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terça-feira, julho 10, 2007

de génese (1.3.)

e no corpo deus viveu dois dias alheio ao destino irrevogável do sangue. nas mãos fechadas segurava o pó com que ia lavando a face e curando a cegueira cada vez mais intensa e escura. por entre o brilho intermitente dos cabelos dourados a vida existia-lhe apenas no ventre, rubra, embalada pela melodia do duplo sexo e a carne entoava labaredas num fogo cada vez mais ardente e visceral. e nesses dias deus existia somente na doce promiscuidade do corpo e não chorava a alma porque o lume era alimento bastante. no canto do universo a alma permanecia quieta e atenta. assistia ao espectáculo orgíaco do deus-corpo em consumo e a cada rasgo de sangue, a cada lago de saliva criado nas membranas do vazio, a alma chorava-lhe a volúpia e a rendição. e eis que ao vigésimo segundo dia o deus-corpo se abafava de prazer e a pele já não respirava e o lume não regenerava e o pó já não curava e a atmosfera existia apenas sob a forma de um manto sujo que tingia de negro os cabelos de deus. deus lutava para manter o corpo vivo. gritava pelo pó e ordenava que o pó o curasse e o pó não obedecia. e foi que deus percebeu que o pó era impuro e inerte e se arrependeu e o amaldiçoou para sempre.

quarta-feira, julho 04, 2007

de génese (1.2.)

e deus notou que havia criado o tempo e que as suas mãos e as suas pernas e os seus braços lhe traziam medidas, sinais do corpo em rotação. e estendeu os cabelos no vazio, atirados como fios dourados numa teia contínua de luz espalhada sobre o silêncio divertindo-se com o acaso e com o número de mãos que lhe cabiam nos braços e o número de braços que lhe cabiam nas pernas. e distraído com a estrutura da criação, deus gozou dias a fio com a descoberta. e puxava e devolvia as horas e aumentava e diminuía os dias experimentando o equilíbrio do quadro que se distanciava do medo. ao vigésimo dia da criação deus caiu. e os braços eram exaustos e as pernas eram adormecidas e as mãos eram calejadas pelo contínuo palmilhar da medida. os cabelos estendidos no silêncio como uma toalha sem brilho, eram no sono como uma toalha sem brilho. deus dormiu então profundamente. e foi que a alma, o último alimento da criação, acordou intranquila e inquieta no interior do olho de deus. já não suportava o cansaço pueril do corpo exausto de deus. magoada rompeu-lhe a pálpebra e partiu. em abandono viajou pelo silêncio e rasgou a toalha dourada tecida pelos cabelos de deus. e foi que sem distância o olhou como se olha uma criança deitada no vazio. quando o vento varreu o cansaço, deus despertou e sentiu o peso insuportável de uma vida por existir. ergueu-se tenebrosamente lambendo a água do olho rompido e cego e ordenou que a poeira cicatrizasse a ferida. lá de longe, do fundo da distância, a alma chorava-lhe a solidão. e foi que deus sentiu que o pó era bom e curava as feridas e abençoou-o.

de génese (1.1.)

e no início era o medo e deus criou-se a partir do medo e o medo deu-lhe voz. e tomando a voz, deus ordenou que se fizesse o corpo, primeiro o tronco, depois os membros e a cabeça e por fim a alma. viu deus que a sua obra era boa e abençoou-a.

de génese - I - a metamorfose