segunda-feira, janeiro 30, 2006

De profundis

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Para aliviar o rigor do inverno, Bruno Santos


Extasiada, abri o pacote.
Pela primeira vez via a sua pequena letra, pela primeira vez tocava algo que estivera antes em seu poder; uma marca, um perfume.
Não, jamais duvidara da nossa amizade, do afeto que nos une através de tantos mares em que navegamos a espera de um sinal, um aceno, uma confidência... mas agora era diferente – toda nossa ternura materializou-se como se num breve piscar de olhos minha mão alcançasse seus ombros e nos enlaçássemos no longo abraço tão almejado por nós.
Certa vez, disse-me que alguém que ama muito ensinou-lhe a falar sobre as coisas do coração, ensinou-lhe a não represar a força do verdadeiro amor. Eis aí um belo aprendizado, de outra forma, eu jamais saberia o que é ter o horto do meu coração em chamas.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

o homem que não sabia chorar (6)

Três dias para que o corpo se habituasse ao peso do sol. As costas curvadas e os braços como pêndulos soltos, roçando o chão em compassos apertados. Trazia os olhos secos como no dia em que nasceu, mas não se importava. Nunca o arrependimento teve coragem suficiente para detê-lo do que quer que fosse. Caminhava curvado, arrastando-se sobre a terra, mas caminhando. Curvado. A tesoura ainda no bolso… no coração, a imensidão do céu sobre o planalto, e no pensamento, o sonho cada vez mais próximo de rasgar definitivamente o horizonte.

o sorteio já passou, mas cá vai hmbf

sublinhado (13)

"Não viverei sequer mil anos, minha vida é rápida, risco no tempo, tal como um peixe salta um dia acima da vastidão do mar e vê o sol e um arquipélago onde se movem cabras entre as rochas, assim eu salto da eternidade, como todos, eis-me no ar, vejo o mundo dos homens, logo voltarei aos abismos marinhos. Este breve salto, esta aspiração ao ato de voar é tudo o que me foi concedido para ir da grafita ao grafito, para consumar o que os espongiários, em meio milhão de anos, nem sequer esboçam, limitando-se a passar, continuamente, de um sexo a outro, de um sexo a outro. Vens?" (pág. 31)
Avalovara (Companhia das Letras), Osman Lins

Espasmos # 7

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Espelho, Vítor Carralas
Sim, a vida ainda vibra...
...vibra na constância das minhas oscilações.
...vibra quando tudo arde, quando o sangue goteja, quando os corais esquecem-se por segundos de seus habitantes naturais e vem enfeitar meu corpo, despertando-me para o meu colorido, meu cabelo-alga, minha pele-escama, meus braços-nadadeiras... agora sou porto de mim.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Na estante (1)

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Fra Angelico
Dúvidas apócrifas de Marianne Moore

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?

Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?

João Cabral de Mello Neto.
In Agrestes. Editora Nova Fronteira, 1985.

Confessionário (5)

Mas seria como escolher entre o silêncio e a mudez, porque entre a delicadeza de não se fazer ouvir e o autismo para com os que fazem tudo gemer não existe substância. Eu prefiro a bofetada ao não-dito. Eu não sei gritar sem ver um rosto ainda que ele esteja oculto na escuridão.

relembrando

Ontem apareceu-me às mãos a Carta de Guadalajara, assinada em 85 pelo Barragan e o Urzúa. Dizia que a meta final da arquitectura é proporcionar bem-estar e felicidade ao homem, dizia que a arquitectura deveria ser humanista na sua essência (“Temos que resgatar para o habitat humano o equilíbrio essencial, a escala, a ordem, o amor, a poesia e essa comunicação* perdida pelo homem.”). À velocidade que as coisas se têm processado ultimamente, em que os experimentalismos formais sucedem-se em catadupa e as revistas da especialidade fazem o favor de nos bombardear com imagens apelativas a todo instante, faz-nos bem relembrar isto.
Há um mal geral na sociedade contemporânea, e não creio que seja apenas na arquitectura, uma espécie de preguiça em reflectir. Ninguém tem tempo para a reflexão, ou então encara-a como algo cansativo que pode arruinar num segundo o trabalho que se teve a engavetar determinados assuntos. É mais fácil varrer para debaixo do tapete. Próximo!

* referia-se à comunicação com a Natureza.

sublinhado (12)

"Mas o preço deste encantamento descontínuo é a extrema dispersão da personalidade e a fragmentação do tempo. Onde achar a unidade do Eu, quando este funde como neve ao sol? Como salvar estes instantes ameaçados de se afundarem para sempre no nada? A esta dupla questão, Proust e Virginia Woolf começaram por dar a mesma resposta. Acontece encontrar-se nesta corrente descontínua «um pouco de tempo em estado puro». O relógio pára, o tempo suspende o seu voo. Na solidão, o ser começa a viver, o seu desejo de existir no instante é finalmente alcançado. (...)
(...) Todavia diferentemente das «impressões felizes» de Proust, dos «momentos de iluminação» de Eliot, estes «momentos de ser», em Virginia Woolf, sólidos, transparentes, não são criadores. Inscrevem-se entre os demais, sem resgate. São «pequenos milagres quotidianos, revelações, fósforos inopinadamente riscados no escuro», mas nunca a grande revelação dramática de Marcel no momento de entrar no salão dos Guermantes, quando vê enfim diante de si o futuro onde se vai inscrever a sua obra. Para a busca proustiana há uma solução, e perante o tempo, uma orientação nova e brusca que decide das relações do personagem com a sua vida tal como a vivera, com a morte que está ali à sua frente. Nada de semelhante em Virginia Woolf. A gota de tempo, por um instante suspensa, cai de novo no telhado da nossa alma. Uma experiência cumpriu-se, uma nova etapa passou. Cada um volta a partir com a pequena sacudidela que se dá a um relógio de pulso parado (...)" (págs. 77 - 79)
Virginia Woolf (Relógio D'Água), Monique Nathan

... não faço ideia do porquê destas músicas retro cá no blogue ...
apetece-me e pronto
... talvez seja a vontade de rir sempre que ligo ou desligo a página ...

quarta-feira, janeiro 25, 2006



"Sweet Nothin's" »» Brenda Lee

com imensas saudades da Lu, mas feliz... sensação de coerência neste blogue...

Faria hoje 123 anos

"Observei com uma clareza desiludida a falta de identidade da rua; as suas varandas e cortinas; as roupas castanhas, a cupidez e a complacência das mulheres que trabalhavam nas lojas; os velhos passeando com as suas roupas de lã; a forma cautelosa como as pessoas atravessavam a rua; a determinação universal de se continuar a viver quando a verdade é que, seus idiotas, uma qualquer telha vos podia cair em cima e este ou aquele carro galgar o passeio, pois não existe qualquer espécie de lógica ou razão quando um homem embriagado caminha pela rua com um varapau na mão.

As Ondas, Virginia Woolf

terça-feira, janeiro 24, 2006

sublinhado (11)

"Giles e Isa Olivier, Clarissa e Richard Dalloway, Mr e Mrs. Ramsay, nenhum dos três casais alcança a união total. Exceptuado o amor físico que não passa da satisfação do instinto de procriação, não pode haver amor feliz. Desemparelhados, solitários, o homem e a mulher perseguem isoladamente o seu sonho sem se reunirem de outro modo que não apenas entre os actos, e defrontando-se para sempre um ao outro. Longe de quebrar a solidão fundamental do ser, o casamento torna a do outro maior. É uma falsa saída, uma porta enganadora para a liberdade, e o mistério continua total: «Ali está um quarto, acolá outro», ali a mulher com as suas necessidades, os seus desejos, e acolá o homem, não inimigos, mas estranhos semelhantes a dois círculos que nunca podem coincidir por completo. Seja o que for o amor, nunca se chegará a formar um único ser indivisível e imenso, nunca há senão dois indivíduos, pequenos e separados." (pág. 54)
Virginia Woolf (Relógio d'Água), Monique Nathan
Será?

IV

Quem caminhava entre a violeta e a violeta
Quem caminhava entre
As várias filas de vário verde
Indo de branco e azul, nas cores de Maria,
Falando de coisas triviais
Na ignorância e na sabedoria da eterna dor
Quem se movia entre os outros que caminhavam,
Quem então tornou poderosas as fontes e frescas as nascentes

Esfriou a seca rocha e consolidou as areias
No azul das esporas, nas cores de Maria,
Sovegna vos

Estes são os anos que caminham de permeio arrastando
Consigo os arcos e as flautas, restaurando
Aquela que se move no tempo entre o sono e a vigília, vestida

De branca luz envolvente, cingida em seu redor, envolvente,
Os novos anos caminham, restaurando
Através de uma clara nuvem de lágrimas, os anos, restaurando
Com um verso novo a rima antiga. Redime
O tempo. Redime
A obscura visão do mais alto sonho
Enquanto unicórnios ajaezados puxam o esquife doirado.

A irmã silenciosa velada de branco e azul
Entre os teixos, para lá do deus do jardim
Cuja flauta emudeceu, baixou a cabeça e acenou mas nada disse

Porém a fonte jorrou e a ave cantou
Redime o tempo, redime o sonho
O penhor da palavra ensurdecida, emudecida

Até que o vento sacuda do teixo sussurros mil

E depois deste nosso desterro.

T. S. Eliot

In “Quarta-Feira de Cinzas”, Relógio d’Água
Trad. Rui Knopfli

sublinhado (10)

"Ela é, como T. S. Eliot, sensível ao espectáculo da rua, à poesia das cidades, da Cidade - e Londres está sempre presente nela para lá da sua inospitalidade aparente. Basta ao transeunte ocioso seguir o passo de Clarissa Dalloway, quando sai de casa para comprar flores, para se orientar no West End, como se tivesse nascido lá. Hora a hora, Virginia desenrola o seu fio de Ariana através do dédalo das ruas e avenidas, tal como Leopold Bloom ao longo de Dublin (...)" (pág. 25)
Virginia Woolf (Relógio d'Água), Monique Nathan

segunda-feira, janeiro 23, 2006

ainda "caché"

“Caché” é a metáfora da arrogância subtilmente explicada desde a génese à sua manifestação física. Um personagem atormentado por fantasmas do passado, o peso da consciência e o rebuliço dos remorsos a destruírem, pouco a pouco, a imagem de sucesso que foi construindo à sua volta. O medo cresce à medida que o jogo avança e torna-se o único juiz. É ele quem comanda os actos e determina os destinos dos personagens. É o medo que escolhe a cobardia do caminho, é ele que impossibilita a comunicação e apresenta a mentira, é ele a imagem da arrogância que invalida o “porquê” do outro, que transforma as palavras do próximo numa mímica, num murmúrio inaudível. No fim, duas ou três palavras são suficientes para destituir o “intelectual”; um discurso simples, três ou quatro verdades numa atitude humilde e educada e o medo derretendo lentamente as fundações frágeis que sustentam o que resta da imagem. Há quem confunda “simples” com “simplório”, o filme tira todas as dúvidas. E não, por certo que a escolha do ambiente sócio-cultural dos personagens não é capricho do autor.

sublinhado (9)

"- as minhas mãos envolviam-me o rosto e eu chorava e soluçava tudo o que havia para chorar e soluçar. Não sei quanto tempo estive assim, mas, enquanto as lágrimas jorravam de dentro de mim, eu sentia-me feliz e sabia que nunca me tinha sentido tão feliz por estar vivo. Era uma felicidade inconcolável, uma felicidade para além do infortúnio, para além de toda a fealdade e beleza do mundo. Por fim, as lágrimas abrandaram, e eu fui até ao quarto mudar de roupa. Dez minutos depois, estava de novo na rua, a caminho do hospital para ir ver Grace." (pág. 201)
A Noite do Oráculo (Asa), Paul Auster

curioso, reparei agora que os dois últimos posts combinam perfeitamente, (não foi propositado, juro).

ainda lá voltarei, mas para já pergunto:


sábado, janeiro 21, 2006

something I wish to say long ago

Ah, look at all the lonely people!
Ah, look at all the lonely people!

Eleanor Rigby picks up the rice in the church
Where a wedding has been,
Lives in a dream,
Waits at the window, wearing a face
That she keeps in a jar by the door,
Who is it for?

All the lonely people, where do they all come from?
All the lonely people, where do they all belong?

Father McKenzie, writing the words of a sermon
That no one will hear.
No one comes near.
Look at him working, darning his socks in the night
When there's nobody there, what does he care?

All the lonely people, where do they all come from?
All the lonely people, where do they all belong?

Ah, look at all the lonely people!
Ah, look at all the lonely people!

Eleanor Rigby died in the church and was buried
Along with her name.
Nobody came.
Father McKenzie wiping the dirt from his hands
As he walks from the grave
No one was saved.

All the lonely people, where do they all come from?
All the lonely people, where do they all belong?
John Lennon and Paul McCartney

Confessionário (4)

E de entre a delicadeza dos que batem as portas sem fazer barulho, e a violência de gestos dos que não se incomodam com o rangido dos ferros e das aldravas, eu não consigo escolher. Entre o estouro da bofetada e a incumbência do não dizer, é-me impossível medir a dor, eu não consigo escolher. Sei, somente, e disso tenho quase certeza, que o fantasma é filho bastardo do silêncio.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

rejected

"Rejected" »» Daniel Blaufuks

quinta-feira, janeiro 19, 2006

coisas bonitas aparecem na caixa do correio electrónico

Segundo Poema da Solidão

Serei tão secreta
como o tecido da água

e tão leve

e tão através de mim deixando passar
toda a paisagem

e todo o alheio pecado
do gesto, da presença ou da palavra

que logo que a tua mão me prenda
me não acharás:

serei de água

Glória de Sant’anna, Moçambique

Enviado pela Amélia

a propósito do post anterior, vale a pena ler

"Rejected" »» Daniel Blaufuks
"Quando passeio entre as campas do cemitério judaico em Lisboa, reconheço os nomes gravados na pedra, como se estivesse num cemitério de aldeia.
Uns pertenciam ao círculo mais próximo dos meus avós, ao grupo da canasta, outros iam, como nós, à sinagoga em dias de festa ou ao centro israelita aos sábados à tarde. Alguns nomes são anteriores a estes, avós, tios ou pais, que conseguiram também escapar. Das 50 mil a duzentas mil pessoas que passaram por Lisboa, apenas cinquenta aqui ficaram.
Agora temos três campas neste cemitério. Como muitas outras, pertencem à história desta guerra.
Os meus avós sairam de Hamburgo e chegaram ao porto de Lisboa no dia 8 de Abril de 1936, para não mais partirem. Segundo as cartas do meu avô, o mar esteve calmo e a viagem foi aborrecida. Talvez estivesse apenas ansioso pelo início da sua segunda existência. A minha avó enjoou, não do mar talvez, como pensou o meu avô na altura: a minha mãe nasceria, meses mais tarde, em Outubro, neste porto de abrigo.
Na Alemanha decidimos emigrar o mais rápidamente possível. As condições pioraram colossalmente, o que passou despercebido no resto da Europa, não só para nós judeus, mas em geral também.
Portugal era o único país europeu possível e existia o perigo de também fechar as fronteiras.
Assim casámos no dia 16 de Março, apenas no registo, porque tudo o mais teria custado muito dinheiro que precisávamos para outros fins.
No dia 31.3. à tarde deixámos Magdeburgo acompanhados na despedida por familiares e pelos nossos amigos.
Embarcámos, depois de tudo correr bem, no dia 3.4.36 no Monte Olivia, poderiamos ter trazido milhares connosco.
A viagem foi aborrecida, o tempo estava fresco e o mar tranquilo. Mesmo assim, a minha mulher enjoou, aproveitando pouco da travessia.
A 8 de Abril, pouco antes da Páscoa, chegámos com um tempo maravilhoso. As palmeiras resplandeciam ao nosso encontro
."
Sob Céus Estranhos, Daniel Blaufuks

sublinhado (8)

"«Pois é. Mas pelo menos vais ser publicado em Portugal. Alguma coisa a opor?»
«Não, nada. Pessoa é um dos meus escritores preferidos. Deitaram abaixo Salazar e agora têm um governo decente. O terramoto de Lisboa inspirou Voltaire a escrever Candide. E Portugal ajudou milhares de Judeus a fugirem da Europa durante a guerra. É um país bestial. Eu nunca lá estive, é claro, mas, queira ou não queira, é lá que eu vivo agora. Não, Portugal é perfeito. Do jeito que as coisas se têm passado nos últimos dias, só podia ser Portugal.»" (pág. 132)
A Noite do Oráculo (Asa), Paul Auster
peço desculpa, mas este tenho que comentar:
parêntesis 1: "... e agora têm um governo decente." (vai sendo democrático, dentro dos possíveis...) ???
parêntesis 2: "E Portugal ajudou milhares de Judeus a fugirem da Europa durante a guerra." (o Blaufuks iria gostar de ler isto... alguns passaram, e a quantidade astronómica de vistos recusados pelo governo português da altura? Podem ver a cara de alguns dos rejeitados aqui.)
parêntesis 3: "É um país bestial. Eu nunca lá estive..." (eu diria é um país simpático, bestial é demasiado... que nunca cá esteve nota-se!)
parêntesis 4: Será que todos os estrangeiros têm uma opinião tão lisonjeira de Portugal? Humm...

quarta-feira, janeiro 18, 2006

o homem que não sabia chorar (5)

O tempo começava a queimar-lhe as pestanas. Dias de espera e o horizonte não falava, nem uma palavra, nem uma lasca a furar-lhe os olhos como pressentira. A sua vontade era de caminhar no planalto, correr sobre a terra vermelha até que os pés fossem sangue e se confundissem com ela. Tinha a certeza que lá chegaria, e que debaixo da linha recta que dividia o céu da terra haveria um segredo muito maior, um mundo repleto de espelhos que produziam luz, como máquinas numa fábrica, todos sincronizados trabalhando em uníssono para o mesmo fim. E sabia ser essa a luz que lhe traria de volta o coração. Enquanto esperava, media a distância que o separava do horizonte. Dizia, se não é miragem o que vejo, então é porque deus me deu pernas para lá chegar. O homem que não sabia chorar pressentiu pela segunda vez e de novo acreditou. Meteu num bolso uma mão e no outro uma tesoura. E caminhou.

The Ballad of a grey city night (2)


"The ballad of a grey city night, ex.2" »» v. LEAL BARROS

terça-feira, janeiro 17, 2006

sublinhado (7)

"Abril de 1945. A minha unidade estava na Alemanha, fomos nós que libertámos Dachau. Trinta mil esqueletos que ainda respiravam. Você viu as fotos, mas as fotos não nos dizem como é que era aquilo. Um tipo tem de lá estar e de cheirar aquilo com o seu próprio nariz, tem de lá estar e tocar naquilo com as suas próprias mãos. Seres humanos fizeram aquilo a outros seres humanos, e fizeram-no de um modo perfeitamente consciente. Esse foi o fim da humanidade, Sr. Bons Sapatos. Deus desviou os seus olhos de nós e abandonou o mundo para todo o sempre. E eu estava lá para testemunhar aquilo." (págs. 80 e 81)
A Noite do Oráculo (Asa), Paul Auster

ora então, já que a música pouco se ouve, o CD é este:


"Au Bordel - Souvenirs de Paris" »» Noel AKCHOTÉ

Elle faisait du Strip-Tease (a outra versão)

segunda-feira, janeiro 16, 2006

keep your distance (ponto final)


"Keep your distance" »» Nadav Kander
Os temas explorados na fotografia pelo israelita Nadav Kander parecem não ter fim. O artista/fotógrafo cobre um espectro tão vasto da actividade fotográfica (desde a moda e espectáculo, passando pela publicidade, até ao trabalho artístico mais introspectivo, no qual combina a fotografia com outras formas de expressão plástica), que muitas vezes torna-se difícil encontrar um fio condutor capaz de unir imagens cujas géneses são, à partida, completamente distintas.
Apesar da amplitude e versatilidade do trabalho de Kander, há uma característica transversal a toda a sua obra que me delicia particularmente – a procura de uma beleza “crua”, se assim lhe posso chamar, austera, desadornada, muitas vezes violenta e cruel, mas sempre bela, proporcionada e irreversivelmente real.
Quando olhamos as suas imagens, a primeira sensação é quase sempre de desconforto, apesar das composições extremamente cuidadas e equilibradas, de contornos quase clássicos. Talvez o impacto violento do primeiro olhar seja produto da forma como Kander trabalha a luz e a cor. O fotógrafo não hesita em flashar violentamente os seus modelos roubando-lhes a pigmentação da pele, e, como se isso não fosse suficiente para gelar o observador, prostra-os ainda contra muros brancos ou azuis, intensamente luminosos, de texturas toscas e ásperas.
Todo o trabalho de retrato, assim como a série de nu feminino realizada em 1998 com prostitutas da América latina, revelam essa necessidade de choque inicial, obrigando o observador a um processo de recuo perante a imagem e a uma reinterpretação posterior, imparcial ao choque do primeiro olhar. Kander primeiro provoca e só liberta a alma das suas “presas”, dos sujeitos fotografados, após uma decisão consciente e deliberada dos observadores, quando estes decidem continuar a descobrir o que está para lá de todo o quadro glacial. Andy Brumer sugere isso mesmo no texto de apresentação da exposição do fotógrafo na Fahey/Klein Gallery em Maio de 2001 e explica-o desta forma, for example, his pictures of seductively naked young Latina women, suggestive of prostitutes in what looks like downtrodden hotel rooms. seem at first straightforward enough. However, after viewing them for some time, the strength of these women's characters and the purity of their souls leap off of each print, turning their staged seductive stares into liminal indictments all their own.
A mais recente reunião de trabalhos do artista/fotógrafo, “Keep your distance” parece dar continuidade ao processo. Nesta série, Kander reúne um conjunto de imagens de paisagem, quase sempre ambientes urbanos (ou suburbanos), espaços transitórios e de passagem como supermercados, bombas de abastecimento, estradas, viadutos, etc… os chamados “não-lugares” segundo o sociólogo Marc Augé. Ao olharmos estas imagens sentimos a mesma estranheza de quando nos mostram pela primeira vez fotografias da superfície da Lua ou de Marte, tiradas por uma qualquer sonda da NASA. São territórios estéreis, desertos, sem vida… lugares perdidos, onde a presença humana pode tornar-se um elemento perturbador, onde o corpo pode mesmo tornar-se num objecto tão estranho, capaz de remeter o observador para um mundo virtual, quase surreal, como se de um videojogo se tratasse. Uma das imagens publicadas no blogue mostra um homem encostado a um poste de electricidade imerso no nevoeiro do nascer do dia. Para mim, a figura humana é tão desconcertante nessa fotografia, tão irreal. Esse homem não pertence a esse lugar, nenhum homem pertence a esse lugar, a simples presença humana desequilibra toda a imagem, torna-a falsa, incredível. “Keep your distance” não parece ser um título escolhido ao acaso, ele funciona como um aviso, um sinal de alerta ao observador, prevenindo-o e relembrando-lhe que a sua presença nesses espaços é tão estranha como caminhar num dos desfiladeiros de Marte. A reflexão de Kander sobre a forma como vamos construindo o território provoca-nos, afasta-nos, cria-nos o pânico do primeiro instante, tal como as imagens das prostitutas latino-americanas. Ao olharmos estas fotografias não deixamos de sentir uma poética qualquer, mesmo que áspera e aguda. As paisagens retratadas são fortes e independentes, possuem na sua essência uma poética que as alimenta… muitas delas, pode-se mesmo dizer, são belas, extraordinariamente belas, mas definitivamente não incluem “a vida” dentro delas.
Para estas paisagens urbanas, a presença de vida, é tão e simplesmente, o início do seu ciclo de morte. Os lugares, ou “não-lugares”, fotografados por Kander parecem não incluir a vida dentro deles. Um corpo imerso na manhã de nevoeiro não é mais do que um ruído na imagem, um traço agressivo sobre o negativo. Estas fotografias parecem confirmar-nos de que sabemos construir a beleza, mas que o belo, é, muitas vezes, inabitável. Não deixam de ser, no entanto, um contributo pertinente para a forma como usamos, construímos e interpretamos o espaço.

keep your distance (continua...)


"Keep your distance" »» Nadav Kander

sublinhado (6)

"Thoreau dizia que tinha três cadeiras na sua casa, observa Ed. Uma para a solidão, duas para a amizade, três para a sociedade. Eu só tenho a cadeira da solidão. Se incluirmos a cama, pode ser que fiquemos com duas para a amizade. Mas sociedade é coisa que ñão há aqui. Já tive sociedade que chegue depois de tantos anos ao volante do táxi." (pág. 65)
A Noite do Oráculo (Asa), Paul Auster

domingo, janeiro 15, 2006

keep your distance (continua...)

"Keep your distance" »» Nadav Kander

o homem que não sabia chorar (4)

Então caminhou até que a dor aguda nos pés o lembrasse que estava vivo. Tinham sido necessárias cinco vidas para desviar o olhar do chão, cinco vidas para apagar de vez esse olhar curvado e entorpecido, cinco vidas para que os olhos colidissem definitivamente com o horizonte. De ombros renovados, caminhou. Caminhou até que de novo a dor nos pés o lembrasse que estava vivo. Pela primeira vez em cinco vidas, o homem que não sabia chorar pressentiu uma lasca de tranquilidade a furar-lhe os olhos. Num gesto só, ergueu-os ao horizonte e deixou-se pacientemente cegar.

keep your distance (continua...)

"Keep your distance" »» Nadav Kander

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Congresso Internacional do Conto*

«A 9ª edição da International Conference of the Short Story in English vai decorrer, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, entre os dias 21 e 25 de Junho de 2006. Trata-se de um evento que tem por objectivo pôr em contacto escritores, críticos e apreciadores de conto. Este encontro apresenta a característica de associar os escritores de língua inglesa aos do país onde se realiza, promovendo, ainda, o diálogo entre autores em início de carreira e outros já consagrados. Assim sendo, contaremos, em Portugal, com a presença de Amy Tan, Bharati Mukherjee, James Alan MacPherson, Minoli Salgado, Cynthia Ozick e muitos outros, bem como de Alexandre Andrade, Catarina Fonseca, Gonçalo M. Tavares, Hélia Correia, Jacinto Lucas Pires, João Aguiar, João de Mancelos, Jorge Vaz de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Onésimo Teotónio de Almeida, Rui Zink, Teolinda Gersão e Urbano Tavares Rodrigues, e de críticos como Charles May, George Monteiro, Susan Lohaffer ou Rolf Lunden.Haverá sessões de leitura por todos os escritores e cinco workshops de escrita criativa sob orientação de Amiri Baraka, Francine Prose, John Edgar Wildeman, Katherine Vaz e Rui Zink. Lista completa de autores e mais informações em www.fl.ul.pt/eventos/short_story, onde se podem fazer as inscrições e propor comunicações, debates ou painéis sobre o tema (data limite das propostas até final de Janeiro).»
*foi-me pedido que passasse a mensagem.

o homem que não sabia chorar (3)

E nos olhos não ficou nada. Foi como se a chuva apagasse definitivamente a lágrima e o sorriso, o mau e o bom. Naquele instante percebeu que já não sabia chorar.

Confessionário (3)

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"Les Amants" »» R. Magritte
...tenho por princípios
Nunca fechar portas
Mas como mantê-las abertas
O tempo todo
Se em certos dias o vento
Quer derrubar tudo?...
Sudoeste, Adriana Calcanhotto/Jorge Salomão

São nas horas nuas que me sinto desprotegida de mim e dos meus afetos. É quando tudo ao redor parece sem sentido e vazio...
Uma grande amizade? Virou pó, um porta-retrato antigo sobre o móvel para que eu me recorde de quem não deveria ser esquecido.
Há quem bata as portas sem fazer barulho...
Mas há também os que não se incomodam com o rangido dos ferros e aldravas.

The Ballad of a grey city night (1)

"The ballad of a grey city night, ex.1" »» v. LEAL BARROS

sublinhado (5)

"Só ao fim de um bocado consegue reconstituir a sequência de eventos e, quando o faz e se levanta, tem já a clara noção de que, naquele momento, deveria estar morto. Aquela pedra estava destinado a matá-lo. A única razão por que saíra naquela noite era aquela pedra, era o encontro com aquela pedra e a morte, e, se conseguiu escapar com vida, então isso só pode significar que lhe foi dada uma nova vida - que a sua velha vida acabou, que todos os momentos do seu passado pertencem agora a outra pessoa."(pág. 27)
A Noite do Oráculo (Asa), Paul Auster

quinta-feira, janeiro 12, 2006

sublinhado (4)

“O mundo é governado pelo acaso. O aleatório ronda a presa que nós somos, todos os dias das nossas vidas, e essas vidas podem ser-nos roubadas a qualquer momento – por razão rigorosamente nenhuma.” (pág. 17)
A Noite do Oráculo (Asa), Paul Auster

não resisti a publicar este texto aqui...*

Pequena Prosa para a Cristina
Cristina está em silêncio e sorri juntando os lábios. Parece mais afectiva assim e não me consigo despedir. Pergunto-lhe se está livre. Que sim. Pergunto-lhe se quer ir tomar um café. Que sim. Pergunto-lhe se quer alugar um filme. Que sim. Não lhe pergunto se quer ir para a cama comigo. Que merda.
Bagaço Amarelo, Ivar Corceiro
*devidamente autorizado pelo autor, como deve ser

sublinhado (3)

"- Não há um Paraíso?
- Isso é o Paraíso.
- Mas então e o reino da glória? E as sandálias de ouro?
- Abandonamos a consciência como se acordássemos de um pesadelo. Deitamo-la fora como uma peça de roupa que nunca nos serviu muito bem. É uma libertação extática. Não podemos apreendê-la enquanto tivermos um corpo. O orgasmo é o que mais se aproxima, mas é grosseiro e insignificante em comparação." (pag. 380)
Dias Exemplares (Gradiva), Michael Cunningham

Confessionário (2)

“That’s not a diamond, it’s just a rock.”


E vamos carregando os dias de olhos fechados, tapados com vendas negras, como se ambicionássemos ser a metáfora da Justiça. Cegamo-nos a todo custo para que a vontade seja imparcial, para que o desejo não calque o limite da consciência. E nesse jogo pretenso-altruísta de que trilhamos o caminho certo, esquecemo-nos de quem nos pede um beijo ou um abraço diariamente e da recusa insensata repetida a cada pedido. Pior do que confundir o diamante com a pedra ordinária, é tê-lo no bolso e pensar que se o não tem. De olhos fechados vamos caminhando cegos, mas a Justiça não é filha de Deus.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

...e o vento mudou (perhaps, perhaps, perhaps)...

"Perhaps, perhaps, perhaps" »» Mari Wilson

Confessionário (1)

Viver é não ter medo de arriscar-se.
Podemos ser miseravelmente infelizes, mas, oh, quando tocamos a felicidade somos inalcançáveis!
É preciso cuidar para que os cacos de vidros que deixamos pelos caminhos não machuquem, inadvertidamente, os pés de quem vem logo atrás e com isso não nos tirem a força de ser quem somos.
Há quem veja uma rosa em toda sua exuberância e o único comentário que terá, será: como tem espinhos, meu Deus!

Peter Llewelyn Davies: This is absurd. It's just a dog.

J.M. Barrie: Just a dog? Porthos dreams of being a bear, and you want to shatter those dreams by saying he's just a dog? What a horrible candle-snuffing word. That's like saying, "He can't climb that mountain, he's just a man", or "That's not a diamond, it's just a rock." Just.

“Quote” do filme Finding Neverland

Em meu nome pessoal e em nome da Luciana (acho que me permites) peço desculpa à Cristina pelas possíveis semelhanças entre o anterior template do Sincronicidade e o do blogue Dias Felizes. Não foi de todo nossa intenção apropriar-nos da imagem de quem quer que fosse e por isso resolvemos alterar o template. Tal como o actual, o anterior template foi alterado apartir do Minima White da Blogger, cujos direitos de autor recaem no sr. Douglas Bowman. Para que tudo fique claro, o desenho utilizado para o banner do Sincronicidade é da autoria de Siza Vieira. Mais uma vez o nosso pedido de desculpas pelo mal entendido. Alguma coisa a ser esclarecida não hesitem em contactar.

Espasmos # 6

A verborragia não se esgotara.
Num tom entre o descrente e o irônico, uma outra voz retrucava o mesmo refrão até o ponto de reproduzir ecos que me lembravam que eu não poderia fugir ao meu destino.
Então, escolheu o melhor diamante – límpido e duro – tatuando-me sobre a pele a pergunta tão preciosa:
“Mata-me a curiosidade, conta-me, a vida ainda vibra?”

sublinhado (2)

"A voz com que falo neste momento, aquilo que conheces como a minha voz, e, por extensão, a minha personalidade, digamos assim, são programadas. Cadência, vocabulário, modulação, gíria, tudo concebido por Emory Lowell, para me fazer parecer mais humano. Além, claro está, destes ataques involuntários de poesia. Mas aquilo que eu tenho dentro da cabeça é diferente. Ouço-me falar - estou a ouvir-me neste preciso instante - e parece-me estranho. Não coincide com o que ouço na minha cabeça. Os impulsos são meus, a decisão de dizer uma ou outra coisa é minha, mas a expressão está para lá do meu controlo." (pág.340)
Dias Exemplares (Gradiva), Michael Cunningham

terça-feira, janeiro 10, 2006

CFP regenerada

O Francisco José Viegas é o novo director da Casa Fernando Pessoa. A Tabacaria de volta como anuncia Eduardo Pitta... (era bom). Bom Trabalho!

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Balthus

Espasmos #1
Eu sempre me liquefaço em dias de chuva – nunca te disse? Pois é. Dissolvo-me. Diluo minha matéria bruta para aliviar meu peso, meus passos, pois sendo líquido posso vazar pelos poros transformando-me em corredeira ou simplesmente evaporar sem deixar vestígios.

Espasmos #2
É que na maioria das vezes sou mesmo corredeira volumosa...
Nunca escutas?
Quantas vezes precisarei desembocar em ti para entenderes a violência dos sentimentos gerados pela força das minhas águas?
Suplico ao vento que pare de soprar: estou exausta de tanta arrebentação.

Espasmos #3
E quanto mais gritava ao vento, menos era ouvida. A voz era dissipada pela velocidade do ar... senti-me órfã, abandonada, lançada ao redemoinho, ao pó... comigo, uma folha de papel era arremessada ao nada; esperei os movimentos, decorei sua rotação e no momento exato do rodopio, agarrei-a com as mãos.

Espasmos #4
A folha estava amarrotada num claro gesto de quem deitou fora uma idéia que não servia ou não conseguia desenvolver. Bem no centro do papel, em destaque, lia-se a palavra “memória”.
Queria lembrar-se de algo? Ou esquecer? Não importa, agora de posse da memória de outrem, escreveria sobre vidas que não me pertencem, mas que são parte de mim.

Espasmos # 5
E alguém sussurrou ao longe algo que me pareceu ser assim:
“Diante do Tempo, a vida
Pode parecer uma irrelevância
(Talvez o seja mesmo).
O que fazer se o irrelevante
É tudo o que possuo?
Fechar uma porta,
Apagar a luz
Faz toda a diferença.
Não tenho a eternidade para saber...”

louco ou visionário?

"Architects, painters, sculptors, we must all return to crafts! For there is no such thing as "professional art". There is no essential difference between the artist and the craftsman. The artist is an exalted craftsman. By the grace of Heaven and in rare moments of inspiration which transcend the will, art may unconsciously blossom from the labour of his hand, but a base in handicrafts is essential to every artist. It is there that the original source of creativity lies. Let us therefore create a new guild of craftsmen without the class-distinctions that raise an arrogant barrier between craftsmen and artists! Let us desire, conceive, and create the new building of the future together. It will combine architecture, sculpture, and painting in a single form, and will one day rise towards the heavens from the hands of a million workers as the crystalline symbol of a new and coming faith."
Bauhaus Manifesto, 1919, Walter Gropius
(?)

sublinhado (1)

"Sonhou com um rapaz a olhar para um homem que olhava pela janela a escuridão onde o rapaz se erguia. Sonhou com um comboio que voava sobre um campo dourado, em direcção a um destino indiscritivelmente fabuloso." (pág. 301)
Dias Exemplares (Gradiva), Michael Cunningham

segunda-feira, janeiro 09, 2006

construindo... em cima e em baixo

o homem que não sabia chorar (2)

Talvez da janela questionasse, ainda sem ter percebido, se ao fundo os olhos conseguiam alguma resposta. Há anos que não olhava para trás, tinha medo de olhar para trás e sempre que o fazia duas árvores tombavam violentamente na terra e diziam-lhe que não. Duas a duas caíam, duas a duas varriam o caminho e matavam as sombras. Tudo até que o horizonte fosse em linha recta e a água pudesse subir amolecendo os pés da casa. À espera e sem olhar para trás - ainda hoje tem medo de olhar para trás - levava os joelhos ao queixo e as mãos aos tornozelos, talvez sentado na janela. A água lentamente cercava e derretia os pés da casa. Vindas de trás, duas a duas como jangadas afiadas, via as árvores derrubadas ultrapassarem-no pela esquerda e pela direita, duas a duas flutuando em direcção ao futuro.
Não olhava para trás - ainda hoje tem medo de olhar para trás. Em baixo, sentia os pés moles da casa. Na frente, duas a duas como velas em bolina, as árvores flutuavam pela esquerda e pela direita, as copas primeiro e depois as raízes a roçarem a casa. Talvez sentado na janela levasse os joelhos ao queixo e as mãos aos tornozelos. Tudo, assim, até que nascesse o silêncio.

"eu, Joaquim Brandão"

"Joaquim Brandão" »» Albertina Silva
Hoje o Incomunidade relembrou-me Joaquim Brandão. Ele, Joaquim Brandão, é um poeta nascido e criado na freguesia de Paranhos. Ele, Joaquim Brandão, não acredita em Fátima... Ele, Joaquim Brandão, é um homem de fé, não acredita em Fátima, mas acredita na Humanidade... eu, Vítor Barros, esforço-me por continuar a acreditar.
P.S.: Sobre encontros assim uma vez escrevi isto... (alguma familiaridade com o título do blogue é pura coincidência ou vontade de Nsa. Srª. de Fátima)

sábado, janeiro 07, 2006

o homem que não sabia chorar (1)

Apesar do frio que fazia, o seu coração teimava em não cristalizar.

Cecília entre os Leões

Tudo percebo _ a encomendação do corpo, o trabalho dos coveiros, o pó nas lápides, as lamúrias discretas das mulheres _ e alheio a tudo, dentro de uma claridade que me ilumina por dentro e assemelha-se a um globo de espelhos em pedaços, com milhares de réstias que se cruzam, contemplo Cecília ao sol do meio-dia. Com os olhos (neles zumbem negros e rápidos leões), parece dizer-me: “Tenho a minha vida nas mãos, Abel. Recebe-a. Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo, é cheio de botões secretos e de facas que à mínima imperícia ou distração saltam voando e lanham a carne”. Engano-me, eu, se nessa companheira reconheço a minha substância? Ela emerge de mim e da minha vigília tão semelhante a um sono prolongado _ ela e os seus entes, uns nus, outros vestidos, uns sem armas, outros armados. Contemplo no seu corpo, assim parece-me agora, a minha e a sua memória, simultaneamente. As presenças humanas nessas memórias. Como se eu pudesse ver, ouvir, tocar as visões nem sempre nítidas, mas cheias de verdade e nunca fixadas em uma única idade de suas vidas, as visões ou espectros que habitam a memória e têm, junto com os brinquedos outrora possuídos e os lugares onde se viveu, o duvidoso nome de recordações. “Cecília, o equilíbrio é pouco seguro e ilusório, bem sei, quando o homem está nele incluído. Mesmo no Éden, esse estado perdura muito menos do que se pode esperar. Quantos passos daremos juntos?” Este minuto: espinhal desmesurado, esférico, a arder em torno de mim, como num fogo de diamantes."
Avalovara, Osman Lins

Sejam Bem-Vindos ao Sincronicidade