terça-feira, março 10, 2009

Os bestializados

O que escrevo nada tem a ver com a o ensaio do historiador José Murilo de Carvalho. Antes fosse. Escrevo porque já não suporto mais guardar tanta dor e o esforço de gritar para dentro. Nestes dias, tudo pra mim lembra a tela de Munch. Aquele ser desfigurado, horrorizado, agonizante que, não podendo mais reter tanta dor em seu ser, grita.
Sempre imaginei quais demônios o atormentavam naquele momento em que os expulsou das entranhas ao soltar a voz. Qual dor ficou tão insustentável a ponto de se transformar em loucura?
A violência é hoje o meu maior demônio. Aquele que quero expelir de forma incisiva, aquele que não aguento mais esconder ou fingir que não existe. A violência extrapola os muros do que é considerado real – os jornais, as revistas, o noticiário de TV – e da própria historiografia. A violência está identificada na música, nas expressões artísticas e naquilo que é considerado fictício: cinema e literatura. Guernica, holocaustos, Meninos não choram, Milk, 174, Proibido Proibir, Cidade de Deus... a lista é extensa.
O que leva um pai, tio, padrasto – pessoas com o dever de proteger e cuidar – cometer tantas atrocidades contra suas crianças?
Já não sei mais diferenciar o que é doença e o que é simplesmente maldade. Porque se supõe que a pedofilia, por ser uma doença, representaria casos isolados que se mantem mais ou menos constantes nas estatísticas. Mas não é o que acontece. Muito pelo contrário, o quadro é desolador. Crescem os casos de abuso e violência. Vivemos uma quimera de que a era digital, tecnológica, o conhecimento ao alcance de mão, para ser mais exato, em um simples clique aprimorasse o intelecto e a consciência. Falácia! Estamos a cada dia mais bestializados.
Uma criança de 9 anos acabou de passar por um duplo trauma. Não bastasse ser violentada desde os 6 anos de idade, essa menina também foi submetida a um aborto. Que tipo de criatura é essa que além de destruir um corpo tão frágil ainda destrói a doçura e o sonho de uma criança? Ainda restou alguma esperança nela? Qual a noção de proteção que ela tem? Que tipo das relações ela construirá? Terá sobrado algum espaço para o afeto e a confiança?
Não bastasse o absurdo de tudo, ainda vem a Igreja com uma conversa sem pé nem cabeça sobre excomunhão!
Sou contra o aborto, mas sou ainda mais contra a estupidez. Que tipo de moral norteia uma conduta em que se excomunga a vítima e o algoz sai ileso?!
Mulheres, mães, acordem, por favor! Pesa sobre nós a responsabilidade de educar os filhos. Que tipo de pessoas estamos formando e lançando no mundo? Sempre me pareceu um disparate, um paradoxo, termos na sociedade contemporânea pensamentos machistas ainda tão profundamente arraigados. Qual é a parcela de contribuição do universo feminino em perpetuar tanta burrice e preconceitos? O que estamos ensinando aos nossos filhos? Ainda dizemos aos meninos que existem dois tipos de mulheres, as que servem para casar e as que não servem? Ainda usamos o velho argumento para as meninas que os irmãos podem fazer isso e aquilo pelo simples fato de serem homens? Que o homem promíscuo é um garanhão e a mulher é puta? Que eles podem dispor do nosso sexo como se fossem deles? No dia 8 de março, as mulheres bradam por liberdade e igualdade nas suas mais diferentes expressões, mas será que em casa ensinamos isso aos seus filhos? Será que ainda estimulam os garotos a iniciarem cedo sua vida sexual enquanto pregam a virgindade das meninas como se sexo não fosse responsabilidade de duas pessoas?
Os homens são educados por mulheres. As mesmas mulheres que sofreram anos por causa da repressão e de tantos espartilhos a lhe comprimirem o corpo e alma. Não seriam por isso mesmo mais sensíveis para perceberem o menor sinal de asfixia? Onde estão essas mães que não enxergam seus filhos, que não percebem o terror nos seus olhos, os hematomas no corpo, a apatia no gesto? Foram três anos de abuso e para onde estavam voltados os olhos dessa mulher?
Não estou aqui indicando culpados. Não faz sentido. Mas faz sentido refletir nossos padrões de comportamento e valores. Estamos deixando um legado de infelicidade e destroços. Estamos criando gerações e gerações de farrapos humanos, de deficientes emocionais.
Já é difícil ter que conviver com a violência institucionalizada, aquela que vem da rua, da miséria, do tráfico, mas ninguém deve ser obrigado a viver a violência da casa, do espaço das relações privadas e dos afetos.
Não tenho muito o que celebrar nesse 8 de março. Pra dizer a verdade, por vezes, tenho vergonha de dizer que sou ser humano. Os irracionais somos nós.