segunda-feira, fevereiro 27, 2006

O Outro Lado (0 ou INTRO)

A silhueta debruçada no chão é sempre mais concisa e mais enigmática do que a forma mãe. Ao olhá-la ela possui a força de um touro preto, é uma espécie de máquina com funcionamento interno obscuro e silencioso que adquire vida própria e da qual não adivinhamos nada, apenas especulamos sentidos. O seu mistério reside precisamente na contradição que a origina, se por um lado ela depende da forma mãe para nascer, por outro, adquire uma independência e uma identidade únicas que extravasam a sua origem. Ela – a sombra – é sempre o outro lado, mas é ela também. Este é também o mistério da VIDA.

Tendemos a olhar o mundo azul e cor-de-rosa seduzidos por toda a beleza que dele se solta. Observamo-lo com a ingenuidade das crianças e procuramos na sua pele, na sua face, uma resposta e um sentido para aquilo que fazemos. É uma procura solitária em que o olhar se deleita com o visível, com o real e nos absorve de forma vampirizante. Não há neste processo qualquer tipo de filtro entre nós e o outro. Tal qual uma árvore solitária, somos espectadores da paisagem. O visto é tido como certo para os nossos olhos e portanto, não há dúvida, não há questão, apenas fascínio. Diga-se que esta forma de olhar é a mais pura, a mais honesta, porque neste processo a candura e o acreditar são incondicionais, são paixão.
É então que no decorrer da vida nos apercebemos da virtualidade do mundo que observávamos. Os acontecimentos giram à nossa volta e o que tínhamos como puro e belo, afinal não é real, ou então, é real mas é podre. Apercebemo-nos que estamos perdidos, que não há uma terceira perna que permita equilibrar a mesa da verdade. Vemos o real e a sombra em simultâneo e a dúvida nasce (em quem acreditar?). Se por um lado a dúvida nos defende daquilo que observamos ou sentimos, por outro, ela funciona em nós como um véu, uma cortina translúcida que nos separa do real. Duvidar obriga-nos a ganhar distância em relação ao que vemos, quebra o imediatismo entre olhar e sentir, porque questiona a verdade entre o que se vê e o que se sente. Para que a desilusão, nascida da prova de que a dúvida era correcta não nos atinja, começamos a ver o mundo por uma janela escondendo-nos atrás de vidros protectores olhando covardemente o que se passa lá fora. Já não há crença no olhar e no sentir. Somos nesta fase da vida qualquer coisa e muitas vezes aquilo que o mundo quer que sejamos.
A subida da escada é a fase crucial. É a peneira que separa o fraco do forte. Subi-la significa escolher ver directamente o real, desistir dela é a atitude confortável e despojada de carácter, de quem covardemente se mantém passivo olhando atrás de uma janela. Infelizmente há quem nunca decida subir a escada e, não há coisa mais triste do que olhar um velho que teve medo de fazer o caminho. Mas, deleitemo-nos com os que optam por subir. Há quase como que um revigorar no olhar. A dúvida continua mas a vontade de guardar o mundo é superior. Volta-se a querer olhar o céu, não com o fascínio ingénuo das crianças mas com vontade de o perceber e do o guardar assim, azul. É como se resgatasse de novo o tempo e toda a vida fosse um filme e todo o olhar fosse contemplação. Sentimos que o coração se recompôs e que o olhar já não é medo nem dor, é vida. E porque a dúvida quando nasce em nós persiste eternamente voltamos a olhar a janela e sabemos que por detrás dela estão aqueles que decidiram não subir a escada e sabemos que se protegem e sabemos que nós não estamos protegidos e sabemos que tudo isso não importa nada, porque, deste lado há mais luz e o que vemos é a VIDA reflectida.
Encontrámo-nos de novo, ou mais precisamente, descobrimos O OUTRO LADO de nós. A silhueta agora desenhada no chão é a nossa e então sabemos que somos mais concisos e enigmáticos do que imaginávamos ser. Sabemos que possuímos a tal força do touro preto e que o funcionamento obscuro e silencioso é o mecanismo da nossa alma. Como uma sombra, somos sempre o outro lado, o lado que desconfia e duvida, o lado que tem medo e que cai, mas somos nós também. O mais importante é manter o equilíbrio entre o que se rouba do mundo e o que dele guardamos em nós.
Para quê fecharmos a porta? Para quê resguardarmo-nos atrás de uma janela que o máximo que nos oferece é uma paisagem recortada da realidade? Apesar do medo e do olhar do outro há sempre a esperança viva de fotografarmos o mundo da nossa maneira, de reflectirmos sobre ele procurando sempre o outro lado das coisas. No fundo há sempre alguém com uma sensibilidade parecida com a nossa e que no meio da confusão busca a verdade em si, que procura a robustez e a simplicidade das catedrais românicas no alto das cidades e que guarda do mundo o mesmo que guardamos nós.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

LADO B (1)


fim do LADO A

o LADO A do vinil Sincronicidade chegou ao fim, resolvemos deixar a onda Retro FM e virar o disco para coisas mais actuais... em jeito de conclusão aqui fica o resumo do alinhamento:
LADO A

Confessionário (10)

Tenho para mim que os sentimentos verdadeiros, assim como as verdadeiras emoções e o verdadeiro talento são atemporais, não respeitam nem possuem a lógica abstracta do tempo, são absolutamente independentes. O seu real valor é incalculável, é impossível de medir. Não entra o factor ‘opinião’ na sua avaliação, quantificá-los, medi-los, postulá-los são rótulos demasiadamente redutores que anulam por completo a sua grandeza e verdade essencial. É como se de repente nos fosse pedido que avaliássemos ou postulássemos sobre a Biblioteca Laurenziana, ou sobre o baú deixado pelo Fernando Pessoa… não tenho dúvidas que o resultado ficaria aquém da milésima parte da sua grandeza e verdadeira dimensão. Muitos tentaram enquadrar, definir, quantificar… uma série de acções mecânicas sem qualquer significado… tudo em vão. É impossível medir a verdade, minha amiga! É impossível pesá-la, discuti-la ou quantificá-la… ela é de outra ordem e de outra natureza, é uma matéria mais próxima dos deuses do que dos homens. Só um coração livre poderá sentir o seu valor, porque só num coração livre ela faz algum sentido. O resto é uma perda de tempo ao qual devemos dar a proporção certa: matéria estéril sem qualquer importância.

coisas bonitas que apanhei por lá e resolvi coleccionar (2)

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

terça-feira, fevereiro 21, 2006

coisas bonitas que apanhei por lá e resolvi coleccionar (1)


Agora espalham poemas pelo metro de Londres, já tinha ouvido falar da iniciativa mas nunca me tinha deparado com nenhum. Desta vez tive mais sorte e resolvi coleccionar todos os que encontrei. Este parece ter sido um tesouro anónimo resgatado pelo Ezra Pound para nossa satisfação.

Espasmos # 9

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À deriva, Sandra Alves Correia

As bóias indicadoras de segurança parecem-me distantes demais, ainda assim eu busco alcançá-las. Quero saber como é o mar além dos limites do permitido, do aconselhável. Que segredos guardam suas profundezas?
Não tenho medo de ser devorada por nenhum leviatã. O que eu temo é ser lentamente consumida pelos vermes da agonia e do tédio.
O tombadilho agora clama por mim.

ainda Cézanne

"Old Woman with Rosary" »» Paul Cézanne
Esperei durante meia hora que terminasse todas as contas, crescendo a ansiedade à medida que a melodia se construía entre assobios ligeiros e murmúrios compassados. Alguma coisa na forma como agarrava o terço me dizia que a espera não era em vão. Não, não era fé, era algo bem menos ambíguo, uma espécie de energia universal, talvez o mesmo tipo de força que une os pássaros ao céu. Esperei até que a touca branca rodasse e se orientasse na minha direcção. Os olhos eram dourados, de uma luminosidade que eu nunca vi… ou seriam apenas um espelho dos girassóis na parede oposta da sala?

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O Diário de G.H. (3)

A hora do susto

Surpreendentes eram seus olhos quando raspei com a minha unha a primeira camada de pele. Era uma feridinha besta, destas que a gente cutuca para se ver livre, mas eis que sob meu peito saltaram aqueles olhos persecutórios, loucos de vontade de saber quem quebrava a casca do ovo antes da hora.
Havia uma hora prevista para que ela nascesse? Saberia ela que estava escondida em mim ou seria sempre um embrião em gestação? Seu azar foi a tal feridinha causando um certo incômodo ao toque da minha mão e pontas de dedo.
Levei um susto, sem saber se continuava puxando a pele ou dava um jeito de devolver a casca ao lugar de onde tirei. Ali imóvel sobre aquela cadeira, encarando os tais olhos, fiquei com essa indagação por muito tempo, até que sua mão abrupta empurrou-me por dentro, impelindo-me ao salto. Corri para o armário do banheiro: o band-aid dar-me-ia a trégua necessária para saber o que fazer com a tal descoberta.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Quando a mente viaja...

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As banhistas, Paul Cézanne


Era o nosso último verão juntas. Assim que ele terminasse, iríamos cada uma em busca das próprias aspirações, enfrentaríamos, sozinhas, os nossos medos, sem ter umas as outras para apoiar. Afinal, chega uma hora na vida em que as pernas precisam dar conta do percurso que escolhemos trilhar.
Durante todo o tempo em que ficamos juntas, jamais ousamos falar na despedida, na hora do adeus. Nada havia sido combinado, mas agíamos como se veladamente soubéssemos da existência de um código secreto: se não falássemos, não doeria.
Até que Giulia surgiu com a idéia de um quadro. Havia conhecido no hotel, um jovem pintor francês – Paul – de muito talento. Ela o convenceu a nos retratar. Não imagino como, uma vez que ele falava muito pouco e estava sempre muito isolado.
Fomos todas as cinco ao encontro de Paul numa colina. Chegamos lá e ele não estava. Esperamos minutos, horas e nem sinal do pintor. Começamos a ficar um pouco irritadas com a demora; depois completamente desoladas, resolvemos esquecer a questão.
Apesar de desprevenidas, fomos nadar no lago. Já não nos importávamos se alguém aparecesse. Se isso acontecesse, seria uma lembrança alegre e despojada daquele nosso verão.
Muitos anos depois, quase vinte, nos reencontramos em Paris. Aproveitamos a tarde para conhecer a galeria de um amigo meu.
Passeando os olhos pelos muitos quadros, ouvimos o gritinho histérico de Giulia. Paramos apatetadas diante daquelas mulheres nuas numa colina. Aquela colina!
Lia-se embaixo da tela: As banhistas, Paul Cézanne.


quarta-feira, fevereiro 15, 2006

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Confessionário (9)

Querido, o amor é uma alquimia de sentidos... o amor nos permite reter os odores, as músicas, as cores, o detalhe, a ruga no canto do olho para mais tarde nos deliciarmos em lembranças.
O desamor tem a mesma força, não se engane. Não nos permite que envelheçamos com a beleza própria do tempo.
Escuta! Ontem eu ouvi uma canção antiga, linda e ela destampou todos os lacres e eu vivi uma orgia sentimentalóide, nostálgica, mágica e muito minha.
Se fosse uma música muito provavelmente seria taxada de brega; se fosse um poema seria ferozmente criticado como chinfrim... não me importo. Eu adoro vestir-me de chita estampada ao cultuar certas lembranças.
O que eu não gosto mesmo é da insanidade de alguns, sabe? Alguns insistem em ser história – atual, contemporânea – quando há muito repousam no baú de memória das pequenas obsolescências.

Confessionário (8)

Falavas-me da velhice e lembrei-me do Hesse e da ciência do envelhecer: sem esta atitude de aceitação, sem esta entrega àquilo que a natureza de nós exige, deixamos escapar o valor e o sentido dos nossos dias, sejamos nós velhos ou novos, enganamos a própria vida. Sabes, há uma escada que temos de subir, degrau a degrau, para envelhecer tranquilamente. E se necessário for, não deveremos evitar a morte de dois ou três degraus para que o caminho se complete. Antes isso do que tropeçar e carregar a dor e o remorso até ao limite da vida (se ela tiver limite). Não há coisa que me entristeça mais do que um velho amargurado. É das poucas coisas que verdadeiramente tenho pena.

onda retro FM, track 8

"Please" »» Russ Columbo

domingo, fevereiro 12, 2006

Brokeback Mountain

Brokeback Mountain, de Ang Lee, é talvez, uma das histórias de amor mais bonitas que vi no cinema nos últimos anos. Não será necessário escrever uma sinopse exaustiva do filme, penso que todos saberão que se trata de uma história de amor entre dois homens, baseada num conto de Annie Proulx, desenrolada no midwest americano, rural e conservador, durante a década de 60.
Brokeback Mountain é um filme quase calado, silencioso… o seu poder não está no choque, não há a intenção de impressionar os heterossexuais, nem a de se tornar num hino para os homossexuais. O poder de Brokeback Mountain está na forma como fala de Amor. Não é uma história de amor entre dois homens, é mais que isso, é uma história de amor universal, que ultrapassa sexo, género, raça, o que for. Talvez por ter essa dimensão as pessoas o respeitem. Eu vi o filme numa sala mainstream de centro comercial (de dimensões colossais) e nem por um segundo me apercebi da típica piadinha homofóbica ou dos risos irónicos nas cenas mais susceptíveis, o que normalmente acontece em filmes que de uma forma ou outra abordam a homossexualidade. Brokeback Mountain faz-se na ternura dos olhares, na intensidade dos abraços, na angústia e no medo de ser diferente quando não é permitido ser. Pena é, que por circunstâncias alheias ao amor, tantas almas tenham de sofrer, as que amam e aquelas que se vêem arrastadas para dentro da história. Fica-nos na memória o olhar da mãe que tudo reconhece e tudo aceita, porque sabe não haver nada a perdoar, e cenas como esta, da foto publicada no blogue, que nos diz mais do que mil palavras.

sábado, fevereiro 11, 2006

O Amor é olfactivo

Durante anos perguntei-me como guardava o amor, perguntei-me de que forma edificava a memória, de que modo permitia ao corpo libertar o desejo… é nestas horas de silêncio, entre o sono da cidade e o sono dos anjos, que me chegam todas as respostas. Enrosco-me sobre o seu corpo e inalo uma e outra vez o perfume do seu pescoço. São inspirações profundas, deliberadamente lentas, ditando o tempo suficiente para que cada molécula possa restituir o passado. Em segundos e como uma droga, o cheiro percorre dez mil anos de procura desesperada. Sobrevoa os séculos em que nos foi proibido o abraço, todas as vidas em que nos foi negado respirar a pele do outro, até alcançar o dia primeiro, o dia em que o amor gravou a sangue a eternidade. Por momentos o tempo pára, e o coração diz-me que foi nesse instante que nasceu a verdade, no momento exacto em que a minha pele e a sua se misturaram pela primeira vez. Depois expiro lentamente, soltando o passado à medida que regresso outra vez à cama onde nos deitamos, ao lençol que nos abraça. Então digo, eu conheço a força deste cheiro, conheço a longa viagem deste perfume. Não serão outros mil séculos suficientes para me roubar de novo o amor, porque num segundo, no breve instante em que o ar me incendiou o peito, eu respirei a eternidade.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

O Diário de G.H. (2)


Depois do tumulto

Choveu toda a noite, chuva miudinha, incansável. O céu parecia solidário à minha incompreensão, ao medo da descoberta que fiz quando arranquei a primeira camada de pele...
De repente, o relâmpago e nessa hora eu entendi a poesia das minhas muitas vidas.
Minha angústia, minha pressa de viver foi a responsável por tantas pessoas em mim. O silêncio de não me saber gerou inquietações e a cada interrogação uma vida nascia para responder os meus anseios.
Mas minha busca é pela criatura primeira, aquela que tomou um grande susto diante da velocidade da vida e dos intervalos de silêncio que ela me oferecia a cada vez que não sabia responder as minhas tantas curiosidades.
Um inferno abrasador movia meus impulsos, mas a chuva veio amainar meus plurais e trazer o alívio.
Sou eu quem me vê assim, sou eu quem sabe da desordem da casa, dos tais tropeços, da quantidade de pernas e braços. Poucos podem enxergar o que está por baixo da primeira camada. E eu me mortificava por confundir defeitos com verdades.
A diferença? Nem todos vêem as verdades, contudo, os defeitos exacerbam. As estranhezas saltam aos olhos como um grande abismo, mas as verdades dos meus muitos membros revelam-se para mim, somente, encontram-me na madrugada, nos sonhos, nas sombras que projeto.
A minha mão impõe-me um papel e não há delicadeza nessa procura.

just tired

ando desaparecido? talvez... mas chego a casa tão cansado que mal consigo erguer a cabeça para ler os comentários (sempre simpáticos)... há imensa coisa que quero dizer, mas a estas horas já não sai absolutamente nada... de qualquer forma a promessa de amanhã, caso tudo corra como pretendo, falar sobre algo que me deu que pensar e algo que me comoveu de tão lindo que é... (bons sonhos!)

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

onda retro FM, mais um



"Blue Suede Shoes" »» Elvis Presley
ps. não sei se vou aguentar com a esta a tocar durante muito tempo no blogue...hehehe
o melhor mesmo é contornar a coisa... se quiser dançar carregue no play...

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

a eternidade num abraço

E na intensidade de um abraço apercebemo-nos do tempo que tínhamos perdido, das horas que menosprezamos, dos minutos que não sentimos vivos. Durante anos fugimos da vida, como se escapar fosse o único antídoto ao desígnio de ser feliz. Num abraço, deixamos que o veneno percorresse todo o corpo, que o amor inundasse cada poro, cada célula, deixamos que a eternidade se apossasse do espírito. Irreversivelmente condenados a partilhar a mesma alma, aceitamos, sem mais porquês, os fundamentos do destino. E a vida? A vida tornou-se leve como uma nuvem em Agosto.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Espasmos # 8

Ancorou seu corpo junto ao meu. Depois de ficar imóvel por um tempo, tentou com imensa dificuldade dirigir-se ao tombadilho.
Observando a lentidão dos seus movimentos e o vazio no olhar, tomei-lhe as mãos cuidadosamente; tive medo que ele quebrasse ao meu toque, estilhaçasse em mosaicos indescritíveis e impossíveis de juntar.
Não relutou em segurar a bóia que lancei. Agarrou-a com vontade e debruçou-se entregue ao resgate.
Não rompi seu silêncio. Ofereci meu porto até que, por si só, ele também descubra a viração, a vibração da vida.

Confessionário (7)

A dor suprema talvez seja a que sentimos quando o tapa acerta o coração, rompendo suas veias, respingando sangue e vida para fora do corpo já tão inerte. Não há tempo que apague tais memórias ou sequer as atenue; a dor transforma-se, transporta-se e já de novo é presente. E é sempre a mesma fisgada na alma.
Ainda bem que envelheço, ainda bem que a mente falha e esqueço, jogada a esmo, pelos alçapões de gavetas e armários, a chave que abre o compartimento das lembranças. É na hora dos lapsos que o amor ressurge com força suficiente para mover os sonhos e romper os silêncios.

sublinhado (15)

"- Os textos, de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em textos virtuais. Minha vida inteira concentra-se em torno de um ato: buscar, sabendo ou não o quê. Assemelham-se um pouco às de um desmemoriado minhas relações com o mundo. Caço, hoje, um texto e estou convencido de que todo o segredo da minha passagem no mundo liga-se a isto. O texto que devo encontrar (onde está impresso ou se me cabe escrevê-lo, não sei) assemelha-se ao nome de uma cidade: seu alcance ultrapassa-o - como um nome de cidade -, significando, na sua concisão, um ser real e seu evoluir, e as vias que nele se cruzam, sendo ainda capaz de permanecer quando tal ser e seus caminhos estejam sepultados." (pág. 65)
Avalovara (Companhia das Letras), Osman Lins

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Espectadores de nós mesmos

Esculturas hiper-realistas do australiano Ron Mueck
Quem? Ok.
Então, alguém se lembra de Labirinto com o David Bowe e Jennifer Connely? Ron Mueck foi responsável pelos efeitos especiais do filme.

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Boy

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Big man

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Two women

se não fosse a terra a pintar teria sido Monet

Deserto da Arábia »» Arábia Saudita

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

1. Pegue o livro mais próximo de você
2. Abra na página 23
3. Ache a quinta frase
4. Poste o texto em seu blog junto com essas instruções
"A um olhar mais cândido, o que dissemos merece reparos."
Osman Lins, Avalovara, Companhia das Letras

onda retro FM (Lu, os teus desejos são ordens)



"It had to be you" »» Billie Holiday

O Diário de G.H.

Aos parcos leitores

Este diário não é um estudo, não é uma erudição, sua única pretensão é confrontar impressões, estabelecer um diálogo íntimo de alma para alma; ele é apenas a descoberta fulgurante das minhas entranhas, proporcionada pelas repetidas leituras d’A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector.

V.


Numa madrugada qualquer de agosto

Sempre tive a sensação de mal-estar no mundo, uma sensação de não caber no meu espaço, um desconforto diante de meus pares – eu me pergunto: tenho pares?
Eu sabia que em mim há uma mulher que tento esconder ferozmente. Tenho medo que as pessoas identifiquem meus excessos, essa quantidade absurda de pernas e braços que camuflo sob a roupa que visto.
O que diriam se soubessem das muitas que vivem em mim e tentam bravamente, numa luta corporal, projetar-se do meu corpo? Tomariam-me por uma aberração?
Elas não podem me achar, então eu vivo a árdua tarefa de perder-me diuturnamente como no jogo de esconde-esconde. Qualquer hora dessas vou perder-me de tal modo que não mais serei capaz de fazer minha montagem humana. Tropeçarei nas pernas, trocarei os pares de braços e não saberei a quem pertenço. Fecharei meus muitos olhos porque a sobreposição de imagens fatigam minha visão e eu tenho medo das inúmeras verdades que testemunho. Selarei meus lábios para que as vozes não se confundam. É preciso esperar que todas elas adormeçam para que eu possa viver uma vida de cada vez, caso contrário, os anos pesarão sobre meus ombros e antes de envelhecer eu preciso me saber, preciso ordenar os ciclos individuais até tornar-me pessoa.


se não fosse a terra a pintar teria sido August Strindberg

Baie du Mont-Saint-Michel »» França

Confessionário (6)

Talvez a mão marcada no rosto, desenhada a vermelho pelo sangue estimulado, seja preferível. Ela possui ascendência sobre a memória e num espasmo a vida encarrega-se de viajar ao presente. Quanto ao não-dito, é ridículo e estranho pensar que o que não foi pode tornar-se na dor crónica que acompanha o silêncio. Como tu, e apesar da luta pela decisão, talvez eu também não consiga gritar sem ver um rosto. Mas fala-me de esperança e amor, de sonho e utopia, porque entre a virtualidade do que não foi ou a do que há-de vir, prefiro alimentar a alma com os silêncios do futuro.

se não fosse a terra a pintar teria sido Cézanne


Cambridgeshire »» Reino Unido

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

jogando na loteria

onda retro FM (capítulo 5)

"At Last" »» Etta James

sublinhado (14)

Ninguém sabe ao verto em que ponto do mundo os ventos são gerados, quem os dá à luz ou à escuridão, quem é a mãe dos ventos e por quem foi criada. Os começos jazem na sombra. (pág.39)
Avalovara (Companhia das Letras), Osman Lins