quinta-feira, agosto 31, 2006

tercetos sobre a vida, a morte & coisas que tal (1)

sobre a fé:

disseram-me quando nasci
que era inútil duvidar da existência de deus,
mais cedo ou mais tarde acabaria por acreditar
*

deus me livre de sujar o chão

Casa Pawson (1999), Londres, Reino Unido, John Pawson

Estes dias visitei um colega de trabalho que não via há imenso tempo. Tomámos café e entretanto ele convidou-me para acompanhá-lo ao seu atelier onde me mostrou alguns dos seus últimos projectos. Um dos projectos em questão, uma moradia unifamiliar, encontrava-se já concluído e habitado pelos clientes. O meu colega começou por mostrar-me os desenhos do edifício e a maquete, depois fotografias do decurso da obra, relatando algumas das dificuldades que surgiram durante a execução e as voltas necessárias para que fossem resolvidas, e finalmente, fotografias da obra concluída, antes e depois de ser habitada. A certa altura, quando me mostrava uma fotografia do hall de acesso ao piso dos quartos, faz-me a seguinte observação “não repares na tapeçaria que a fulana colocou na parede do hall, mas sabes que esta gente é perita em destruir os projectos”. Perguntei-lhe, “incomoda-te que as pessoas colonizem os espaços que projectas?” ao que ele me respondeu “não, não me incomoda de todo. Fico é furioso quando não têm o mínimo de tacto para decorar a casa”. Eu continuei: “mas já te passou pela cabeça que aquela tapeçaria, que eu também acho pirosa, possa ser um objecto de grande importância afectiva para a tua cliente e que ela possa realmente apreciá-lo de uma forma que a nós nos incomoda?” e prossegui: “sabes, a mim não me incomoda nada a forma como as pessoas se apropriam dos espaços, seja ela brega ou sofisticada; essa colonização, essa infecção dos espaços que tínhamos para nós como invioláveis até me agrada. As salas, os quartos, espaços que não eram mais do que a materialização de ideias abstractas na nossa cabeça, ganham corpo, adquirem uma história, ganham finalmente aquela simbologia que o Bachelard nos fala n’A Poética do Espaço. Sabes, agrada-me que isso não esteja sobre o nosso controlo. A sensação que tenho é que o projecto é tanto melhor quanto mais extensa é a permissão dessa colonização, por muito desinteressante que ela nos possa parecer. É um sinal de que a arquitectura se adapta, de que possui a flexibilidade suficiente para responder às necessidades, vontades, ou caprichos (que parece ser o caso) daqueles que a habitam. Poderás dizer-me que as fotografias não são equilibradas, ou que se te aparecer oportunidade de publicação da obra numa revista da especialidade vais usar as fotografias pré-colonização. Eu compreendo que as uses, e talvez fizesse o mesmo. Tenho para mim que muito raramente trabalhamos para quem nos encomenda o projecto. Os nossos exercícios não são mais do que uma resposta à ditadura do gosto e da linguagem, a nossa principal preocupação enquanto arquitectos não é agradar o cliente, é antes que o nosso trabalho seja respeitado e valorizado pelos nossos colegas. Não achas isso?” Ele respondeu-me: até certo ponto concordo contigo, mas o que é certo é que a tal ‘colonização’ que falas acaba muitas vezes por desvirtuar completamente as intenções e os princípios que nos levaram à concepção daquele espaço.” Eu peguei no exemplo do John Pawson e disse-lhe: “se me perguntares, como arquitecto, se eu aprecio as obras do Pawson, eu digo-te prontamente que sim. E mais, até te digo porquê. Gosto daquela austeridade formal, gosto da ausência do desnecessário, agradam-me aqueles espaços ascéticos, silenciosos… aprecio sobretudo a sobriedade com que tudo é executado. Se equacionarmos exclusivamente a questão da linguagem e da proximidade estética, digo-te muito prontamente que me sinto mais próximo de um Pawson do que de um Libeskind ou de um Gehry por exemplo. No entanto, e apesar da sedução que as imagens do John Pawson exercem sobre mim e de ter em relação ao seu trabalho uma sensibilidade compatível, digo-te que aquilo é má arquitectura.” Ele olhou-me espantado, provavelmente indignado com aquilo que eu estava a dizer. Eu continuei: “Uma arquitectura que não permite um copo de água entornado no chão, um prato sujo na pia, uma pessoa sentada no sofá, um quadro que se trouxe da viagem não sei onde na parede, uma arquitectura que não permite que um cão se sente na carpete ou que o gato salte para a mesa da cozinha, não pode nunca ser uma boa arquitectura, ou pode? Imagina as composições perfeitas e equilibradas do Pawson com a simples presença humana, nem precisa de ser uma pessoa mal vestida, imagina uma mulher ou um homem, elegantes e sofisticados, sentados no sofá branco da casa Pawson em Londres… não te parece que a simples presença humana naquele espaço o desequilibra, o torna horrendo? Penso não ser por acaso que as monografias do Pawson nunca trazem fotografias dos espaços com a presença humana. Tenho para mim que ele tem consciência do desequilíbrio que elas criam nos seus espaços e, portanto, como era de se esperar, as exclui. Tudo é um negócio, meu caro, e o Pawson vende sonhos, sonhos belíssimos… eu até admiti que os ‘como’ também… mas aquilo é tudo menos uma arquitectura real. Tu perguntavas-me há pouco se eu não achava que a colonização dos espaços pelas pessoas desvirtuava (ou corria o risco de desvirtuar) os espaços que projectamos, eu respondo-te que virtuais são os espaços do Pawson, por muito belos que sejam, por mais equilibrados que nos possam parecer.” Terminámos a conversa com ele a dizer-me que tinha que reflectir melhor sobre aquilo que eu lhe estava a dizer.

Radiografia

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena

Como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- Sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

Dois e dois: quatro. Ferreira Gullar.

(em agosto)

Na sequência do texto do Kavafis, algures aí em baixo, e apesar da aparente improdutividade, as ideias vão-se organizando… as emoções vão-se sedimentando. Não há personagens, nem ‘eu’, nem alguma voz a cantar dentro da cabeça, nem meditação tão pouco. Aliás, ultimamente é o corpo quem comanda, e se é essa a vontade do destino, pois que assim seja.

quarta-feira, agosto 30, 2006

Googlices

chegaram até nós, a partir do Google, pesquisando a frase em baixo. fico espantado com o grau de apuramento dos motores de busca.
a distância não desafina uma amizade

terça-feira, agosto 29, 2006

LADO B (20)


sublinhado (36)

A hora do ano que eu amo é o Verão. Mas os verões verdadeiros o Egipto ou da Grécia - com o sol forte, com os triunfantes meio-dias, com as noites extenuantes de Agosto. Não posso dizer porém, que trabalhe (artisticamente, quero dizer) mais no Verão. Impressões dão-me muitas as formas e as sensações do Verão; mas não observei tê-las registado ou tê-las traduzido directamente em trabalho literário. Digo directamente; porque as impressões artísticas permanecem muito tempo sem serem usadas, produzem outros pensamentos, amoldam-se outra vez por novas influências, e quando se cristalizam em palavras escritas, não é fácil recordar qual foi a hora do pretexto original, de onde verdadeiramente as palavras escritas emanam. (pág. 141)
Poemas e Prosas (Relógio D'Água), Konstandinos Kavafis

imagens que se colam ao peito (7)


Birds at twilight, Umea, Sweden, XMAS 1998, Nan Goldin

quinta-feira, agosto 24, 2006

Banda Sonora para um fim-de-semana em Lisboa (até segunda!)

Lado (A)
Baby Dee – My Love Has Made A Fool of Me
Bright Eyes – Lua
Anja Garbarek – And Then
Iron & Wine – Cinder & Smoke
The New Pornographers – Streets of Fire
Sigur Rós – Hoppípolla
Keren Ann – Autour de l’arbre
Azure Ray – Beautiful things can come from the dark
Múm – Awake on the train
Björk & Family Tree – Bachelorette
Tindersticks – Are you trying to fall in love again
Lou Reed & John Cale – Nobody but You

Lado (B)
Air
– Universal traveler
Blasted Mechanism & Maria João – Power on
Erlend Oye – The talk
Metrô – Aquarela do Brasil
Thievery Corporation – Sol Tapado
Feist – When I was a young girl
Thom Yorke – The Eraser
Yann Tiersen – A secret place
Goran Bregovic – Sex
Lhasa de Sela – Floricanto
Meira Asher – Taht A’Shams
Rokia Traoré - Sakanto

Confessionário (28)

Minha amiga, como me fez bem ler a tua última carta e saber que o teu coração começa a procurar de novo a luz. Há uma palavra francesa, um verbo, que eu adoro e que não encontro no português tradução com valor semântico idêntico ou com a mesma carga energética: ‘réussir’. É uma palavra propulsora, activa, é uma palavra de sucesso, de vontade. É a palavra dos sobreviventes, dos que escolhem, dos que amam incondicionalmente a vida. Quando terminei de ler a tua última frase, ‘a despeito de tudo, estou viva’, saiu-me da boca para fora e sem qualquer espécie de raciocínio de permeio: ‘elle va réussir’… (que não tem o mesmo valor, nem a mesma força do ‘ela vai conseguir’ ou ‘ela vai ter sucesso’).
Ainda bem que te apaixonaste por ‘aquele abraço’ da Nan Goldin. Essa fotografia é especial, aliás, muitas fotografias da Nan Goldin são especiais. Não encontro muitos artistas que cartografem tão bem a contemporaneidade como ela o faz. A Nan Goldin ficará nos cadernos da História da Arte como a artista que fotografou a vida.
Mudando um pouco de assunto, tenho a sensação que ando a ler um livro para ti. Estranho?! Falo-te de ‘Espera de Deus’ da Simone Weil. A cada sublinhado, a cada paragem para mastigar melhor o raciocínio da filósofa francesa, penso 'tenho que enviar isto à Lu'. Acho que a minha observação não é tão descabida quanto isso, a ver pelos comentários que tens feito às transcrições que tenho publicado no blogue. Ás vezes tenho a sensação, e cada vez mais a certeza, de que este mundo, apesar da turbulência, é uma sinfonia completa, uma obra perfeita e acabada, onde não há instrumentos dispensáveis, onde a pauta dos violinos existe para dar vida aos fagotes. O desafino que por vezes ouvimos não é mais do que uma fuga à partitura… há excesso de solistas neste planeta, há virtuosos a mais sem a atenção necessária para perceberem que desafinam a melodia. Eu próprio me distraio e solto umas notas fora do lugar. Tudo isto para te dizer que neste momento não leio o livro de Weil por acaso, um livro que me foi oferecido e que, tão pouco fazia parte dos livros em espera para serem lidos. Uma vez escrevi um texto onde me debruçava sobre a ideia de serem os livros a escolherem-nos como leitores e não o contrário… penso que o leste… cada vez confirmo mais essa minha teoria.
Despeço-me com mais uma transcrição de Weil, sabendo desde já que te vai falar ao coração. Um beijo.

Os bens mais preciosos não devem ser procurados, mas esperados. Porque o homem não pode encontrá-los por intermédio das suas próprias forças, e se se põe à sua procura encontrará, em seu lugar, falsos bens nos quais não saberá distinguir a falsidade. (pág. 103)
Espera de Deus (Assírio & Alvim), Simone Weil

O Outro Lado (15)

terça-feira, agosto 22, 2006

Confessionário (27)

Meu querido, a fotografia que me ofereceste virou tela de proteção do meu computador.
Olha como são as coisas, a vida, Vítor. Minha mãe olhou a foto e perguntou-me: “é você, Lu? Não lembrava dessa foto!”. Eu respondi: “é claro que não lembrava. Não sou eu.” Ela chegou mais perto para acreditar. Não sei explicar, mas de alguma forma, da nossa forma silenciosa, você captou-me. Não é só aparência porque nem sei se pareço com a moça da foto, mas o abraço, ah, o abraço, as mãos, aquela expressão no rosto... sim, essa sou eu.
É a primeira vez que tenho vontade de escrever desde que tudo começou a desmoronar e eu estou profundamente emocionada com esse desejo, querido... é como se eu recuperasse a capacidade de sentir.
Sabe o que tem sido mais difícil nesses dias cinzas, Vítor? Olhar-me no espelho. E então eu entendo o motivo pelo qual não conseguia mais escrever o diário de G.H., apesar de ter tanto a dizer. Tudo que eu criei para esse universo ficcional transcende, Vítor! V. e A., a mulher simétrica... eu não sei explicar, mas tudo isso é mais do que criação, existe um componente quase sobrenatural. V. anuncia-me coisas, antecipa-me a vida e eu não sei lidar com isso.
A vida tem-me surpreendido de muitas formas, meu amigo.
Desconheço quase tudo e todos. QUASE é uma palavra doida.
Tenho descoberto a vida numa pluralidade intensa e tanta luz, às vezes, cega. Nesses últimos meses eu morri muitas vezes e de muitas maneiras, Vítor. A morte sempre foi um assunto que me interessou porque é a contracapa da vida. Ambas têm tantos mistérios insondáveis...
Lembrei-me de Heráclito. Sabe a história de uma pessoa não atravessar o mesmo rio duas vezes? Na segunda vez tanto o rio quanto a pessoa são outros?
Atravessei novamente o rio, Vítor, e definitivamente não sou a mesma, querido. Ter passado pela experiência, pela possibilidade concreta de não mais me ver refletida no espelho foi algo avassalador.
Hoje, eu sei quem faz falta e quem não faz e isso também é um processo doloroso porque requer um tipo diferente de luto.
No filme da minha vida tão ordinária, eu senti o abraço que nunca te dei, dei à luz à filha eu nunca tive, vislumbrei a lua alta e a taça de vinho a quatro que tantas vezes planejamos, afaguei os cabelos brancos que nunca verei envelhecer, protegi minha mãe, como se fosse minha filha, da violência que não sou capaz de deter, enfim, enterrei meus mortos.
Ainda não sei o que tudo isso significa, Vítor... estou confusa e tenho tanto medo, mas sei, eu acredito, nada é em vão, meu amigo. Não existe coincidência, Deus não joga dados e esse livro está longe da última página.
A despeito de tudo, ESTOU VIVA.

sábado, agosto 19, 2006

Hoje, se pudesse, sacrificava o Amor.

sexta-feira, agosto 18, 2006

sublinhado (35)

Depois de meses de trevas interiores, tive de repente e para sempre a certeza de que qualquer ser humano, mesmo que as suas faculdades naturais sejam quase nulas, pode penetrar nesse reino de verdade reservado ao génio, se tão só ele a deseja e faz perpetuamente um esforço de atenção para a atingir. Converte-se, assim, ele próprio, num génio, mesmo se, por falta de talento, a genialidade não pode ser visível ao exterior. (pág. 57)
Espera de Deus (Assírio & Alvim), Simone Weil

quinta-feira, agosto 17, 2006

Viseu

Há pouco mais de uma semana estive em Viseu. Lembro-me de lá ter ido em criança, com os meus pais, mas na minha memória a cidade resumia-se a uma fonte no meio da estrada perto de uma praça cheia de árvores. Era assim que recordava Viseu. Durante alguns anos, de passagem para a Covilhã onde tinha amigos a estudar, tive muitas vezes vontade de parar em Viseu e conhecer melhor a cidade. Nunca aconteceu. Em passeios pela Beira ou pelo Douro, Viseu surgia sempre como rota possível, mas a visita era sempre sacrificada em detrimento doutro destino qualquer. Depois do dia fantástico que tive na cidade de Vasco Fernandes (vulgo Grão Vasco) percebo agora o porquê de não ter lá ido antes… os acontecimentos, as visitas, as coincidências (ou não), tinham que desenrolar-se da forma como se desenrolaram. Agradeço à Filipa, minha mana, o dia fantástico que me proporcionou. Não esquecerei as andorinhas, a cerveja preta ao cair da noite, os livros e as cartas de S. Paulo aos Coríntios que tanto interesse me têm despertado desde esse dia. Obrigado por tudo.

Fiquei fã da ‘Livraria da Praça’ em Viseu. Está situada em pleno centro histórico da cidade, muito bem recheada de novidades e não só, com um espaço para exposição de obras de arte, um atendimento de uma simpatia só, um local tranquilo convidativo à leitura com um horário de Verão excelente para fugir do Porto ao final da tarde e dar um pulo a Viseu para quebrar a rotina (Terça a Sábado: das 15 às 23h; Domingo: das 15 às 19h). Ver o blog da livraria AQUI.

LADO B (19)


domingo, agosto 13, 2006

sublinhado (34)

Possuo a necessidade essencial, e creio poder dizer vocação, de passar por entre os homens e atravessar os diferentes meios humanos confundindo-me com eles, adoptando a mesma cor na máxima medida admissível pela consciência, desaparecendo no seu seio, isto para que se mostrem tal como são e sem disfarce para mim. É que desejo conhecê-los a fim de os amar tal como são. Porque se não os amo tal como são, não é a eles que amo e o meu amor não é verdadeiro. (pág. 39)

Espera de Deus (Assírio & Alvim), Simone Weil

sexta-feira, agosto 04, 2006

LuZ

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Basilique Domrémy. Ricardo Alves.

Escuto Bach.
Meu Deus, que alma translúcida é essa?
Escuto Bach. Elevo-me aos céus e penso: não pode haver avareza depois de Bach.
Os miseráveis deveriam, pelo menos uma vez ao dia, ouvir a abundância de Bach como prescrição médica.

- Doutor, tenho o coração seco.
- Ouça Bach, meu filho.

Ou então:
- Estou fazendo análise.
- Oh, que ótimo. Está gostando?
- Muuuito.
- Ele é reichiano?
- Não, é bachiano.

Nesses dias de ressaca, Bach é esperança pura. Fecho os olhos, abro os ouvidos da alma e posso ver a vida novamente: amores-perfeitos em flor; rosas amarelas – perfume sem frascos; um céu de azul-infinito.
Enquanto o mar em mim não acalmar, amanhecerei Bach. Todos os dias.

quarta-feira, agosto 02, 2006

"Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir"


Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida. Outro ciclo completou-se.
Depois do incômodo de juntar livros, cds, roupas, papéis, lembranças e todos os outros cacos que restaram, olhar ao redor e ver que não sobrou nada. A não ser aquela sensação de vazio, a vertigem de não reconhecer a pessoa (que se ama) na pessoa amada. Quem, afinal, está diante de mim? Olha-me? Escuta-me? Sabe quem sou eu?
Não pôde encarar seus olhos. Não falou nada, não fez sequer um movimento. Tinha medo de ver denunciado em sua voz, nas mãos trêmulas, na náusea contida, na lágrima oculta pelos óculos de sol, na perna bamba, todo aquele amor mudo, esganiçado.
O que faria com todo esse amor?
Nenhum aperto de mãos, nenhuma palavra nem o civilizado beijo de “boa sorte, seja feliz”. Na sua cabeça um só pensamento: ir embora, sumir, desaparecer, correr em direção à luz, qualquer luz, havia uma luz, não havia?
Como numa cena ensaiada, deram-se as costas para nunca mais.