quinta-feira, novembro 30, 2006

Radiola (5)

Samba do grande amor
Chico Buarque

Tinha cá pra mim
Que agora sim
Eu vivia enfim o grande amor
Mentira
Me atirei assim
De trampolim
Fui até o fim um amador
Passava um verão
A água e pão
Dava o meu quinhão pro grande amor
Mentira
Eu botava a mão
No fogo então
Com meu coração de fiador

Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira

Fui muito fiel
Comprei anel
Botei no papel o grande amor
Mentira
Reservei hotel
Sarapatel
E lua-de-mel em Salvador
Fui rezar na Sé
Pra São José
Que eu levava fé no grande amor
Mentira
Fiz promessa até
Pra Oxumaré
De subir a pé o Redentor

Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira

quarta-feira, novembro 29, 2006

...Mário Cesariny

O tempo livre nos últimos dias não tem sido nenhum. Blogar torna-se uma tarefa quase impossível durante esta semana e penso que permanecerá a sê-lo durante a próxima. Custa-me que apenas hoje tenha tido cinco minutos para homenagear um dos meus poetas favoritos e que partiu esta semana, Mário Cesariny. Deixo-vos um poema belíssimo que me traz à memória recordações fantásticas de situações vividas num dos locais do mundo mais anónimos que conheço e, no entanto, tão recheado de vida, tão representativo dos dramas humanos. Cesariny como um lugar de passagem.
piccadilly circus

Uma pomba atravessa Piccadilly Circus
em direcção ao rio

em baixo
grandes extensões desérticas de pernas
ressoam como forças paralelas
nos tubos do grande órgão

o homem
é o mar
e o mar “é em cima como nas gravuras”

no dilúvio da luz
um braço pica-se numa seringa
que hoje faz vinte anos de amor bárbaro
todos os lábios falam português por baixo das palavras selvagens que dizem
e mesmo os pensamentos de olhos muito azuis
ideando quem sou no subterrâneo alado
este onde o homem redescobriu o sol e o cobre de cabelos de liberdade
e o submerge no ouro das palavras
e o devasta de corpos e de auroras
Piccadilly Circus
Lugar geométrico da terra
disco rodando o espantosíssimo número
do casamento
do metal com a carne

Vicente Huidobro sobre a torre Eiffel em 1917
é aqui que estás hoje
com sacos de pop-corn
e gestos de quatro a quatro
na noite de cabelos mais alta que todas as luas

Sobre os dois seios de Trafalgar Square
a água sobe branca
aos olhos de Lord Nelson

eu entro sigo saio torno desapareço
caminho muito acima dos meus ombros
sou quem vejo num espelho que vai de autocarro
para um hoje de cidades sem fissura
sou o bombeiro que volta do incêndio
com nos dedos o riso do fogo extinto
a salamandra assistindo ao futuro
e ajeitando ainda
ainda um pouco
o colo

Mário Cesariny
Pena Capital (Assírio & Alvim)

Poetrix (6)

Photobucket - Video and Image Hosting
Azul, Miguel Lopes

A garganta da noite
enxerga o soluço dos olhos:
Voláteis cristais!

(Luciana Melo 27/08/01)

domingo, novembro 26, 2006

... porque mentira tem perna curta

Poderia ter sido uma tarde prosaica como prosaicos eram seus desejos: uma longa caminhada, uma passada pelo videoclube e, na volta, apanhar as frutas que se dão em oferta pelas avenidas arborizadas. Mas como a vida não cessa seus movimentos, o prosaísmo foi às favas.
Já perto de sua casa foi surpreendida por uma visão tão covarde quanto patética. Suas mãos gelaram, o suor tomou conto de seu corpo, a taquicardia e a náusea emergiram. Não pôde respirar. A única coisa quente que fluiu dela foram as lágrimas - apenas duas minúsculas gotas, contidas - ácido derretendo o ferro.
A visão só confirmou o que já sabia, mas teimava em não admitir porque tinha esperança.
Embora acreditasse no poder curativo do tempo, soube naquele instante que o esse mesmo tempo desconhece por completo o compasso de seus dias.

quinta-feira, novembro 23, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (20)

sobre a morte II:

estranha sensação, esta de não pertencer ao mundo de lá,
de lhe ter medo e receio, de o não desejar a cada respiração.
apesar dos pesares, o céu é hoje. estou morto e a vida é o paraíso.
*

continuando...


Composition VIII, 1923 Oil on canvas (Solomon R. Guggenheim Museum, New York), Wassily Kandinsky

Confessionário (37)

Meu querido Vítor,

Não é nada simples continuar o diálogo a partir do teu último confessionário. Existem questões complexas demais e que não ouso arriscar resposta alguma. Um dos motivos é a minha mera ignorância em elaborar tal sofisticação de idéias; outro é a minha total incapacidade ou inabilidade momentânea em dar respostas.
Até nisso estamos em sincronia. Eu também estou em busca de respostas, de uma compreensão, de um entendimento ou simplesmente, quem sabe, de uma paz tal que eu não necessite responder nada, apenas viver cada dia com tudo o que ele me oferece.
Então vamos continuar dialogando sobre nossas inquietações, nosso amor, nosso ódio, nossa afasia, nosso êxtase, porque acredito que o diálogo será não a solução de nossas interrogações, mas uma maneira, talvez a mais amorosa, de sinalizar nossos passos em direção à luz.
A solução terminativa para tais interrogações deve ser provavelmente a morte e nós não queremos morrer. Vítor, queremos estar vivos para testemunhar a felicidade.
Vamos, então, ao primeiro ponto: o movimento espiralado da vida.
É verdade, o assunto sempre me fascinou, mas foi o Osman Lins quem materializou este fascínio ao sistematizar duas categorias antagônicas, a princípio, mas que são profundamente complementares: a espiral e o quadrado, em outras palavras, o tempo e o espaço.
Osman trabalhou tais conceitos de forma exemplar para explicar uma concepção de criação e a partir daí ampliar as fronteiras da estética, resvalando para os limites mais comezinhos da vida em sociedade até chegar ao indivíduo.
Vítor, li com bastante interesse e atenção sua leitura a respeito dos movimentos em espiral. Ela é completamente lúcida e vívida e como tal é também uma leitura crítica das vicissitudes da vida. Não tenho muito mais a acrescentar sobre isso, seria chover no molhado. Contudo, acho que a hora é propícia para introduzir o elemento “quadrado” à tua fala.
Todas essas idas e vindas, a sensação nietzchiana do eterno retorno, os fluxos e refluxos de nossa consciência possuem essa face à la Schoppenhauer que nos deixariam prostrados diante de tanta efemeridade se não houvesse o espaço a limitar as pontas infinitas da espiral.
O quadrado é o centro de gravidade da nossa existência, querido. De outra forma enlouqueceríamos diante deste balé contínuo das horas e dos ciclos. O quadrado surge como elemento ‘opressor’, no sentido em que ele limita nossas ações num determinado tempo.
Uma situação pode apresentar muitas possibilidades, mas há um número finito das mesmas. Como Marx disse em relação à História: existem possibilidades várias de interferir na História, mas é preciso levar em conta as circunstâncias, pois elas definem como e até onde podemos operar as mudanças.
Meu Vítor, o aprendizado diante da experiência que vivi diz-me que fiz todas as interferências possíveis – não interessa se foram suficientes ou não, bem sucedidas ou não –, fui até o limite. O que não fiz foi porque não pude. O quadrado concluiu, pôs termo aos meus movimentos ondulatórios àquela experiência.
É como o papel em branco, querido. Tens nas mãos todas as possibilidades de criar um texto, mas apenas um será escrito quando te decidires pela idéia principal.
Os momentos onde sentimo-nos encalacrados, sem respostas, direções, repetindo a mesma série de atitudes, esse é o momento do convite perigoso e necessário: aceitas os limites ou continuas a escrever a mesma página pela eternidade?
Sobre a memória...
A memória é um truque de prestidigitador. É preciso estar atento às suas seduções.
Ouço muitas pessoas fazerem uma conclusão unívoca entre memória e escrita. Não discordo, mas acho redutor pensar que escrevemos para manter a memória unicamente. E quando não havia escrita, já não havia a memória? O que dizer de lugares, cheiros, da oralidade que sempre foi fonte de registro dessa mesma memória?
Como bem disseste, a memória pode ser um mecanismo de orientação, de sentido ou um mausoléu abandonado. E se se tornou um mausoléu é porque tentamos controlar o que não tem controle nem racionalidade intelectual. A memória, bem como a vida, não é passível de controle porque depende de quem a produz, ficciona. A construção dessa memória individual é uma leitura, uma seleção particular daquilo que nos impulsiona.
Quando não te questionas mais, quando abraças os teus cadáveres “sem qualquer tipo de causalidade e de forma completamente arbitrária” é porque aceitastes o quadrado sobrepondo-se à espiral, meu Vítor. Não há nada de errado em admitir: acabou, não deu, este é o fim (que não esperei ou não programei). Somos educados para o sucesso e a felicidade. Em contrapartida somos completamente despreparados para o fracasso e a dor.
Aceitar o quadrado não é um ato de passividade e resignação cega, ao contrário, é possuir a chave que nos liberta da opressão de um registro negativo da memória: o arquivo fica lá mas podemos criar novos e outros.
A tensão que experimentamos é a vida se manifestando. Paz quando admitires que não podes tudo, não és herói, vidente; ânsia quando és impelido a labutar e construir tuas memórias.
És de fato responsável pela tua liberdade e só da tua, meu querido. E isso já é um grande feito quando conseguimos tal intento. Se sem podermos tocar a liberdade do outro já nos sentimos nesse direito, imagine se o passaporte fosse livre! Cada um tem a responsabilidade de agir ou não e nossas atitudes não são fatos isolados. Eis aí o elemento penoso, my dearest.
O restante que me apresentas em relação a Blomart, tendo a achar um terreno perigoso, areia movediça.
“Não podia fazer (isto ou aquilo) de outro modo” é novamente uma recorrência da culpa. Podias e podes faz isto e aquilo, num espectro determinado de opções. Isto é a espiral da vida, mas como vivemos em frações de realidade, o quadrado se apresenta exigindo uma resposta única. Isto para mim corresponde a uma resposta, sim e não a uma fuga. Até mesmo quando fugimos, Vítor, isto também é uma escolha (consciente ou não) para uma dada situação. E nem toda escolha é catastrófica ou indiferente, mas ela reverbera, sim, ao nosso redor. Então, quando dizes que entrar na espiral deveria significar apenas que as coisas são com são, nesse momento tens o ‘controle’ da tua liberdade.
Entendo sim onde queres chegar, meu amigo. Acho mesmo que chegaste a uma grande compreensão das tuas experiências. Eu só te peço que suavizes o peso da tua mão sobre ti, porque a balança só raramente encontra o equilíbrio. Após esse momento, volta o movimento pendular (ou espiralado) de ora pender para um lado, ora para o outro.
Há muito mais para falar, mas não dá para finalizar esse papo sem lembra-me do Kundera. Por que a leveza é insustentável, Vítor? Porque ela fica rarefeita, nos leva para longe, distante de nós e dos outros. A força peso nos traz para o centro, coloca nossos pés em contato com o mundo.
Nem tudo que tem peso é necessariamente ruim.

Preâmbulo (1)

Antes de responder ao confessionário, vou transcrever aqui fragmentos do Avalovara. Acho que além da riqueza da leitura e da oportunidade de apresentar o escritor pernambucano, ajudará na organização das idéias do que vem a seguir.

S A ESPIRAL E O QUADRADO 3

Desenhai, com o auxílio de um compasso, se é de vossa índole ser cuidadoso, ou à mão livre, se tendeis para as soluções mais fáceis, uma espiral. Atentai, com cuidado, para as extremidades da linha, a anterior e a exterior. Vereis, ao primeiro olhar, que a espiral não nos transmite uma impressão estática: parece-nos, antes, vir de longe, de sempre, tendendo para os centros, seu ponto de chegada, seu agora; ou ampliar-se, desenvolver-se em direção a espaços cada vez mais vastos, até que a nossa mente não mais a alcance. A verdade é que, se a seccionamos nas extremidades, arbitrariamente o fazemos; fazendo-o, guardamo-nos da loucura. Nem a eternidade bastaria para chegarmos ao término da espiral – ou sequer ao seu princípio. A espiral não tem começo nem fim.
A um olhar mais cândido, o que dissemos merece reparos. A espiral seria infinda em seu exterior; interiormente, porém, há os centros onde ela termina – ou se inicia. Tal pensamento demanda retificação. Somos nós que impomos limite, em ambas as extremidades, para a espiral. Idealmente, ela começa no Sempre e o Nunca é o seu termo. Com o que chegamos a uma conclusão ainda menos trivial que as anteriores, a saber: embora a vejamos traçada, no papel, em direções opostas, suas extremidades (se realmente existem) em algum ponto misterioso, inacessível à nossa compreensão empedrada, haverão de encontrar-se, exatamente como o círculo, representação bem menos equívoca e perturbadora. Como, então, fazer repousar a arquitetura de uma narrativa, objeto limitado e propenso ao concreto, sobre uma entidade ilimitada e que nossos sentidos, hostis ao abstrato, repudiam?


S A ESPIRAL E O QUADRADO 4

Sendo a espiral infinita, e limitada as criações humanas, o romance inspirado nessa figura geométrica aberta há que socorrer-se de outra, fechada – e evocadora, se possível, das janelas, das salas e das folhas de papel, espaços com limites preciosos, nos quais transita o mundo exterior ou dos quais o espreitamos. A escolha recai sobre o quadrado: ele será o recinto, o âmbito do romance, de que a espiral é força motriz.
Concebei, pois, uma espiral que vem de distâncias impossíveis, convergindo para um determinado lugar (ou para um momento determinado). Sobre ela, delimitando-a em parte, assentai um quadrado. Sua existência para além dessa área não será tomada em consideração: aí, somente aí, é que regerá com o seu vertiginoso giro a sucessão dos temas constantes do romance. Pois o quadrado, será divido em outros tantos, idealmente iguais entre si. E a passagem da espiral, sucessivamente, sobre cada um, determinará o retorno cíclico dos temas neles esparsos, do mesmo modo que a entrada da Terra nos signos zodiacais pode gerar, segundo alguns, mudanças na influência dos outros sobre as criaturas. Coincidirão, aduzamos, o centro do quadrado e os centros da espiral, ou seja, o ponto imaginário onde – supondo que seja traçada de fora para dentro – arbitrariamente a interrompemos. Tais os fundamentos da presente obra.
Outros pormenores, a seu tempo, serão acrescentados. Por ora, temos de sustar esta exposição, forçado pela rigidez do plano há mais de dois mil anos estabelecido. Vindo a nossa espiral do exterior, são cada vez menores os seus giros. Inversamente, por uma necessidade de simetria e de equilíbrio na concepção, ampliará sempre o construtor da obra, em progressão aritmética, o espaço concedido, cada vez, aos vários temas do livro, controlados no ritmo de seus reaparecimentos e na extensão dos textos a eles referentes. A caprichosa ampliação desses temas constitui uma espécie de réplica, às avessas, daquela espiral que se fecha. Serão eles, a seu modo, espirais que se abrem ou cones que se alargam. Exercerá assim o construtor uma vigilância constante sobre o seu romance, integrando-o num rigor só outorgado, via de regra, a algumas formas poéticas.

Na estante (5)

"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!"

Mário Quintana

explicação aos mais pequeninos

quarta-feira, novembro 22, 2006

hoje sou eu que vos peço paciência...

Noutro dia a Lu pediu paciência para postar um conto da Lygia Fagundes Telles. É normal que o tenha feito. Há uma espécie de limite de palavras para os textos publicados na blogosfera. Sabemos que se um texto exceder o tamanho de um A4 ninguém o vai ler, ou quase ninguém… há sempre uma ou duas pessoas que se dão ao trabalho por puro deleite, e por esses vale a pena. Hoje peço-vos eu a mesma paciência. O texto que se segue ficou-me eternamente gravado na memória desde a primeira vez que o li, já lá vão uns anos. Ontem, de conversa com a Luciana, enquanto discutíamos certos episódios recentes das nossas vidas, lembrei-me muito desta história. Antes de me deitar fui à estante, procurei o livro. Abri-o neste ‘Duas Pessoas’ e reli-o duas vezes. Admirei-me com o que tinha sublinhado anos atrás. Fiquei impressionado de o ter ainda tão presente na minha memória.
Tenho vontade de publicar este texto do Herberto Helder desde os princípios do Povo é Bom Tipo. A Ana pediu-me imensas vezes para que o fizesse, mas não sei porque razão, nunca acedi ao pedido. Talvez a conversa de ontem tivesse que acontecer para que este texto fosse relido e relembrado.

DUAS PESSOAS
Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frémitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? - pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atónitos - são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção («o teu cabelo»), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo. É melhor parar com tais explicações. Aluguei esta casa quando vim do estrangeiro. Sentia-me transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto de gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências ou estabelecer, no equívoco plano das literaturas, as fraternidades internacionais. Regressei farto, farto, um milhão de vezes farto. Aluguei a casa, comprei livros e discos, uma cama, pouco mais. Gosto dos lugares ascéticos. Sou uma pessoa esquisita. Deito-me e ponho-me a fumar e a ouvir discos. Ouço Bach. Gostaria de ter um cravo e tocar. Fumo muito. Faz-me mal. Abro um livro e leio duas ou três páginas. Às vezes trago uma prostituta para casa e tento que ela beba comigo meia garrafa de brandy. Mas não sei conversar, e ela sente-se constrangida, lesada. Então digo qualquer coisa: o teu cabelo, por exemplo. E a rapariga não compreende. Há ocasiões em que as prostitutas imaginam tratar-se de um cumprimento, e sorriem. Sorriso vacilante, que se não sabe se crescerá, apossando-se do rosto todo, da pessoa toda, ou se então será reabsorvido em si mesmo. Estaria porventura no meu poder fazê-lo aumentar até à emoção, à gratidão. Mas fico-me por aí. Acendo mais um cigarro. Ela tenta: o meu cabelo? Não percebe, ou espera que eu faça surgir, dentre a massa de humilhação e marginalidade da sua vida, essa trémula, veloz alegria. Eu que sou um homem, que possuo a ambígua faculdade da doçura viril, e posso exibir a comoção perante a beleza, mesmo a fortuita e frágil beleza humana. Mas estaco. Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. Digo: queres um cigarro? Ela abana negativamente a cabeça. E o tal cabelo mexe-se de cá para lá sob a luz, escorrega por cima dos ombros. Ela passa as mãos devagar, as mãos espalmadas, sobre o tal cabelo que brilha sombriamente na luz. Levanta-se, nua, com o tal cabelo muito caído pelas costas, pelos ombros, e o sapato - enfim encontrado - na ponta dos dedos. O sapato destrói a mão direita, ah! destrói-a irrecuperavelmente, e só a mão esquerda permanece com alguma dignidade, tombada junto à perna, inútil, despertando-me uma qualquer ideia, excessivamente brumosa, que eu agora procuro tornar mais real, dizendo: a tua mão. Mas ela confunde e ergue a mão direita com o sapato um pouco sujo, a verem-se-lhe as palmilhas escurecidas. Poderia eu amar esse sapato, quero dizer: essa mão caminhando ao encontro de uma possível emoção, de um estremecimento subtil que abrisse por fim a veemente máquina interior e nos fizesse a nós dois, a jovem prostituta humilhada e o homem gasto, a benignidade de breve mas verdadeiramente humana conciliação? Fico deitado tardes inteiras, fumando interminavelmente. Bach. Cinco páginas do Hamlet, 2.0 acto, 2.ª cena. A ficção da loucura por parte de Hamlet é dúbia. Polónio por seu lado submete-se às regras do perigosíssimo jogo. Nesta atmosfera nem a ficção da loucura é gratuita, nem a lucidez casual. Mas eis toda a verdade no espaço rápido e fechado. As leis do fingimento são secretas, intraduzíveis. Perfeito. Nelas reside o segredo total. Quarto do castelo em Elsenor. A ficção (ou fingimento) é o único caminho para a verdade? - Que ledes, meu senhor? - Palavras! Palavras! Palavras! - Mas de que se trata, meu senhor? - Entre quem? E Bach ao fundo. Concerto Brandeburguês nº 5 pela Orquestra de Estugarda. Transferi tudo. Eis como funcionam estas minhas admiráveis virtudes humanas. E a pobre rapariga levanta-se, depois de recusar o cigarro, e aproxima-se com o seu desgraçado sorriso, vulnerável assim entre a última humilhação e uma espécie de momentânea ressurreição do valor da vida e da pessoa. Tudo isso à minha frente, entre os belos sons de cravo de Bach e as palavras de uma trágica e tão significativa comicidade de Shakespeare. Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras - mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e - fácil! - retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios, e confundo-a depressa com a minha, passando a língua por cima. Pois eu tenho muita saliva, muita abjecção onde afundar a abjecção dos outros. Estou deitado e, pela cidade adiante, caminha a prostitutazinha. Embrulhada no seu casaco, atravessa as ruas, pelas sombras, pelas luzes, debaixo de árvores e prédios enormes. Vem, vem. Bate¬-me à porta. Eu poderia gritar, fazendo calar o disco e atirando para o lado o meu livro: chega alguém! Ela entra, etc., etc. Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a subtileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espectáculo do nascimento e acção de um corpo. Passo-lhe a ponta dos dedos pelo rosto. Não são as rugas ou a gordura de um rosto, qualquer falha, o que me repugna. Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão. Será isso? Ou serei eu uma criatura estéril, sem dons, sem expansão? Que oportunidades! Ela está agachada, procurando esse perdido sapato providencial; curvada, curvada como um ser indefeso, oferecido a maravilhosas capacidades minhas. Eu aproximar-me-ia e a minha mão correria ao longo do seu cabelo, tocaria no ombro, tomaria a sua mão. E ela elevava então para mim os grandes olhos onde o terror se diluía, os olhos que recebiam e devolviam uma luz maior. Eu poderia dizer: o teu cabelo. Ou: a tua mão. Ou ainda: tu. Antes disso, que posso saber, embora aconteça aquilo a que tão imprópria e ingloriamente se chama intimidade? Uma casa ascética depois de um fácil tumulto móvel, Shakespeare e Bach após lugares e tempos improfícuos. Tudo uma visão desbaratada pelo carácter básico da renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. A mulher diz: o meu cabelo? Eu acendo um cigarro e pergunto: queres um cigarro? E enquanto ela se levanta para alguma coisa porventura definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover.

Este senhor taciturno que me recebe com uma fria gentileza parece ter viajado muito. Agora vive na nossa cidade - que não sei se é também a dele - numa casa quase sem móveis que me faz sentir gelada, mais gelada ainda depois de atravessar as ruas escuras e nevoentas. Ele paga-me bem, este senhor, e por isso venho muitas vezes. Está sempre só, bebendo e ouvindo discos intermináveis. A casa está cheia de fumo. É horrível. Mas pergunto: será apenas por me pagar bem que volto sempre? Bato de leve à porta, e ouço o disco parar bruscamente ou descer para um sussurro. Os passos deslocam-se pelo corredor, a porta abre-se muito devagar. E cá está a cara dele - feia, triste e os olhos fixos. Sorri incrivelmente - assim como quem vai pedir desculpa, e depois fica de súbito muito sério. Estou farta dos homens, quase nunca tenho prazer em ir para a cama com eles. Porque é tão degradante a insolência dos jovens como a devassidão dos velhos. Sinto-me muito só junto deles, acho-os absurdos com o seu sofrimento mal oculto atrás de uma simulada virilidade. Há neles uma solidão igual à minha, tão premente como ela, mas a que a fatuidade tira qualquer nobreza. Os homens imaginam, suponho, que me sinto humilhada na minha profissão e que existem em mim, sempre prontos, um apelo, uma súplica. Mas não. Estou só, apenas isso, e a muita gente já tenho eu ouvido dizer o mesmo. Às vezes ele toca-me no rosto com muita atenção e vejo que há por detrás dos seus gestos, do silêncio, um ardor exasperado mas impaciente ou envergonhado de si. É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável e repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo talvez de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os seus olhos. Mas arrependo-me. E ele olha para mim aterrorizado. Depois fecha-se. Oferece-me de beber e recuso quase sempre. E então murmura palavras indefinidas, embaraçadas: a tua mão, a outra, a mão livre. Sim, vai pedir-me que fique, e o afague, sei lá, talvez que morra com ele, tomando os dois um tubo de comprimidos. É homem para isso. Cheira a desespero a quilómetros de distância. Mas volta-se para a janela enquanto me visto, e então só penso em desaparecer, abandonar esta criatura atacada pela lepra, este homem que porventura eu salvaria, se houvesse em mim mais força e determinação ou mais doçura ou uma piedade maior. Porque é um ser minado, destruído. Ainda vivo apenas para pedir socorro. Vou junto dele, toco-lhe no braço, beijo-o na boca. Um momento apodera-se de mim a vertigem da misericórdia: salvá-lo, salvá-lo! Mas eu própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade nocturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores.
Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma sumptuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se - o espírito do último homem. Queres um cigarro? - pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho bâton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica - eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?
Os Passos em Volta (Assírio & Alvim), Herberto Helder

permanecer calado...

'Low trees, moss and mist in the gully beneath the eastern volcanic edge. El Hierro. January 2001' & 'The Slope of Montana Predraje, El Hierro, May 2001', Craigie Horsfield

terça-feira, novembro 21, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (19)

sobre a morte:

sair de mim lentamente e vê-los de mãos dadas, juntos,
deitados junto ao rio que nos fez celebrar o amor.
não existirá saudade. nem dor. seremos um, para sempre.
*

Não poderia deixar de lembrar aqui que O POVO É BOM TIPO fez 2 anos no último Sábado. Apesar de neste momento não fazer parte do grupo maravilhoso de pessoas que vai construindo aquele espaço, todos eles sabem o quanto os estimo e o orgulho que tenho de serem meus amigos. Parabéns!

sublinhado (49)

Não posso apagar-me. Não posso retirar-me para dentro de mim. Existo, fora de mim e em toda a parte do mundo; não há um palmo do meu caminho que não desemboque no caminho de outrem; não há nenhuma maneira de ser que me possa impedir de extravasar de mim a cada instante. Esta vida que teço com a minha própria substância oferece aos outros homens mil facetas desconhecidas, atravessa impetuosamente o seu destino. (pág. 122)
O Sangue dos Outros (Público), Simone de Beauvoir

segunda-feira, novembro 20, 2006

Porque a vida também é uma invenção

Ele senta-se no banco da frente do carro, ao meu lado. Passa o cinto de segurança pelo corpo, abre a janela, mostra-me o céu iluminado pelos astros e como homem feito, pergunta-me se quero ouvir música.
Digo que sim, balançando a cabeça em afirmativa.
Escolhe um CD e coloca no aparelho.
Não consigo evitar o riso, ainda que contido, ao observar sua postura tão adulta.
A música começa e com ela ouço sua voz cantarolando a canção. Nenhuma surpresa se o idioma fosse o português, mas era uma música italiana, romântica, sentida, apaixonada. Ele interpreta-a de olhos fechados.
Faço um comentário cômico e rimos juntos. Seu sorriso é arrebatador como o luar.
Não há lugar para tristezas quando estou sob a sombra e o calor de suas asas.

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (18)

sobre o desejo:

que o céu azul seja um prenúncio da morte dos limites
e o desejo uma sala dourada vestida de espelhos.
que o corpo estoure e o sangue seja o fogo de artifício.
*

sábado, novembro 18, 2006

imagens que se colam ao peito (16)

Portrait de Mateu Fernández de Soto, 1901, Pablo Picasso
A música 'If i were blue' da Patricia Barber lançou o mote para esta escolha. A certa altura ela diz qualquer coisa como 'a pale Picasso blue' e o quadro que me assolou repentinamente à memória foi este. Poderia ter sido o 'Velho Guitarrista', 'A Tragédia', quadros da fase azul de Picasso bem mais presentes no nosso imaginário, mas não, a minha memória (e o assunto encontra-se aqui com o último 'Confessionário' e com o conto da Lygia Fagundes Telles que a Lu publicou) foi exactamente buscar o retrato de Mateu de Soto.
Noutro dia, dizia num dos tercetos que me identificava com o homem mergulhado na névoa do canal presente na fotografia da Nan Goldin... com este quadro passa-se qualquer coisa de semelhante, apesar de eu não ser um homem tão bonito como o do retrato.

Vou abusar da paciência de vocês...

Meu Vítor, antes de responder-te o confessionário, vou abusar do espaço e postar um continho da Lygia Fagundes Telles.
Acho que ele dialoga com tudo isso que me escreveste. É o primeiro chute, só para esquentar a conversa sobre a memória, esse intrumental refinado que inventamos...

Que se chama solidão

Lygia Fagundes Telles

Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano; tocando suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas.
— Escutei que a gente vai se mudar outra vez, vai mesmo? perguntou minha pajem Maricota. Estávamos no quintal chupando os gomos de cana que ela ia descascando. Não respondi e ela fez outra pergunta: Sua tia vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, quem é essa tal de Inês?
Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra, Maricota resmungou cuspinhando o bagaço. Fiquei olhando meu pé amarrado com uma tira de pano, tinha sempre um pé machucado (corte, espinho) onde ela pingava tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrava aquele pano. No outro pé, a sandália pesada de lama. Essa pajem era uma órfã que minha mãe recolhera, tive sempre uma pajem que me dava banho, me penteava (papelotes nas festas) e me contava histórias até que chegasse o tempo da escola. Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de cada trancinha. Não sei da Inês, mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos eram de papel crepom.— Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e fui saindo, Agora já sei.
— Sábado tem procissão, eu lembrei. Vai me fazer papelote?
— Vamos ver, ela disse enquanto juntava os bagaços da cana no avental. Foi até a lata de lixo. E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! Eram as pazes. Levantei-me e saí correndo atrás dela, sabia que ia perder, mas ainda assim apostava.Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha, chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo? É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, Se você contar você me paga!
Depois do jantar era a hora das histórias fantásticas. Na escada que dava para a horta, instalavam-se as crianças com a cachorrada, eram tantos os cachorros que a gente não sabia que nome dar ao filhote da última ninhada da Keite, acabou sendo chamado de Hominho, era um macho. Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou todos. Cachorro também tem crise, avisou tia Laura olhando pensativa para a Keite que dava mordidas no filhote que vinha procurar suas tetas.
As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado. Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! — gemia a Maricota com a voz fanhosa das caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão até formar o esqueleto. Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o respeito.
Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que gente, ela disse ao meu pai enquanto ia arrancando os carrapichos do pêlo do Volpi que já chegava gemendo, ele sofria com antecedência a dor da retirada de carrapichos e bernes.
A pajem seguinte também era órfã, mas branca. Falava pouco e também não sabia ler mas ouvi minha mãe prometer (como prometeu à outra), Eu vou te ensinar. Chamava-se Leocádia. Quando minha mãe tocava piano ela parava de fazer o que estava fazendo e vinha escutar: Madrinha, por favor, toca "O sonho de Lili"!
Leocádia não sabia contar histórias, mas sabia cantar, aprendi com ela a cantiga de roda que cantarolava enquanto lavava roupa:

Nesta rua nesta rua tem um bosque
Que se chama que se chama Solidão.
Dentro dele dentro dele mora um Anjo
Que roubou que roubou meu coração.

— Menina afinada, tem voz de soprano, disse tia Laura batendo com o leque na mesa, estava sempre se abanando com o leque. Soprano, soprano! fiquei repetindo e correndo em redor de Leocádia que ria aquele riso de dentes fortes e perguntava o que era soprano e eu também não sabia mas gostava das palavras desconhecidas, Soprano, soprano!
— Vem brincar, Leocádia! eu chamava e ela ria e dava um adeusinho, Depois eu vou! Fiquei sondando, e o namorado? Da Maricota eu descobri tudo, mas dessa não descobri nada.
Morávamos agora em Apiaí, depois da mudança tão comprida, com o piano no gemente carro-de-boi. Isso sem falar nos vasos de plantas e na cachorrada que veio no caminhão com a Leocádia e mais a Custódia, uma cozinheira meio velha que mascava fumo e sabia fazer o peru de Natal. Meu pai, a tia e minha mãe comigo no colo, todos amontoados no tal fordeco meio escangalhado que meu pai ganhou numa rifa. Com o carcereiro guiando, era o único que sabia guiar.
Apiaí e a escola das freirinhas. Quando nessa tarde voltei da escola, encontrei todo mundo de olho arregalado e falando baixo. No quintal, os cachorros se engalfinhando. Por que a Leocádia não foi me buscar? E cadê minha mãe? Tia Laura baixou a cabeça, cruzou o xale no peito, fechou o leque e foi saindo meio de lado, andava desse jeito quando aconteciam coisas. Fechou-se no quarto. Custódia soprou o braseiro do fogão e avisou que ia estourar pipoca. A Leocádia fugiu?, perguntei. Ela começou a debulhar o milho, Isso não é conversa de criança.
Então entrou minha mãe. Fez um sinal para a Custódia, sinal que eu conhecia (depois a gente se fala), acariciou minha cabeça e foi para o quarto de tia Laura. Disfarcei com o prato de pipoca na mão, banzei um pouco e fui escutar detrás da porta da tia. Contei que meu marido estava viajando (era a voz da minha mãe) e que a gente não sabe lidar com isso. Uma tragédia, Laura, uma tragédia! Então o médico disse (minha mãe parou para se assoar) que ela pode ficar na enfermaria até o fim, vai morrer, Laura! Enfiou a agulha de tricô lá no fundo, meu Deus!... - A voz sumiu e logo voltou mais forte: Grávida de quatro meses e eu sem desconfiar de nada, era gordinha e agora engordou mais, foi o que pensei. Hoje ela me reconheceu e fez aquela carinha alegre, Ô! Madrinha. Era tão inteligente, queria tanto aprender a ler, queria até aprender música. Tia Laura demorou para falar: Agora é tarde!, gemeu. Mas não tocou na Inês.Em dezembro tinha quermesse. Minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, eu iria mais tarde com a Custódia que ficou preparando o peru. Quando passei pelo jasmineiro no quintal (anoitecia) vi o vulto esbranquiçado por entre os galhos. Parei. A cara úmida de Leocádia abriu-se num sorriso.
— A quermesse, Leocádia! Vamos?, eu convidei e ela recuou um pouco.
— Não posso ir, eu estou morta.
Keite apareceu de repente e começou com aquele latido desesperado. Antes que viessem os outros, tomei-a no colo, Fica quieta, quieta! ordenei baixinho na sua orelha. E o latido virou um gemido de sofrimento. Quieta! Aquela é a Leocádia, você não se lembra da Leocádia? Comecei a tremer. É a Leocádia! repeti e apertei a Keite contra o peito e ela também tremia. Soltei-a: Pode ir, mas não chame os outros, escutou isso?
Keite saiu correndo e desapareceu no fundo do quintal. Quando olhei na direção do jasmineiro não vi mais nada, só a folhagem com as florinhas brancas no feitio de estrelas.
Entrei na cozinha. Que cara é essa? estranhou a Custódia. Encolhi os ombros e ajudei a embrulhar o peru no papel-manteiga. Vamos depressa que a gente está atrasada, ela resmungou me pegando pelo braço. Parou um pouco para me examinar melhor.
— Mas o que aconteceu, você está chorando? Enxuguei a cara na barra da saia.— Me deu uma pontada no dente.
— Foi naquele que o dentista chumbou? Quer a Cera do Doutor Lustosa?— Deu só uma pontada, já parou de doer.
— Pegue o meu lenço, ela disse abrindo a sacola. Ofereceu-me o lenço de algodão branco, bem dobrado. Na calçada deserta ela ainda parou um pouco para prender a fivela no cabelo. O peru era meio velho, mas acho que ficou bom.
Enxuguei os olhos com raiva e cruzei os braços contra o peito, outra vez o tremor? Fomos andando lado a lado e em silêncio.

Texto extraído do livro "Invenção e Memória", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 2000, pág. 09.

O diário de G.H (8)

A bull in a china room

Eu não queria machucá-la. Não fora essa a minha intenção. Tocar sua chaga aberta fora um gesto involuntário. Quisera estancar o sangue e repor, se possível, o pedaço que lhe faltava.
Foi aí que me lembrei daquela casquinha no meu peito e dos olhos... ah, aqueles olhos! Lembrei-me também do empurrão que ela me dera. Ela instigara-me, comunicara-me de alguma forma sobre a ferida que se abriria nela, em nós. Tentou avisar-me e não compreendi o que seus olhos viram com antecedência.
Depois disso, ela se retraíra no meu interior, mas eu podia sentir perfeitamente a sua respiração.
Eu continuava tropeçando nas minhas muitas pernas, na ânsia louca de reencontrá-la, mas ela parecia não querer novo contato, como se temesse um descuido, um susto, uma dor. Contudo, eu continuava esperando por ela, pelo diálogo interrompido. Esperaria o tempo necessário.
Chegamos a um ponto em que retroceder não é possível.
Aquela eterna angústia, aquele desconforto de não me saber, de não conseguir identificar as tantas partes do meu todo, tudo isso clamava por definições e essa era a minha chance. Não viveria mais tropeçando em mim, não evitaria mais os movimentos por temer arranhar ou quebrar alguma estrutura interna. Estava exausta de pisar mansinho para não afugentar meus ‘convidados’. Convidados qual o quê! Não chamei ninguém para dividir meus cômodos. Eles simplesmente vieram com uma bagagem enorme. Tinham muitas perguntas, falavam simultaneamente, suas vozes uniam-se em coro à minha própria voz. Eu sei, eu sei que vieram para ficar. Dadas tais circunstâncias, compartilharíamos nossas muitas metades.
Adormeci, mas de madrugada acordei sentindo cócegas nas minhas coxas, no ventre, como se milhares de formigas caminhassem sobre mim.
Acendi a luz. Ela deixara um recado.

Confessionário (36)

Minha querida, não sei como e por onde começar. Tenho tentado organizar as ideias mas fica-me a sensação de desarrumação completa na minha cabeça. Cada vez mais tenho dificuldade em perceber conceitos que imprimam certezas e verdades absolutas, duvido se existe ou não uma estrutura coerente capaz de orientar os episódios da nossa vida… a cada acontecimento sobreposto fica-me uma sensação de revolução: novas verdades anulam as anteriores, deformam-nas, adaptam-nas e fazem crescer outros pilares que sabemos que ruirão logo, logo.
Falaste-me durante muito tempo sobre a espiral do Osman Lins e do fascínio que ela te provocava, da circularidade dos acontecimentos caminhando em direcção a essa unidade essencial, o Infinito. Vários autores falam-nos da mesma Unidade: assim do nada lembro-me de dois, Fernando Pessoa e Herman Hesse. (o tudo que é o nada; o ciclo confirmado e a unidade de Sidharta). Eu também acredito que tudo isto é uma engrenagem complexa e una, onde o movimento de uma roldana mínima e aparentemente sem qualquer importância, é suficiente para alterar o ritmo de funcionamento da máquina. O que me espanta em tudo isto é a espécie de viciosidade que a máquina ganhou. Parece não existir forma de equilibrar o mundo, já não peço para que se reverta o processo, apenas um equilíbrio, um ténue e justo equilíbrio. Os acontecimentos pesam demasiado para um dos lados, infelizmente o que menos me agrada. E mesmo as nossas míseras vidinhas, que, como nos diz Beauvoir, são ou deviam ser da nossa inteira responsabilidade, pendem igualmente para o mesmo lado.
Tenho feito o esforço de olhar para o passado, encontrar-lhe uma lógica, uma explicação. Obrigo-me constantemente a encontrar respostas, a chamar os bois pelos nomes, o procurar uma relação entre as causas e as consequências dos meus actos, mas tudo me parece tão aleatório e sem relação, tudo me parece tão previsível como imprevisível… não há um raciocínio coerente nas nossas vidas… tudo existiu e deixou de existir, simplesmente isso, sem razão para acontecer e sem razão para deixar de acontecer e a Verdade não é mais do que uma companhia dessa existência, que, deixando de existir, a torna ausente também. Perante isto, a memória não é mais do que o impulso permanente de guardar aquilo que existiu e deixou de existir, a memória é ao mesmo tempo a recusa da morte e o mausoléu onde se instala o cadáver, uma fixação humana para responder a tudo, como se tudo se apresentasse como uma pergunta. Voltando ao início do raciocínio, é exactamente na construção da memória que não encontro o ritmo da espiral. A lógica que a minha mente parece ter dado à maioria dos acontecimentos não aceita nem se compatibiliza com outros, e é nesse confronto que me perco, assim como dele derivam todas as minhas ansiedades e perturbações. Quando não questiono, e aceito a origem e a morte de determinado acontecimento, tivesse sido ele bom ou mau, feliz ou miserável, quando afirmo que tudo existiu e deixou de existir sem qualquer tipo de causalidade e de forma completamente arbitrária, tudo me parece mais dentro dessa espiral e mais de acordo com a lógica de um todo universal.
É entre a ansiedade que a construção da memória me provoca e a paz que pareço conseguir quando me esforço por aceitar tudo como se houvesse uma espécie de inevitabilidade e irracionalidade naquilo que existiu e/ou deixou de existir, que me vou consumindo.
Não imaginas como me sinto próximo do personagem de Beauvoir, Jean Blomart: sou o principal responsável pela minha liberdade, mas sou-o apenas de mim próprio. Não posso ‘tocar na liberdade dos outros, nem prevê-la, nem exigi-la. É exactamente isso que me é tão penoso; o que faz o valor de um homem não existe senão para si próprio, não para mim: eu não chego senão à aparência dele; e não sou para ele também senão uma aparência, um dado absurdo; um dado que nem mesmo escolhi ser…’. Ao construirmos a nossa memória erguemos um mundo virtual dentro de nós, que pode ser tão ou mais rico do que o mundo real (o que verdadeiramente existiu) e é a partir dessa construção que executamos as nossas opções. Como Blomart, tomamos as rédeas e a responsabilidade dos nossos actos e dizemos “não podia fazer [isto ou aquilo] de outro modo” e pensamos com isso dar resposta ao que somos realmente, convictos de que não fugimos de nós próprios. Grande parte das opções que escolhemos activamente e que julgávamos ser um exercício de auto-honestidade, revelam-se catastróficas ou indiferentes àqueles que nos rodeiam, ‘aparentes’, ‘absurdas’ para utilizar os termos de Beauvoir. Há, mesmo naquilo que pensamos controlar e que depende exclusivamente de uma opção nossa, um grau de imprevisibilidade difícil de entender. É dessa imprevisibilidade que nasce a culpa, o ‘devia ter feito’, o ‘devia ter dito’. Entrar na espiral deveria significar: o que aconteceu foi o que aconteceu, e não: o que poderia e deveria ter acontecido… percebes onde quero chegar, minha amiga? É pela memória que nasce o conflito, ela é a filha do casamento entre o real e a consciência e como não temos a capacidade nem o poder para eliminá-la, seremos sempre eternos aspirantes ao ritmo contínuo da espiral. A nossa vida terá sempre uma carga absurda, insólita, irracional, imprevisível, e diferentes estruturas e diferentes verdades erguer-se-ão com a mesma rapidez que poderão ruir. Talvez a desordem na minha cabeça seja um indicador positivo do absurdo de existir.

sexta-feira, novembro 17, 2006

*

quarta-feira, novembro 15, 2006

Teorias amorosas (9)

- Alô.
- Susie?
- Quem é?
- Ulisses.
Após seis anos do mais absoluto silêncio, Ulisses resolveu aparecer. Assim simplesmente como se seis anos fossem seis dias.
- Susie?
- Oi.
- Estou na sua cidade.
- Ah, está?
- Sabia que me separei?
- Não, não sabia. Na verdade, eu nem sabia que você havia casado.
- Estou com saudades. Quero muito te ver, sair, conversar, tomar um vinho...
- Me comer... Tudo exatamente como antes, como se a última vez tivesse sido ontem, né?
Cinicamente, ele responde:
- Ai! Você não mudou nada. Continua cortante.
- Também você não mudou nada. Continua um cretino.

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (17)

sobre a liberdade:

queria ser capaz de fazer como a aranha e construir uma teia
suficientemente forte para enlaçar e imobilizar de vez o meu corpo.
deixaria uma abertura ao nível da boca. jamais me impediria de gritar.
*

terça-feira, novembro 14, 2006

Photobucket - Video and Image Hosting
Vultos. Miguel Lopes.

FOTOGRAFIA

O mundo era p&b:
Filosofia existencial,
Melancolia sentimental,
Movimento intelectual.

O mundo tornou-se tecnicolor:
Solidão digital,
Mercados de capital,
Massificação cultural.

Além da cor, nada mudou.
O clique da máquina
Fotografou as imagens,
Mas só revelou as sombras.

(Luciana Melo 10/10/01)

Radiola (4)

As aparências enganam
(Tunai e Sérgio Natureza)

As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões.
Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague.
Se a combustão os persegue, as labaredas e as brasas são
O alimento, o veneno e o pão, o vinho seco, a recordação.

As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões.
Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele.
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada pra se fazer senão chorar sob o cobertor

As aparências enganam aos que gelam e aos que inflamam
Porque o fogo e o gelo se irmanam no outono das paixões.
Os corações cortam lenha e, depois, se preparam pra outro inverno.
Mas o verão que os unira, ainda, vive e transpira ali
Nos corpos juntos na lareira, na reticente primavera,
No insistente perfume de alguma coisa chamada amor.

sublinhado (48)

- O que me agradou no seu discurso, é que você tinha o ar de pensar que as pessoas existem uma a uma, e não apenas nas grandes massas. (pág. 73)
O Sangue dos Outros (Público), Simone de Beauvoir

segunda-feira, novembro 13, 2006

Patricia Barber

Há algum tempo que não vivia um verdadeiro concerto de Jazz, daqueles que nos remetem para o conforto de casa ou das casas daqueles que gostamos muito; íntimos, suaves, tranquilos, que durante uma hora e pouco nos fazem esquecer que estamos dentro de uma sala de espectáculos rodeados de gente que não conhecemos de lado nenhum. Patricia Barber convidou-me chez elle. Entrou no palco, descalçou as botas, deu um gole no copo de uísque pousado no chão (repetiu a coisa uma ou duas vezes mais, mas a falta ou o excesso de gelo deve ter tornado o conteúdo imbebível) e soltou a sua voz macia, quente, segura. Fez questão de deixar brilhar os músicos que a acompanhavam, todos eles absolutamente fantásticos. Entrou em jogos cúmplices com eles, fez-nos testemunhas dos diálogos entre o piano e a guitarra, dos murmúrios soletrados pela voz e pelo contrabaixo… fotografou-os (literalmente) como quem fotografa a família em reuniões íntimas e achou que também nós, o público, éramos dignos de fazer parte do álbum. Agradeço-lhe ‘Pygmalion’ do recente ‘Mythologies’, que me deixou de pelos eriçados durante muito tempo após a música ter terminado e a mais bela versão de ‘Autumn Leaves’ que ouvi até hoje.

If I were blue (Verse), Patricia Barber

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (16)

sobre o deslumbramento:

um amigo disse-me: é bom perceber que continuas a olhar
o mundo deslumbrado, penso que perdi essa capacidade.
eu respondi-lhe: feliz ou infelizmente, não tenho outra alternativa.
*

sábado, novembro 11, 2006

Poetrix (5)

Photobucket - Video and Image Hosting
Da série Gênesis. Sebastião Salgado.
Há tanta fome,
Pão nenhum.
Por que tanta boca, meu Deus?

(Luciana Melo 18/06/01)

quinta-feira, novembro 09, 2006

quando alguem escreve o que pensamos:

O Rubens da Cunha escreveu uma pequena crónica para o Legendas do Carlos sobre Amizades e Internet (ou blogosfera mais particularmente). Este blogue não é mais do que um testemunho daquilo que o Rubens descreve de forma tão clara. Para ler aqui.

ora cá vão três textos que não me arrependo de ter escrito:

Um pouco no seguimento de um comentário que a Sandra fez há dias num post, onde eu dizia divertir-me com as coisas que escrevo olhando-as a uma certa distância, cá vão três textos, escritos entre Maio e Junho deste ano, que eu não me arrependo de ter escrito: este, este e mais este.

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (15)

sobre o cansaço:

quando, no decurso natural dos dias, não existe uma hora morta,
quando o dia não permite parar e a noite é um poço de sono profundo,
quando a cabeça pousa no travesseiro sem pensar, sou feliz. vivo.
*

obrigado Carlos...

Lu, olha só a coisa bonita que o Carlos nos dedicou lá no Legendas (e eu distraído nesta minha semana louca de trabalho só reparei agora):

os bichos as folhas as pedras
tudo me saciava
nas cortinas daquele olhar
a terra consumada
na cicatriz redonda
de uma sílaba de sangue
e silêncio

[Carlos Sousa Almeida]

sublinhado (47)

A política é a arte de agir de fora sobre os homens; no dia em que a humanidade inteira se organizar a partir de dentro de si própria, já não haverá necessidade de política. (pág. 65)
O Sangue dos Outros (Público), Simone de Beauvoir

segunda-feira, novembro 06, 2006

Confessionário (35)

Meu querido, não se culpe pela demora. Eu sei que tua resposta sempre chega e quando chega é sempre em boa hora. Entendo perfeitamente quando dizes que escrever-me exige-te muito. Não é diferente do que sinto. Não consigo simplesmente digitar a resposta, porque responder-te, além de fomentar o diálogo rico que temos, é também dar-me algumas respostas.
Queria dizer-te uma coisa, querido. O fato de me compreenderes não te obriga a concordares comigo. Isto é amizade, meu Vítor, saber ouvir e saber dizer. Não queremos nos convencer de nada, queremos o crescimento mútuo e isso não falta em nossa correspondência. Por que digo isto? Porque ficaria imensamente frustrada se ao invés de encontrar ressonância em ti, eu encontrasse a adesão simples e pura. Se sinto-me, neste momento muito particular, na escuridão, não significa que queira que venhas ao meu encontro de modo que nos transformemos em noite. É também responsabilidade tua não ser condescendente, querido. Os amigos têm o direito tanto de nos afagar como o de puxar nossas orelhas. Então, está tudo bem. Não corro o risco de “odiar o que vais me dizer”.
Quando te escrevi aquela nota de rodapé, eu realmente queria comunicar-te um momento de felicidade genuína que senti. Não sinto pesar em substituir o azul celeste pelo rubro-negro. E melhor, não sinto culpa.
Eu demorei tanto, meu Vítor, para entender que as cores fortes, os tons agressivos também fazem parte de mim. A grande descoberta não é que o azul celeste me desagrada. Gritei eureka ao constatar que o vermelho e o negro também são partes de mim. E isso eu não me permitia, querido. Foi o que quis dizer com “cabulei as aulas sobre limites”.
As pessoas que me conhecem bem – tu és certamente uma delas e nisto não há qualquer presunção – sabem como sou severa demais comigo e extremamente generosa com os outros. Quantas vezes eu não sorri azul-celeste, com lágrimas nos olhos, ao sentir o peso da mão de alguém sobre mim quando na verdade o que eu mais desejava era poder revidar vermelho-sangue ou, pelo menos, xingar negro-profundo alguns bons impropérios.
Eu nunca fui boa em respeitar os meus limites, em contrapartida, respeito demais os limites alheios.
Não te preocupes, querido, não vou mais vestir máscara nenhuma (vou tentar ao menos). Eu só quero me conceder a liberdade de ser tudo e todas em mim. Há espaço para muitas cores. Lembras de uma micro-narrativa minha que dizia mais ou menos assim: pensei que amar fosse como a loucura amarela de Van Gogh...? Provavelmente, seja, mas se ela também for azul Matisse não invalidará o amor, entendes?
Como assim, não és ninguém? Para mim, és alguém de importância ímpar.
Eu sinto-me muito livre para adaptar o mito dos seres esféricos de Platão segundo a minha própria conveniência. Se com isso Platão quis explicar o amor Eros, eu amplio seu sentido. Hahahaha
Vítor, fomos fulminados por um raio que nos separou. És, sem sombra de dúvidas, minha metade que vagava pelo mundo até que um belo dia nos esbarramos. E estou pouco ligando para o julgamento das pessoas; se acreditam ou não na veracidade dessa relação de distâncias, de mares; se pensam que enlouquecemos. De fato, sou louca. Só mesmo uma pessoa insana se atormentaria tantos anos com os tipos de questionamentos que me imputei.
Canta a Rita Lee: mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz.
Em outra canção, a Adriana Calcanhotto diz: eu não gosto do bom gosto/ eu não gosto de bom senso/ eu não gosto dos bons modos/ não gosto. Eu agüento até os estetas/ eu não julgo competência/ eu não ligo pra etiqueta/ eu aplaudo rebeldias/ eu respeito tiranias/ eu compreendo piedades/ eu não condeno mentiras/ eu não condeno vaidades...
Então é isso, façam o quiserem, mas eu quero o mesmo direito.
Quando dizes: “tu não és vilã da tua história”, eu replico: sim, não sou vilã, mas sou responsável, meu Vítor. E neste momento não há auto-flagelação, há, sim, um reconhecimento dos limites, dos meus limites. Não quero ser só uma sobrevivente, querido. Quero ser vitoriosa! E nisso o ódio tem sido mesmo esse detergente do qual falaste, muito eficaz. Estar tão intimamente magoada, tão visceralmente violentada tem algo de bom: eu ainda sou capaz de me indignar com as condutas retorcidas, ou seja, não estou acomodada. Ainda não acho natural aceitar covardias, traições, fraquezas. Se fui tão profundamente atingida é porque eu ainda acredito, eu ainda tenho fé.
E aí, a foto da Nan Goldin vem esbravejar aos meus ouvidos tudo isso que estou a te falar.
1. ela tem os lábios vermelhos a gritar, a desafiar.
2. ela expôs sua dor em praça pública. Não para sentirem piedade, mas para que ninguém permita se deixar violentar. Para que gritem: existem limites! Ou como dissestes: serão meus cúmplices.
3. o amor que sentia pelo companheiro não lhe concedeu indulto para agredi-la.
É o que estou tentando fazer, Vítor. Gritar, expor as feridas para que saibam que não são belas, estabelecer limites, fazer entender que o amor não é um imbecil, um tolo que permite tudo.
Sei que já vou longe, mas vou te contar um segredinho.
Tive um grande amigo de faculdade. Ele era um cara difícil, muito atormentado. Além de mim, só tinha laços estreitos com mais duas pessoas. Ele podia contar comigo pra tudo porque eu sempre deixei claro que se precisasse, não deveria ter pudores. Durante quatro anos fui sua grande companheira, irmã, e todo blá blá blá. Formamo-nos, mas não perdemos contato. Um belo dia, exatamente dois antes do aniversário dele, ele pirou. O telefone da minha casa tocou às quatro da manhã. Atendi apreensiva, afinal, telefonema nessas horas... era ele. Estava alcoolizado, vagando pelas ruas e chorava muito. Não tive dúvidas. Eu disse “venha” e ele veio. Fiz-lhe café e conversamos até o dia literalmente clarear. No dia do aniversário, liguei pra ele e o convidei para uma saída leve, com meus amigos, gente nova para espairecer. Ele recusou. Insisti um pouco, pois não queria que ficasse sozinho justamente naquele dia, mas ele foi irredutível. Eu fui para o bar com algumas amigas. Fizemos os pedidos e fui lavar as mãos. Antes de chegar ao banheiro, vi uma mesa cheia, com um bolo enorme, eles cantavam parabéns pra você. Sabe quem era o aniversariante, querido? Pois é, eu fiquei arrasada e ele, pálido. Entrei correndo no banheiro, mas ele ficou me esperando na porta. Saí e ele me segurou. “Posso explicar”. Disse que podia enfiar a explicação naquele lugar e nunca mais nos vimos.
Nego, aquilo me deixou com o olho roxo, igual ao da Nan. Mas eu soube reagir. É isso que busco agora novamente: reagir.
Eu não quero mais ser/estar disponível dessa forma. Quero que continuem me procurando quando precisarem, mas também quando não precisarem. Eu vou continuar perdoando, mas não quero esquecer. As experiências (ou as cicatrizes) são potentes sinalizadores. É preciso aprender algo com isso.
A Nan podia ter levado a tal porrada e ter se calado. E quando o companheiro viesse pedir perdão, ela podia ter agido como milhares de outras mulheres agem: perdoam e voltam a apanhar. Num caso desses, o agressor - que é também o ser amado – não está apto para dizer: “nunca mais vou fazer isso”. Mas quem apanha acreditando no milagre de um dia receber beijos, ao invés de pancada, tem que estar apto para dizer: “nunca mais mesmo, porque eu não vou permitir”.
Será fácil? É super difícil dizer não a quem amamos e mais doloroso ainda constatar que amado e agressor são a mesma pessoa. Mas o que fazer, Vítor? Ficar?
Se por certas vezes exagero nas tintas, peço que tenhas paciência. Este exagero “é tão e somente a coisa mais bela e maravilhosa que possuímos enquanto reles seres humanos que somos: a capacidade que cada um de nós possui de regenerar-se através do amor”.
Estou cuidando das feridas, meu amigo, estou me protegendo, aprendendo a exercitar a generosidade comigo, estou dando a mim o direito de gritar, explodir, xingar palavrões bem cabeludos! Hehehe
Não estás sozinho. Eu também acredito e é por acreditar que me debato tanto, luto tanto, faço tanto barulho. Não quero e não vou ficar surda às misérias.
Vou lutar até a morte pelo direito de ser quem sou. Vou exigir minha parte no Éden terreno. Não vou tolerar abusos.
Antes de bater a porta, eu disse para... você sabe quem: o que difere um ser humano de um mero filho da puta é a maneira como conduzimos nossas rel(ações). Se, apesar de toda a dor, assumimos nossos atos, nos reconhecemos porção humana; mas se ignoramos nossas responsabilidades, não resta dúvidas, somos todos belíssimos filhos de uma grande puta.
Alguns podem chamar a isso de drama. Eu prefiro chamar de vida. E sim, eu vou voltar a sorrir porque eu mereço. Virão novamente as palavras apaixonadas, os sentimentos diáfanos, as emoções estarrecedoras.Beijo grande nessa sua alma imensa. E Vítor! OBRIGADA.

sexta-feira, novembro 03, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (14)

sobre uma fotografia:

existem mistérios escondidos por detrás da névoa do canal
como se eu e aquele homem fôssemos a mesma pessoa:
um olhar melancólico, curvado sobre o farol que reflecte a esperança.
*

quinta-feira, novembro 02, 2006

Mysteries
God knows how I adore life
When the wind turns on the shores lies another day
I cannot ask for more
And when the time bell blows my heart and I have scored a better day
Well nobody made this war of mine

And the moments that I enjoy
A place of love and mystery
I'll be there anytime

Oh mysteries of love where war is no more
I'll be there anytime

And when the time bell blows my heart and I have scored a better day
Well nobody made this war of mine

And the moments that I enjoy
A place of love and mystery
I'll be there anytime

Mysteries of love where war is no more
I'll be there anytime

Beth Gibbons & Rustin' Man

sublinhado (46)

Porque o mal não estava nas instituições, mas no mais profundo de nós próprios. Era preciso escondermo-nos num canto, fazermo-nos o mais pequenos possível e, em vez de tentarmos um esforço pervertido de progresso, aceitar tudo. (pág. 17)
O Sangue dos Outros (Público), Simone de Beauvoir

Confessionário (34)

Sei que devia esperar uma resposta tua, mas isto é também uma ‘nota de rodapé’.
Hoje reli a última carta que te escrevi uma meia dúzia de vezes. Sempre que terminava a leitura obrigava-me a dizer em voz alta: eu acredito realmente nisto, eu acredito verdadeiramente nisto… queres saber Lu? já não sei nada, minha amiga, como o filósofo…
Talvez o teu grito de revolta, o pontapé na mesa e a vontade de virá-la ao contrário seja um acto de grande coragem e não uma fuga de ti própria como eu tive pretensão de afirmar. Talvez a lucidez esteja contigo… porque há dias em que também eu acho que o mundo à nossa volta é indigno de ser amado.
É minha querida, é bem assim como disseste: ‘Eu sempre pude mesmo quando não podia nada.’ E tudo para nada Luciana, tudo para absolutamente nada…
Um beijo,
Teu Vítor.