, carrascos (encapuçados ou não), degoladores, canibais, toda e qualquer espécie de homicidas (dos involuntários aos serial). oferecem-se elevador, pescoço e way out perfeito para álibi. pede-se alguma brevidade no acto, contenda e impede-se qualquer aproximação a cenário gore. preço fixo não sujeito a discussão.

Teorias amorosas (5)

Todas as suas coisas couberam numa pequena valise e ainda assim sobrou espaço.
Passaram o dia mudos, evitando olhares, os mesmos cômodos. Um grande mal-estar tomou conta, a certeza do inconveniente, mas era 31 de dezembro e não dava mais para cancelar a ceia caríssima que haviam pago há dois meses atrás.
Então vieram a noite, as luzes, o brilho, o champanhe e os fogos. Dez minutos ininterruptos de fogos.
Melancólica, encostou a cabeça no ombro dele. Ficaram assim por um momento e depois foram embora.
Ele abriu a porta do carro. Ela pegou a valise e antes de despedir-se, observou:
- Sabe, olhando aqueles fogos, a explosão... acho que finalmente compreendi a nossa história.
- Sei. Breve, mas linda?
- Não. Muito barulho por nada.

LADO B (27) último post da série

SILÊNCIO
*

Confessionário (31)

Meu Vítor,

Antes de mais nada, é preciso que te diga: compreendo claramente o teu cansaço.
Eu poderia finalizar esta confissão aqui porque isto é tudo de concreto que posso oferecer-te, meu amigo. Todo o resto que se segue é discurso, enxurrada palavrosa, non sense.
Teu último confessionário deslocou minhas entranhas, senti-me pequena, egoísta, dramática e monotemática. Apesar de também sentir uma necessidade brutal de responder-te, de confirmar-te meu amor e amizade, não conseguia produzir um único pensamento sensato, racional, dialógico.
Vítor, já te disse, alguma vez, que essa nossa sincronicidade assusta-me? Não? Pois te digo agora: assusta-me muitíssimo porque é algo grande demais, de proporções imensuráveis. Muitas vezes torna-se maior do que eu e, eu não sei explicar. Antes mesmo que me digas qualquer coisa, eu já o sei.
Existem algumas poucas pessoas com as quais “desenvolvi essa relação”. Elas entram simplesmente na minha vida e conquistam fatias consideráveis do meu afeto. E isso se dá de tal forma que a comunicação é estabelecida sem que nem mesmo haja contato verbal, visual ou presencial. Tu és uma dessas pessoas, querido. Então, no dia em que este teu cansaço passar (e ele passa. Meu Deus, tem que passar!), eu adorarei ouvir tudo o que tens para me dizer, o que está do lado de dentro, revolvendo e causando-te incômodo. E se não quiseres falar nada, serei cúmplice do teu silêncio.
Há quem não entenda as razões do silêncio, Vítor. Eu o considero uma forma potente de comunicação, mas a compreensão do silêncio – para que ele não se torne um instrumento de tortura corrosivo - passa necessariamente pela via do amor, porque silenciar significa um diálogo profundo quando as palavras faltam ou tornam-se insuficientes. No entanto, há pessoas que o entendem como um suplício, uma forma de martírio. Nos últimos meses, alguém me deu outra definição para o silêncio e eu espero em Deus que ela morra em mim e comigo. Não é o tipo de aprendizagem que desejo repassar aos que me são caros, porque me é intolerável a idéia da avareza. Posso calar por outras tantas razões, mas nunca porque calar signifique negar ao outro o calor do diálogo. Há pessoas que são avaras inclusive nos afetos e isso, para mim, deveria constar no código penal como crime hediondo.
Se demorei a dizer-te que entendo o teu cansaço não foi por avareza, mas por não encontrar, no nosso extenso vocabulário, palavras acolhedoras.
Eu não acho que a vida seja simples, Vítor, embora acredite que são as coisas simples da vida que nos acalentam, que dão sentido, que nos revigoram. É pelo simples que vale a pena viver e morrer.
Eu também estou cansada, querido e tenho aprendido – não sem uma boa dose de culpa – que é lícito estar cansada. Permita-se o cansaço, a tristeza, a solidão! Isso é humano!
Entramos numa piração de sermos feliz a qualquer custo, como se a felicidade fosse apenas o mundo cor-de-rosa dos comerciais: um vestido bonito, um corpo exuberante, uma companhia estonteante, o carro do ano, filhos ‘perfeitos’, uma casa enorme, sexo glamuroso e cinematográfico... a impressão que eu tenho é que tudo isso pode ser comprado num shopping. A felicidade está ao alcance do cartão de crédito. Virou sonho de consumo. É a nova grande sacada do mundo capitalista.
SER feliz ou ESTAR feliz não é mais um estado de espírito, uma graça, uma conquista, ou sei lá que nome tenha. A felicidade, Vítor, se compra e muitas vezes tem um preço alto demais. Ela vem sempre associada ao verbo TER e acompanha, de brinde, uma embalagem dourada.
Eu estou de saco cheio, ou como diria o Renato Russo, “ando cheio de me sentir vazio”. Eu não quero ter que nada! Quero ser livre para ser quem eu sou. Hoje sinto-me péssima, quero chorar até desidratar e chorar me faz bem. Tudo o que não consigo gritar explode em lágrimas e sou feliz por poder explodir, caso contrário, morreria envenenada com todas as palavras sujas e sentimentos vis que estão na minha corrente sangüínea... eu tenho tido ganas de ferir, mas no fundo eu não quero machucar ninguém e isso inclui a mim.
Eu não vou chorar para sempre, mas reivindico meu direito ao choro. Reivindique o seu direito ao cansaço, querido.
A Mila disse-me algo assim: “quando a dor passar, que o seu riso seja farto”.
Amanhã, querido, eu voltarei a sorrir farto e isso será uma verdade e também um direito.
Sinta-se abraçado, Vítor. Sinta meus braços em volta de ti formando o laço primordial que nos liga e nos reconhece como seres humanos.

modas

bem...Nouvelle Vague bateu forte na blogosfera... não há blogue in que não lhe faça referência...

sublinhado (44)

A sentimentalidade sofreu o mesmo destino que a morte; torna-se incomodo exibir os próprios afectos, declarar ardentemente o fogo íntimo, chorar, manifestar com demasiada ênfase os impulsos internos. Tal como a morte, a sentimentalidade tornou-se embaraçosa; é preciso ser-se digno em matéria de afecto, quer dizer: o «sentimento interdito» é um efeito do processo de personalização, que trabalha aqui na irradicação dos signos rituais e ostentatórios do sentimento. O sentimento deve chegar ao seu estádio personalizado, eliminando os sintagmas inteiriçados, a teatralidade melodramática, o kitsch convencional. O pudor sentimental é exigido por um princípio de economia e de sobriedade, constitutivo do processo de personalização. Deste modo, é menos a fuga perante o sentimento que caracteriza o nosso tempo do que a fuga perante os signos da sentimentalidade. (pág.73)
A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky

segunda-feira, outubro 16, 2006

hoje (4)

modernismo = revolução [?]

António, ainda sobre aquela conversa do Modernismo ter constituído ou não uma revolução, tenho encontrado novos argumentos que fundamentam e alargam a minha opinião nalgumas leituras que ando a fazer. Passo a citar, está implícito:


'Composition with red, yellow, blue and black', 1921, Gemeentemuseum, Haia, Holanda, Piet Mondrian


“Sem dúvida, todas as grandes obras artísticas do passado inovaram sempre de uma maneira ou de outra, introduzindo aqui e ali a derrogação dos cânones em vigor, mas é apenas neste fim de século [séc. XIX] que a mudança se torna revolução, ruptura clara na trama do tempo, descontinuidade entre um antes e um depois, afirmação de uma ordem resolutamente outra. O Modernismo não se contenta com produzir variações estilísticas e temas inéditos, quer romper a continuidade que nos liga ao passado, instituir obras absolutamente novas. Mas o mais notável ainda é que a raiva modernista desqualifica, no mesmo impulso, as obras mais modernas: as obras de vanguarda, logo depois de produzidas, tornam-se retaguarda e afundam-se no déjà-vu; o modernismo proíbe o estacionamento, impõe a invenção perpétua, a fuga para diante, e é essa a «contradição» que lhe é imanente: «A modernidade é uma espécie de auto-destruição criadora… a arte moderna não é somente filha da idade crítica, mas crítica de si própria». Adorno dizia-o de outra maneira: o modernismo define-se menos por declarações e manifestos do que por um processo de negação sem limites e que, por isso, não se poupa a si próprio: a «tradição do novo», fórmula paradoxal do modernismo, destrói e desvaloriza inelutavelmente aquilo que institui, o novo inclina-se de pronto na direcção do antigo, nenhum conteúdo positivo é já afirmado, sendo a própria forma de mudança o único princípio que governa a arte. O inédito tornou-se o imperativo categórico da liberdade artística.”

A Era do Vazio (Relógio D’Água), Gilles Lipovetsky

Ps. A conversa sobre as torres de cristal não está esquecida, mas tenho tido pouco tempo para me dedicar ao assunto como gostaria. Mais tarde ou mais cedo alguma coisa há-de aparecer por aí…

Borbotom, a mais recente poça de teatro de Alberto Augusto Miranda é mostrado no próximo sábado,
21 outubro 2006, às 21h30m
Café Princesa
Rua Silva Tapada, 124 Porto

sexta-feira, outubro 13, 2006

Radiola (2)

Vento no litoral
(Legião Urbana)

De tarde quero descansar, chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai:
Dos nossos planos é que tenho mais saudade,
Quando olhávamos juntos na mesma direção

Onde está você agora
Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você está comigo o tempo todo

Quando vejo o mar
Existe algo que diz:
- A vida continua e se entregar é uma bobagem

Já que você não está aqui,
O que posso fazer é cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bem?

- Ei, olha só o que eu achei: cavalos-marinhos
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Ash to ash, dust to dust

Perdida. Eis como me encontro.
Não sei onde estão os caminhos que apontam para os recomeços.
Lanço os dados como quem inicia um novo jogo, mas por desconhecer as regras, não sabe como mover o pião. Ah, se eu pudesse, ao menos, discernir entre os pontos de partida e chegada, sentiria algum alívio, algum conforto.
Os dias são sempre iguais, ou pior, eles nunca são iguais aos que desejo. Uma estranha sensação de impotência apossasse-se de mim e tudo o que posso é transbordar meus rios subterrâneos.
Choro porque os dias são cinzentos, porque faz frio na minha alma; choro ao ler um poema, ao ouvir uma música, ao ver uma cena; choro porque colho rosas matutinas, mas não retenho em minhas mãos seu perfume; choro porque não consigo expressar o que sinto; choro de cansaço porque o cansaço é tudo o que me resta.
As palavras tornaram-se ermas. Hibernaram em busca de significados e o inverno, ah, o inverno é tão longo!
Enquanto o tempo arrasta suas horas, minha casa acumula poeira e eu me alimento de terra.

imagens que se colam ao peito (13)

Crisântemos, 'Asa-dsuma-bun' e 'Tatsu-nami', Colotipo, 1895, Kazumasa Ogawa

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (11)

sobre o amor II:

dizes que estou longe quando a noite cai e o meu corpo
não é o abraço do teu. enganas-te. é na minha solidão que
te encontro. como se inalássemos juntos um pedaço do céu.
*

*

reflexo


existo na fronteira do preto com o branco,
no lugar preciso entre o sangue e o espelho.

os meus passos não são reais
não gravam o chão nem fixam o tempo

vivem como sombras, independentes, como se
a sua história se afastasse da minha

e caminham rumo a uma luz qualquer
no vértice que separa o real do etéreo.

nesse ponto, onde o espelho me devolve os passos,
nesse instante, não sou nada. sou completamente.

e volto a existir no verdadeiro espaço das coisas,
na massa volátil entre o olhar e o reflexo.

aí, na nova morada, recrio-me, reinvento-me, reconto-me,
porque é o sonho quem me dá esse direito.

então, posso ser quem eu quiser, quem tu quiseres.
aí, na nova morada, não há identidade, não há tempo.

depois, sou a água calma do rio e a nuvem do céu.
depois, sou o mar forte e o galho da árvore.

e sou vento e sou sol e sou fogo
- lembra-te, posso ser quem eu quiser.

e sou sangue e sou veneno e sou lama
- lembra-te, posso ser quem tu quiseres.

na nova morada o único limite é o sonho.
entre o sangue e o espelho há vida que pulsa.

inalo a alma, inspiro por mais uns segundos a eternidade,
essa massa volátil que se molda entre o real e o virtual

e de repente não há mais ausência, o éter esgota-se.
os olhos fogem-me novamente perseguindo os meus passos.

diagonalmente, um pé sai da nova morada e
lentamente, marca com impressão forte o meu corpo.

o outro pé, foge diagonalmente para o espelho
abraçando o outro corpo, o reflexo que ganhou vida.

os passos escapam sempre da nova morada,
não apreciam a eternidade das suas paredes incolores.

é-lhes insuportável uma existência metafísica,
necessitam do sangue e necessitam do espelho.

despedem-se da eterna fronteira e partem
restando-lhes a saudade da casa dos sonhos.

o pé que marcou com impressão forte o meu corpo
desenhou na minha pele o destino, encarcerou-me.

escreveu-me a tinta permanente, inapagável,
e eu serei escravo da sua vontade e do seu poder.

o outro pé, o que fugiu diagonalmente para o espelho,
pobre por ter rejeitado a eternidade da antiga morada,

mergulha na virtualidade do sangue reflectido e,
no mar do espelho vivo, pinta telas abstractas, interpretáveis.

agora, os dois pés, nos seus novos países, olham a antiga morada.
sabem que na casa do sonho existiam anjos, diabos e duendes,

sabem que existia o vento, o sol e o fogo,
sabem que existia o sangue, o veneno e a lama.

o pé que marcou com impressão forte o meu corpo,
chora. o pé que marcou o meu corpo, chora.

nas suas lágrimas corre o veneno da realidade.
o destino escolheu assim. chora a liberdade perdida.

o outro pé, o que fugiu diagonalmente para o espelho,
sabe que vive a mentira do reflexo, sabe que o brilho é irreal.

o outro pé, sabe que o espelho é sempre falso.
mas ri, solta a gargalhada da antiga morada

porque no espelho, no espelho há ilusão,
há um resto de éter, uma possibilidade de sonho.

então diz-me, sou o vento, o sol e o fogo.
diz-me sou o sangue, o veneno e a lama.

sou aquilo que quiser. sou aquilo que quiseres. no espelho,
sou o que acreditas. e se acreditas, então é verdade.
*

quinta-feira, outubro 12, 2006

quarta-feira, outubro 11, 2006

Radiola (1)

Se queres saber
(Peter Pan)

Se queres saber
Se eu te amo ainda
Procure entender
A minha mágoa infinda
Olhe bem nos meus olhos
Quando eu falo contigo
E vê quanta coisa
Eles dizem que eu não digo
O olhar de quem ama diz
O que o coração não quer dizer
Nunca mais eu serei feliz
Enquanto vida eu tiver

Poetrix (3)

CUBO MÁGICO

Torço, retorço,
Ajusto as lentes ao nariz
A palavra que se forma: aprendiz.

(Luciana Melo 07/03/02)

terça-feira, outubro 10, 2006

hoje (3)

segunda-feira, outubro 09, 2006

ATO DE CONTRIÇÃO

Seis meses após o rompimento, esbarraram-se no mercado central. Ela congelou ao vê-lo, seu corpo contraiu-se num espasmo curto.
- Como é bom rever-te bem, Dulce! Estás mais bonita. Emagreceste!
- O mérito é todo teu.
- ?
- Sofrimento combinado à inapetência é um coquetel infalível, meu caro. Deixa qualquer Spa no chinelo.
Sem graça, ele olhou-a bem no fundo dos olhos e com 180 dias de atraso disse:
- Perdoa-me pela minha incapacidade, pela maneira brutal como parti.
Os olhos de Dulce ficaram quentes e úmidos, seu rosto estava em brasa. Ela pensou que despejaria ali toda a sua dor, ira, desprezo e incompreensão. Que finalmente chegara o momento de cuspir todos os cacos de vidros que engolira, o fel; que o esmurraria, que cobraria a conta do analista, da farmácia; que o insultaria e pediria o ressarcimento por todos os danos, pelas poucas horas de sono, pelos dias não vividos, por cada ruga, pela memória quase perdida, pelo riso esquecido, pelos sonhos mofados. Mas para sua surpresa, não disse nada.
- Dulce, se pudesse voltar o tempo...
- Não podes.
- Eu sei, mas se pudesse, ajoelharia a teus pés (e já foi ajoelhando) e imploraria teu perdão. Pediria mais uma ‘última chance’. Eu sei, eu sei... já me deste a última chance pelo menos duas vezes, mas, Dulce, descobri que é a ti quem amo. Eu sinto tua falta.
Respirou fundo. Depois, serena e compassadamente, falou:
- Dá-me uma boa razão. Convença-me que mereces.
Amaro suou frio. Não podia desperdiçar a oportunidade. Então resolveu apelar para Deus.
- Porque és boa, Dulce. Tu és cristã e como tal compreendes que todos cometem erros e se os reconhecem são dignos de uma segunda chance.
Como é engraçado ver o ser humano em estado de desespero. Amaro ali súplice, na sua frente, de joelhos... por muito menos, ela o teria recebido de volta.
- Encontra-me amanhã, às três da tarde, em frente à Catedral.
No dia seguinte, às três horas em ponto, ele estava lá.
Um vendedor de flores aproximou-se e pôs-lhe um envelope nas mãos.
- Uma dona pediu para entregar, moço.

Amaro, podes escolher. Vá 1) PARA O INFERNO ou 2) PARA A PUTA QUE TE PARIU. Para teres certeza da nobreza de minha alma, certifiquei-me quanto aos endereços. Se ambos não forem o mesmo lugar, certamente devem ser casas vizinhas, de modo que não perderás a viagem.
P.S.: Bondade tem limite.
P.S2.: Se tinhas dúvidas, agora sabes: o Diabo também existe.

(Luciana Melo - 08/10/06)

domingo, outubro 08, 2006

Poetrix (2)

HAICAI DESESPERADO

Não gosto de nada,
Mas engulo de tudo.
Me mato ou me mudo?

(Luciana Melo - 18/02/02)

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (10)

sobre a esperança:

espero o futuro sempre do lado errado da rua, como um
saltimbanco desnorteado. se dou a mão negam-me o sustento,
se a fecho correm a oferecer-me esmola. eu não mendigo.
*

sexta-feira, outubro 06, 2006

obrigado Fátima... obrigado Luís!

(foto de Luís Monte) Seagram Building, 1958, New York, EUA, Mies van der Rohe

A Fátima e o Luís estiveram em N.Y. na última semana. Como são pessoas generosas lembram-se sempre dos amigos e eu fui um dos contemplados com as suas traduções de carinho e amizade. O Luís fez-me o favor de fotografar o Seagram Building, um edifício que eu gosto bastante (para não dizerem que eu não gosto de torres e que a tipologia é bode expiatório para os problemas da arquitectura, como o quiseram fazer crer numa conversa sobre o tema que se desenvolveu nalguns blogues de arquitectura). Eu questiono se hoje em dia faz algum sentido construir em densidade, questiono também a quantidade astronómica de energia e os custos elevados necessários à sobrevivência de edifícios com estas características, numa era em que sabemos que os recursos energéticos fósseis se esgotam e a tecnologia para o aproveitamento das energias renováveis não está tão desenvolvida como pretendíamos. Em 1958, e reafirmo, em 1958, um edifício desta natureza no centro de Manhathan fazia todo sentido, e hoje fá-lo como legado da história da arquitectura do séc. XX.. Agora levanto a questão, faz algum sentido construir um edifício com estas características em Basileia, na Suíça, em pleno séc. XXI? (Cá para nós, se tivesse metade da elegância do Seagram ainda argumentaríamos... assim, façam-me o favor!...) Se me perguntarem o que penso sobre o edifício na foto em cima, digo simplesmente que o considero fantástico (por mil e um motivos que se fizerem questão eu explico num outro post), se me perguntarem se isto faz algum sentido nos dias de hoje, eu mantenho a minha: Não! É idiota! É absurdo! (por muitas razões que eu também posso explicar, se quiserem).

quarta-feira, outubro 04, 2006

Poetrix (1)

Photobucket - Video and Image Hosting
O Grito, 1893, Edvard Munch

O GRITO

Eu grito bem alto
Para dentro de mim.
Não agüento mais me ouvir!

(Luciana Melo - 13/03/02)

hoje (2)

Vítor, como prometi, eis aí o poema que fiz há anos atrás. Acho que ele dialoga com uma das tuas personagens da série Janelas Abertas.

PARTO

Que vulto é aquele
chorando no escuro?

É uma mãe
que nunca teve filhos.

Não teve filhos?
Então, de quem ela é mãe?

Quieta, boca presa!
Ela bem pode ouvir o segredo.

Por favor, falai sem medo
Que tipo de mãe é essa?

É aquela em que o corpo fez-se grávido
Sem jamais um filho gerar

Como pode um ventre crescer
Sem ter nele um filho a guardar?

O ventre não cresce,
Barriga não se vê
Mas existe um coração atento
E olhos ternos, de descoberta.

Uma mão sempre presente
acariciando suave, a testa.
Velando o sono da criança
Ela atravessa a noite deserta.

Se na madrugada ouve resmungos
Está pronta para ofertar seus braços
Enrosca-o sobre o peito despojado,
Oferece-lhe o colo como se fosse seu útero.

Sendo assim tão amorosa
Por que essa mãe chora?

Chora porque não tendo-o, de fato, gerado
Um dia, levaram-no embora.

Durante algum tempo
A distância aplacou-lhe o ânimo
A dor represou-lhe o pranto
E a memória era seu único ungüento.

Mas nas noites de chuva
Suas águas se agitam e transbordam.
As lembranças que eram grãos,
Avultam-se e afloram.
E cada lágrima que verte
É um filho que aborta.

Por favor, dizei depressa,
A criança, quando volta?

Volta, um dia volta...
Enquanto isso, façamos silêncio.
Não perturbemos!
Esperemos o dia de acendermos as luzes
E novamente abrirmos as portas.

(Luciana Melo – out/nov 2001)

Confessionário (30)

Eu sabia que jamais reclinarias o convite. “Exile destroys, but if it fails to destroy you, it makes you stronger”, está aí no blogue publicado num post que ninguém leu por causa do palavreado fastidioso ou porque excede o tamanho aceitável numa plataforma de publicação desta natureza. Poderíamos substituir a palavra ‘exílio’ (exile) por uma série de outras palavras que a frase continuaria a fazer todo sentido. Tudo isto é a tradução das várias mortes e nascimentos que vamos tendo ao longo da vida, já te falei disto antes e não interessa agora voltar a desenvolver.
Nestes últimos dias pensei bastante no assunto que escolheria para te falar nesta confissão. Há três dias atrás li vários textos sobre o amor, sobre a natureza da sua essência, sobre a possibilidade de não existir e de ter sido mais uma das invenções humanas, como deus. Pensei em falar-te disso. Não conseguia dormir e as palavras saíam-me como uma tempestade, violentas e apressadas. Anotei tudo isso num caderno. Ainda não voltei a ler. Pensei também partir do que dizias na última confissão e acrescentar-lhe mais alguma coisa, pegar no que escreveste sobre a tendência que temos de racionalizar e tornar abstractos assuntos como o suicídio, a morte, a vida, quando os nossos dramas nos permitem a ausência necessária para os analisarmos dessa forma mas só me ocorria um dito popular que resume em palavras curtas e grossas tudo aquilo que eu penso em relação a isso: “pimenta no cu dos outros é refresco”.
Pensei ainda em falar-te de uma série de outros assuntos, coisas que nunca te disse, mas cheguei à conclusão que tudo isso não tinha qualquer importância. Ando cansado de discutir questões existenciais, minha amiga, ando cansado de argumentações, intelectualizações, ando cansado de conversas intermináveis sobre o vazio, ando cansado de lutas pela razão, ando cansado dos livros e da poesia, ando cansado dos jornais, dos artigos de opinião, ando cansado dos blogues, dos telejornais, ando cansado de procurar conhecer a opinião dos outros e de dar-lhes a conhecer a minha, ando cansado do trabalho e do disse-que-disse da novela profissional, ando cansado de ouvir todos os dias as mesmas intrigas, os mesmos queixumes, ando cansado de ver o mundo triste, de sentar-me no café e ser servido por uma mulher que é incapaz de soltar um sorriso, ando cansado de ver mortos vivos na paragem dos autocarros, nas ruas, no cinema, ando cansado de não poder passar mais tempo com aqueles que amo, de poder abraçá-los e beijá-los, ando cansado de não ter coragem para lhes mostrar o quanto são especiais para mim, ando cansado de perder tempo com uma série de coisas que não são importantes e de saber que a cada dia que passa a vida se encurta e as oportunidades de me encontrar com o essencial se vão esgotando, ando cansado de lutar em vão para atingir a ciência dos velhos: fazer a triagem certa.
Vivo neste imenso cansaço minha amiga. Vivo com a dor de saber que andamos todos imersos numa imensa cegueira e quando finalmente começamos a ver luz e a distinguir formas é tarde demais e a vida que podia ser, já foi. A vida é simples e custa-nos aceitar que assim é. Somos animais fascinados por nós próprios e a simplicidade é um prémio insuficiente: queremos sempre mais, até percebermos que esse mais não era de todo importante. O tempo esgota-se para mim e para todos nós… não me venham com a treta da vida eterna e de que há algures um lugar melhor do que este. O mundo é aquilo que nós fazemos dele, se está podre é porque o deixámos apodrecer. Duma coisa não tenho dúvidas, o Paraíso é isto, é esta vida, é a oportunidade de cá estarmos… os anjos invejam-nos como no filme do Wim Wenders, só nós não percebemos a sorte que temos, ou quando finalmente entendemos o prazo está no fim da validade. Milénios de humanidade e o ensinamento está por aprender, somos fracos alunos… é pena que assim seja.
Um beijo, e desculpa-me o desabafo, mas isto também é suposto ser uma confissão.

terça-feira, outubro 03, 2006

imagens que se colam ao peito (12)


Wings of Desire, 1987, Wim Wenders

When the child was a child
It walked with its arms swinging,
wanted the brook to be a river,
the river to be a torrent,
and this puddle to be the sea.

When the child was a child,
it didn’t know that it was a child,
everything was soulful,
and all souls were one.

When the child was a child,
it had no opinion about anything,
had no habits,
it often sat cross-legged,
took off running,
had a cowlick in its hair,
and made no faces when photographed.

When the child was a child,
It was the time for these questions:
Why am I me, and why not you?
Why am I here, and why not there?

When did time begin, and where does space end?
Is life under the sun not just a dream?
Is what I see and hear and smell
not just an illusion of a world before the world?
Given the facts of evil and people.
does evil really exist?
How can it be that I, who I am,
didn’t exist before I came to be,
and that, someday, I, who I am,
will no longer be who I am?

When the child was a child,
It choked on spinach, on peas, on rice pudding,
and on steamed cauliflower,
and eats all of those now, and not just because it has to.

When the child was a child,
it awoke once in a strange bed,
and now does so again and again.
Many people, then, seemed beautiful,
and now only a few do, by sheer luck.
It had visualized a clear image of Paradise,
and now can at most guess,
could not conceive of nothingness,
and shudders today at the thought.

When the child was a child,
It played with enthusiasm,
and, now, has just as much excitement as then,
but only when it concerns its work.

When the child was a child,
It was enough for it to eat an apple, … bread,
And so it is even now.

When the child was a child,
Berries filled its hand as only berries do,
and do even now,
Fresh walnuts made its tongue raw,
and do even now,
it had, on every mountaintop,
the longing for a higher mountain yet,
and in every city,
the longing for an even greater city,
and that is still so,
It reached for cherries in topmost branches of trees
with an elation it still has today,
has a shyness in front of strangers,
and has that even now.
It awaited the first snow,
And waits that way even now.

When the child was a child,
It threw a stick like a lance against a tree,
And it quivers there still today.

Song of Childhood, Peter Handke

sublinhado (43)

O narcisismo define-se menos pela explosão livre das emoções do que pelo encerramento em si próprio, ou pela «discrição», signo e instrumento de self-control. Sobretudo nada de excessos, de transportes, de tensões que nos ponham fora de nós; é a retracção sobre si próprio, a «reserva» ou a interiorização que caracteriza o narcisismo, e não a exibição «romântica». (pág. 63)
A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (9)

sobre o medo:

a ansiedade nascida da folha de papel que controla
a minha vida, as nossas vidas. tradução do sangue.
como um vinho podre a correr-me, a correr-nos nas veias.
*

segunda-feira, outubro 02, 2006

em jeito de comemoração...

...do Dia Mundial da Arquitectura, publico no blogue imagens e desenhos de dois edifícios que me são muito caros, projectos que traduzem literalmente o 'imaginar a evidência' de que nos fala o Álvaro Siza... um de cá, outro de lá, em sincronia...
ps. a música da Elis não é por acaso.

o de cá...


Casa de Chá da Boa Nova, 1958, Leça da Palmeira, Portugal, Álvaro Siza

o de lá...


Estúdio Bo Bardi, 1986, São Paulo, Brasil, Lina Bo Bardi

LADO B (25)


sublinhado (42)

«Não propriamente uma ideia, mas uma espécie de iluminação... Sim, foi isso, Bruno, vai-te embora. Deixa-me ficar sozinha». A Mulher Canhota, o romance de P. Handke, conta a história de uma mulher jovem que sem razão, sem finalidade, pede ao marido que a deixe sozinha, com o filho de oito anos. Exigência ininteligível de solidão que é preciso, antes do mais, não reduzir a uma vontade de independência ou de libertação feminista. [...] Metafísica da separação das consciências e do solipsismo? Talvez, mas o mais interessante situa-se noutro lugar; A Mulher Canhota descreve a solidão deste fim de século XX, mais do que a essência imtemporal da derrelição. A solidão indiferente das personagens de P. Handke já nada tem a ver com a solidão dos heróis da idade clássica nem mesmo com o spleen de Baudelaire. O tempo em que a solidão designava as almas poéticas e de excepção passou; aqui, todas as personagens a conhecem com a mesma inércia. Nenhuma revolta, nenhuma vertigem a acompanham; a solidão tornou-se um facto, uma banalidade do mesmo registo que os gestos quotidianos. As consciências já não se definem pela dilaceração recíproca; o reconhecimento, o sentimento de incomunicabilidade, o conflito deram lugar à apatia e a própria intersubjectividade se encontra desinvestida. Após a deserção social dos valores e instituições, é a relação com o Outro que, seguindo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafecção. (pág. 45)
A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky
Acho que do que li, ainda é cedo para retirar alguma conclusão sobre as ideias de Lipovetsky, mas, apesar de achar pertinentes muitas das suas observações e constações sobre a sociedade contemporânea (pós-moderna), há no seu discurso um dramatismo, uma carga reaccionária e um quê de revolta que me irritam. O diferente não é necessariamente mau. Da transcrição atrás, por exemplo, o sublinhado (que não é mais do que a constatação) é extremamente pertinente, já a conclusão ('a relação com o Outro que, seguindo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafecção') é altamente discutível.

domingo, outubro 01, 2006

hoje (1)

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (8)

sobre o silêncio II:

às vezes é-me permitida alguma solidão, em silêncio,
como suponho ser a música do fundo do mar. quando acontece,
cresce-me a vontade de nascer finalmente. longe, se possível.
*