Mostrar mensagens com a etiqueta resenha literária. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta resenha literária. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, outubro 18, 2010

Tolstói: a literatura que não é literature


Em conflito permanente com a sua arte, Tolstói nos mostra como o nexo inevitável entre literatura e vida social pode se transformar numa vantagem artística

Rubens Figueiredo

Nos 60 anos que vão do início da década de 1850 até 1910, data de sua morte, Liev Tolstói sempre escreveu contos e romances. Ao contrário do que se repete tantas vezes, Tolstói jamais parou de escrever ficção e, ao morrer, deixou inéditas ou em andamento obras-primas como Hadji-Murat ou Padre Sérgio. O mal-entendido resulta, em grande parte, das objeções que o próprio Tolstói, desde jovem, levantou contra a atividade e contra o papel de um escritor no quadro da sociedade russa e do mundo moderno em geral.

Se Tolstói nunca fez segredo do seu desconforto no convívio com escritores nem do seu mal-estar por ser autor de romances e contos, suas críticas só se tornaram mais veementes e mais elaboradas a partir do romance Anna Kariênina. Ao redigí-lo (na década de 1870), Tolstói chegou a declarar numa carta: “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”. E daí para frente, construiu uma verdadeira rede de questionamentos dirigidos não só contra a literatura, mas contra a arte ocidental, em particular, mais tarde reunidos no livro O que é arte?

Drasticamente censurado pelo governo czarista e tratado, ainda hoje, com desdém ou perplexidade, esse livro, no entanto, contém hipóteses que merecem mais atenção. Sobretudo quando Tolstói põe em dúvida a reivindicação, tão cara ao século 20, de uma autonomia para a arte e quando expõe suas desconfianças sobre o significado de tal pretensão. E também quando mostra, como que pelos bastidores das obras, que ao tentar se esquivar de seus efeitos formadores e em última instância educadores, a arte abre espaço para a manipulação e o autoritarismo, com um caráter de classe. A rigor, Tolstói acusa a arte de servir como legitimadora das desigualdades sociais, reforçar as distinções de classe e realimentar o mecanismo que reproduz as estruturas da sociedade.

Com isso em mente, podemos entender melhor, por exemplo, a marcante tendência antiartística presente na prosa de Tolstói desde os seus primeiros textos. Os Contos de Sebastópol, por exemplo, escritos na década de 1850, recapitulam episódios da árdua campanha militar russa na Criméia e no Cáucaso, da qual Tolstói participou como oficial. Sem respeitar fronteiras ou hierarquias, esses três contos já misturam ficção, memória, reportagem, etnografia, polêmica e relato de viagem, numa prosa que tende a ser despojada de requintes poéticos e até bruta, na sua objetividade. “Nunca vi lábios cor de coral, mas vejo lábios da cor de tijolo”, diz numa anotação, feita à margem de seus rascunhos de Infância, livro de memórias escrito pouco antes.

Em Contos de Sebastópol, a exemplo de obras posteriores, Tolstói mergulha o leitor num ambiente onde estão concentradas e em conflito convenções retóricas diversas. Pois os contos querem ser lidos ora como ficção, ora como etnografia, ora como narrativa de viagem, ora como polêmica política. Em suma, desde o início de sua carreira, Tolstói recusa, tanto para o autor como para o leitor, o privilégio e os prazeres da posição de um observador desinteressado, prazeres supostamente reservados à arte. Em troca, lança sobre o autor e o leitor todo o peso da responsabilidade daquilo que está sendo representado. A fim de minar a autonomia e o distanciamento artístico, sua tática é a de uma arte que é e não é arte, uma literatura que é e não é literatura.

Portanto, dizer que Tolstói abandonou a literatura parece uma forma de esquivar-se da consistente crítica que ele formulou ao papel histórico da arte, em geral. Da mesma forma, à luz das circunstâncias históricas, retratá-lo como um doutrinador religioso parece um expediente destinado a neutralizar a potência da sua crítica ao mundo moderno. Na verdade, não se pode fazer justiça a Tolstói, nem aos escritores russos em geral, sem uma ideia da posição da Rússia no mundo, naquela época.

O trauma da modernização

A introdução de modos de vida capitalistas e europeus na Rússia foi especialmente traumática. Trata-se de uma sociedade que tinha presentes formas de vida próprias, de feição e conteúdo orientais e medievais, e que precisava modernizar-se aos saltos, e não gradualmente, como haviam feito os países ocidentais dominantes, seus modelos. O choque foi ainda maior porque a Rússia era um país orgulhoso de suas tradições, provido de uma religião própria e de formas muito peculiares de organização social. Se a isso acrescentarmos as ambições imperiais dos czares que, a partir do século 17, levaram a Rússia a expandir as fronteiras e russificar populações vizinhas, podemos ter uma ideia da intensidade do conflito vivido por aquela sociedade, ao sentir-se em posição de inferioridade em face dos países ocidentais dominantes.

Em contrapartida, a consciência de que era preciso transformar a fundo a sociedade russa gerou um debate intelectual de uma riqueza e de um vigor talvez sem paralelo. Trata-se do confronto entre os projetos da modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel Aarão Reis bem definiu a situação). Em virtude da censura, mas também de fatores culturais mais profundos, os canais de expressão desse debate não eram os mesmos dos países ocidentais e incluíam, com grande peso, a literatura e a teologia.

Longe de se limitar às palavras, tal debate, em regra, desaguava numa militância ferrenha, da qual os escritores participavam, sem dissociá-la de cada uma de suas escolhas estéticas. Por outro lado, nesse debate, as linguagens artística e a religiosa contêm muito mais do que aquilo que as sociedades ocidentais estavam habituadas a atribuir a elas. Tais linguagens, na Rússia, não eram um mero disfarce, tampouco uma metáfora, mas sim um veículo poderoso em si mesmo. Pois permitiam pôr em questão os pressupostos não só do discurso da ciência dos países dominantes − sentida como ponta de lança da sua dominação −, como também dessas mesmas linguagens, em seu modelo ocidental.

Tolstói, portanto, foi um dos expoentes desse debate nacional e sua literatura, assim como suas polêmicas, não podem ser bem entendidas na ausência desse componente. Da mesma forma que pôs em questão a arte estabelecida, Tolstói foi um crítico ferino da religião institucional. O rito ortodoxo é duramente desmistificado no romance Ressurreição (de 1899), por via da técnica do estranhamento (da qual Tolstói foi o mestre, segundo o teórico russo Chklóvski). Mas já em Guerra e paz e Anna Kariênina, romances anteriores, Tolstói se mostrou implacável com a piedade e a caridade religiosas das classes privilegiadas e com seus modismos religiosos.

Por outro lado, as últimas páginas de Ressurreição dão prova de uma desenvoltura nada cerimoniosa com os dogmas, ao emendar livremente as palavras de Cristo, no Evangelho. De resto, será muito difícil encontrar algum teor sobrenatural, milagroso ou criador na forma como Tolstói emprega a palavra “Deus” (a qual, aliás, está longe de ser frequente). Por último, vale a pena sublinhar que Górki, em geral um observador muito agudo, deixou registrada, em suas lúcidas memórias sobre Tolstói, a impressão de que estava diante de um ateu.

A ficção como experiência de pensamento

De todo modo, o que importa é que literatura e religião, no caso de Tolstói − como em muitos escritores russos −, são linguagens apontadas para uma intervenção concreta nas formas de vida presentes. E os três grandes romances de Tolstói denotam a agudeza crescente da sua visão crítica. Guerra e paz tende a mostrar uma imagem menos questionadora da nobreza russa: em face do inimigo externo − as tropas de Napoleão −, as diferenças internas ficam um pouco na sombra.

Por outro lado, os expedientes mentais usados pelos países dominantes para justificar sua agressão e sua superioridade, em relação aos russos, são postos em relevo. Anna Kariênina já examina uma sociedade em crise − conjugal, familiar, cultural e social. As classes populares aparecem como uma brecha, uma janela: ou uma fonte de ar puro e renovador para o herói nobre, ou um índice do conflito social subjacente. Já em Ressurreição, o conflito é aberto, declarado e frontal. O romance trata do mundo prisional e judiciário, no qual as classes populares são segregadas e eliminadas, sob a bênção do discurso racional e humanista da justiça, da lei e do progresso.

Todavia, seria enganoso supor um fio de progressão contínua que uniria os três grandes romances. Em Guerra e paz, há mais do que simples prenúncios de tudo aquilo que virá em Ressurreição. Observando em retrospecto, percebe-se que as mesmas questões se apresentavam a Tolstói desde o início e, no máximo, pode-se dizer que as suas hesitações diminuíram com o correr dos anos.

Mesmo no aspecto da linguagem, as inquietações do escritor levaram-no, por exemplo, a escrever, quase ao mesmo tempo, obras tão díspares como o conto O prisioneiro do Cáucaso e o romance Anna Kariênina. No conto, Tolstói experimenta uma prosa de fortíssima concisão e simplicidade, com marcante predominância do período simples e sem nenhuma digressão. Um estilo elaborado a custo e com rigor, à luz das narrativas orais populares e dos textos destinados à alfabetização de crianças camponesas − textos que o próprio Tolstói criava, junto com seus pequenos alunos. Em contraste, no romance Anna Kariênina, o autor lança mão de uma frase de arquitetura complexa, longa, desdobrada em ramificações sintáticas de grande fôlego. Qual dos dois escritores é Tolstói?

Tudo indica que Tolstói − a quem tantos acusam de doutrinário − não tinha resposta pronta e fixa para as questões que ele mesmo formulava. Em troca, não se cansava de se impor problemas, nem de arriscar respostas fortes. Em boa parte, seus romances e contos constituem experiências de pensamento, testes e hipóteses, experimentos para os quais convoca os seus leitores. As constantes hesitações e dúvidas de seus personagens dão um bom testemunho desse processo.

Isso faz mais sentido ainda se pensarmos que, num célebre comentário a Guerra e paz, Tolstói afirmou que todos os livros russos relevantes se desviavam dos modelos literários europeus.

Ou seja, os problemas estavam postos, à frente de todos, mas a forma de pensar sobre eles tendia a vir pronta dos países dominantes, não só nos modelos da arte, mas também nos modelos do próprio pensamento social. A resistência de Tolstói à arte literária caminha em paralelo à hipótese de que narrar compreende a possibilidade de criar formas específicas de pensar e de conhecer. É bem possível que por isso ele nunca tenha sido capaz de abandonar a literatura, a despeito das suas repetidas e sinceras objeções e queixas contra a arte.

Hoje, quando a literatura carece tanto de encontrar o seu caminho e de renovar o seu papel crítico no mundo contemporâneo, pode ser de grande ajuda reexaminar com olhos menos arrogantes todo o pensamento e o rico percurso de Tolstói.

segunda-feira, agosto 11, 2008

Prosa, verso ou música?



Wally Salomão

Fronteira pouco nítida

O que o Chico Buarque diz não importa, ele é poeta sim. Muitas das letras dele têm qualidade superior a grande parte do que se encontra na literatura. Esta semana eu peguei um texto de Chico intitulado "Canção que existe", que me lembrou muito Dante em A Divina Comédia. E se você ler este texto, classifica-o como poesia tranqüilamente.
A Língua Portuguesa tem tradição na fusão entre a poesia e a letra de uma música. Existem sutis diferenças entre as duas, claro, mas elas estão muito próximas. Não há uma regra definida para o que pode ou não ser poesia. Eu não aceito quando alguns professores de Português, estrategicamente, tentam fazer uma separação entre as duas áreas. A única coisa que eles conseguem dizer é que poesia é aquele texto que se sustenta na página. Para mim, este argumento não faz o menor sentido. Lógico que existem pontos característicos de cada um destes mistérios. Um pernambucano, João Cabral de Melo Neto, disse em Duas Águas que existem poesias para serem ditas em voz alta e em voz baixa. Ou seja, há diferenças entre música e poesia, mas a fronteira entre elas não é tão nítida. Quando eu faço um texto sabendo que este vai ser musicado, o processo de criação não é o mesmo. Por exemplo, Maria Betânia me pede uma letra, eu penso já na voz dela. Porém, ao mesmo tempo, eu posso fazer uma letra nem pensando em musicá-la e acaba acontecendo, como Mel, que só depois de pronta, foi trabalhada por Caetano Veloso.
A poesia já tem um ritmo próprio. A história dos poemas prova isto, quando estes eram recitados por menestréis ou em jograis pelos povos mouros. Até hoje, percebendo o texto de Garcia Lorca, esta influência do canto popular está bem clara. Então, como a poesia tem um ritmo próprio, não há rigidez no que pode ou não ser musicado.

Wally Salomão é poeta e letrista


Jacy Bezerra

Canções que resistem

Em alguns casos, eu concordo que uma letra de música pode ser considerada poesia, como no Concretismo, por exemplo. Existem letras que sobrevivem independente de serem enquadradas como música. "Águas de Março" de Tom Jobim é para mim um grande poema. Outros artistas fazem trabalhos além da música também, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque.
Eu já vi algumas entrevistas com Chico na qual ele afirma não ser poeta e acho que em certo ponto tem até razão. Eu acho interessante quando ele diz que faz primeiro a música e depois a letra. Em todo caso, Chico Buarque deve ser considerado principalmente e essencialmente músico, mas algumas de suas letras podem facilmente ser classificadas poesias, como "Carolina" e "A banda". Estas canções resistem no papel independentemente de serem cantadas ou não.

Jacy Bezerra é poeta

Sebastião Vila Nova

Duas coisas diferentes

A letra de uma música é uma coisa bastante diferente de um poema. Em princípio uma letra deve ser submetida à música. Quando uma letra supera uma canção, não há uma boa canção. Quando um ouvinte escuta uma música prestando atenção primeiramente à sua letra, não é um bom ouvinte. Uma canção deve ser lembrada inicialmente por sua melodia. A poesia e a música têm relação por suas origens. Elas nasceram juntas e é por isso que a poesia tem um certo ritmo. É o que Ezra Pound chama de “melopéia do poema”. Porém, depois a música e a poesia se separaram e tomaram rumos diferentes. Eu penso como Thomas Mann escreveu no romance Doutor Fausto: “Um poema não deve ser bom demais para servir de material para uma boa canção. A música se sai muito melhor na tarefa de dourar a mediocridade”. Ou seja, ele diz que uma canção pode ter uma letra pobre e, mesmo assim, ser uma bela canção. Por outro lado, eu admito que excepcionalmente alguns artistas conseguem se superar e fazer letras poéticas independente da música. Chico Buarque, por exemplo, em "Brejo da Cruz". Essa letra pode ser lida no papel como um poema. Caetano Veloso também atinge isso quando faz letras experimentais. E isto é perigoso para o artista. Quando se faz letras como essas, a música não funciona e não pega.

Sebastião Vila Nova é sociólogo e músico

sábado, agosto 25, 2007

Lembrando Clarice

“... é da palavra que nascem todas as idéias do Homem – no princípio era o Verbo – e, como já afirmei antes, a palavra é o átomo da alma. E a última razão é que em português, a palavra tem o dom mágico de conter nela mesma – por linda coincidência e sem qualquer implicação semântica – a matéria-prima e seu instrumento. Somente com a palavra pode-se mover a palavra, tirar dela a sua essência, tocar o próprio coração da palavra; já que ela é lavra, já que ela é pá”.
Ziraldo

I - A OBRA COSTURADA POR FORA (OU A CICATRIZ DO MUNDO).


O conjunto da obra da escritora Clarice Lispector sempre foi muito criticado por apresentar estórias e personagens etéreos e esfumaçados, com pouca clareza e difícil apreensão. A autora foi rotulada de intimista e pouco comprometida com questões sociais, ou dizendo de uma outra forma, Clarice era uma escritora não engajada.
Dessa forma, então, Clarice Lispector se lançou ao desafio de responder à crítica, ou pelo menos tentar. Quis provar que sabia (mas, por opção, não desejava) fazer diferente.
A resposta para tal embate se concretizou em A hora da estrela, essa obra avassaladora: contundente e explícita e ao mesmo tempo fluida e velada. Ponto para a crítica, ponto para Clarice.
Como A hora da Eetrela é uma obra grávida de idéias e de elementos para reflexão e análise, pode-se constatar inúmeros aspectos por ela abordados: o papel do intelectual na sociedade; a indigência do povo brasileiro representado na figura de Macabéa; a reflexão sobre a condição da mulher; a discussão sobre o exercício da linguagem/fala como forma de legitimar o discurso competente bem como da apropriação do ato de escrever e de dar/ter voz.
Ler tal obra é ser, de alguma forma, violentamente lançado nesse universo inquietante e questionador, diria mesmo que é impossível não se sentir tentado a tecer comentários sobre esses temas. Ao nos depararmos com tal quadro, desponta uma necessidade urgente, uma quase obrigação de elaborarmos algumas respostas nem que seja para nós mesmos, para não sentirmos o incômodo de parecer, em absoluto, com a personagem. Surge uma vontade de agir, como se pudéssemos gritar (e sermos ouvidos!) em bom e alto som: Reage Macabéa! Fala alguma coisa!
Mas é claro que não é tão fácil assim!!
Ter a consciência do poder da palavra é viver em suspense, porque essa consciência nos diz a todo o momento que ela é fonte de liberdade tanto quanto o é de opressão. Todo aquele que domina o instrumental técnico da linguagem e com ele constrói representações acerca do mundo, faz parte de uma pequena elite que ocupa espaço privilegiado na sociedade, posicionando-se como agente transformador do discurso, decidindo o que deve ser dito bem como seu lugar na escala de importância e competência.
Dessa forma, aquele que tem voz usufrui a liberdade de construir os símbolos e celebrar seus valores. Por outro lado, o fato se de fazer parte do grupo que domina o discurso, necessariamente confirma o seu oposto: a existência dos excluídos, dos marginais, dos impossibilitados de se fazerem representar. Os detentores do discurso “legítimo” estão sempre lembrando a esses outros de que não possuem nem espaço nem voz, logo estão condenados a não compartilhar e celebrar o código dessa minoria. De alguma forma usurpam e aviltam o ser, retirando-lhe a voz e o direito de participar efetivamente dos ritos sociais.
Levando em consideração o texto de J. Carey[1] sobre o papel dos intelectuais na sociedade, é possível observar o estreito diálogo que estabelece com o livro em questão.
Carey nos fala da resistência dos intelectuais em aceitar a presença da massa quer como consumidora de informação, formadora de uma opinião ou (pior!) produtora da cultura formal.
É possível traçar um paralelo entre a posição reivindicada pelos intelectuais representantes do movimento modernista europeu citado no texto de John Carey com os filósofos da Antigüidade, os intelectuais se assemelhariam aos escolhidos, os seres superiores que regeriam a sociedade bem ao modelo desenvolvido por Platão, n’A República[2], para dividir a sociedade grega em grupos segundo a função social que viriam a desempenhar. É a conhecida lei dos três estágios da alma.
As Almas de Bronze formavam os exércitos por estarem mais ligadas às aptidões físicas; as Almas de Prata compunham o setor mercantil e artesanal, provendo os bens necessários para a subsistência; e por fim as Almas de Ouro - aquelas poucas que ocupariam cargos públicos estratégicos ou então formariam a casta dos filósofos, “os escolhidos” pelo seu aprimorado intelecto e aptidão de trabalhar com a palavra, ou dizendo de outro modo, as Almas de Ouro eram as detentoras do discurso dominante, logo, da representação.
As Almas de Bronze morriam como tal, e assim por diante, não havendo a possibilidade de ‘invasão’ na competência dos outros e, mais importante, não ameaçando o status do sábio e propagador da cultura formal.
Carey vai mostrando, ao longo do seu texto, o comportamento desses intelectuais (não tão distante do modelo idealizado por Platão) diante da crescente transformação social: crescimento demográfico, o advento da imprensa escrita, a política de alfabetização, etc. Vendo-se impossibilitados de brecar o processo histórico, criaram um mecanismo poderoso, desenvolveram um código de escrita bastante elaborado como forma de excluir a massa e continuar lhe negando direito à voz, permitindo que a elite intelectual permanecesse dominando o discurso.
Ora, não é essa a estória da nossa heroína trágica, de Macabéa?
Hoje, já é possível aceitar o fato (ou a desculpa) de que a indigência seja pelo menos representada na literatura, mas também é sintomático que num plano de análise (que chamarei de material) essa indigência seja ironicamente representada por uma personagem como Macabéa, tão frágil, de "corpo cariado" e sem voz ou pelo menos inconsciente da sua existência.
Por mais vida, por mais sentimentos profundos e complexos que Clarice tenha dotado sua obra e sua Macabéa – mulher, feia, nordestina, semi-alfabetizada –, sua percepção e apreensão só é possível por um leitor com características opostas às da personagem. (Que contradição! Um livro escrito sobre a massa, mais especificamente sobre o povo brasileiro, “só pode ser lido [3]” pela mesma elite que dela fala!).
Se Clarice já é inerentemente uma escritora de difícil leitura e compreensão, em A hora da estrela, o universo humano ficou ainda mais particularizado, ou seja, voltado para uma elite detentora de bens simbólicos refinados o suficiente para adentrar em tão densas questões. Falando mais claramente: a massa está presente na obra com todas as implicações e ambigüidades possíveis. Mais do que isso, a massa, protagonizada por Macabéa, é elemento primordial no livro, contudo ela não tem acesso a ele e, mais importante, não foi escrito por alguém que a represente.
Recuperando o ponto onde disse haver distintos planos de análise da obra, um que chamo material e um outro de existencial, quero desde já esclarecer que são duas faces de uma mesma moeda. Esses planos formam uma díade inseparável, mas para efeito de visualização e entendimento, creio ser legítimo fazer esse recorte.
À primeira vista, é possível apontar um plano material de análise. Diria que é aquele explicitado pelo narrador-personagem, aquele que salta aos olhos, tamanha a crueza com que delineia as características de Macabéa: ela é feia, frágil, vaga, vazia, desinteressante, sem voz e “incompetente para a vida”. Não tem opinião, vive exposta ao que o acaso lhe revela e o que revela é inconteste.
A começar pelo próprio nome. MACABÉA comporta todas as implicações da ambigüidade e do paradoxo dos planos de análise. Macabéa é o feminino de macabeu. Macabeus[4] é também um livro (subdividido em duas partes) do Antigo Testamento que conta a estória do cativeiro e libertação dos judeus depois do domínio de Alexandre Magno da Macedônia. Após uma fase de gozo de liberdade religiosa, os hebreus caíram sob o jugo dos reis da Síria. Antíoco IV acentuou a luta contra os judeus quando impôs aos mesmos o helenismo como prática religiosa e punindo com pena de morte a prática da religião judaica. Alguns judeus preferiam a morte ao abandono da sua fé. Posteriormente, num movimento de resistência, foram chefiados primeiro pelo sacerdote Matatias e depois pelos macabeus: Judas, Jônatas e Simão.
Assim como os macabeus foram obrigados a se submeter a uma imposição tirana, cerceadora da liberdade religiosa, também a nossa heroína se viu obrigada a sobreviver num mundo opressor que limita sua própria liberdade de existir.
E o que tudo isso quer dizer? Macabéa traz em si mesma o germe da contradição: encontra-se encarcerada pela sua própria inadaptação à sociedade de valores capitalistas (plano material) ao mesmo tempo em que tudo explicitamente negativo que possui representa a liberdade plena do mundo a ser vivido (plano existencial).
O corpo, a fragilidade da heroína sem voz é o cativeiro que a aprisiona, gritando muito alto para o mundo que ela é incapaz de reproduzir o sistema no qual está imersa. Em tal mundo ela não se encaixa, tanto que no fim ela morre (talvez como aqueles macabeus que preferiam a espada a negar suas crenças). A sociedade alardeia: Macabéa, não existe lugar para você nesse mundo! Em contrapartida, sua liberdade, sua redenção se localiza num outro plano: o da afetividade. A sua incompetência para viver (os valores pequeno-burgueses) é refletida na sua incompetência para enganar, ambicionar ou ferir o outro. Apesar de ser (aparentemente) vazia e estúpida, Macabéa, à la Sartre, dialoga exaustivamente consigo mesma, se confronta, questiona a si e a tudo o tempo todo quando duvida das coisas. E se há algo que a ‘velha Maca’ possui são dúvidas: não tem certeza de quem é, do que faz, da dor e do amor que sente.
Será coincidência que a construção dessa personagem apática abrigue em si mesma a desgraça e a força do poder de resistência de um povo?


II - A OBRA COSTURADA POR DENTRO (OU A OBRA POR ELA MESMA).


Notemos que as interpretações e correspondências estabelecidas entre a obra e a lógica do tempo e do espaço do mundo ‘real’ (contemporaneidade), podem também ser feitas nos limites do próprio livro que nesse sentido é atemporal, porque levanta questões de ordem internas (diálogo de si sobre si mesmo), como as questões de estética, de estilo, de linguagem e da própria relevância da obra como tal.
Por exemplo, impossível deixar de perceber o diálogo e os paralelismos que se estabelecem entre Clarice Lispector e Machado de Assis, no que diz respeito ao estilo.
O primeiro ponto que salta aos olhos é a questão da onisciência/onipresença do autor/narrador/personagem com os narradores de Machado. Rodrigo S.M. possui a virulência e a sutileza nas/das palavras e reflexões sobre o destino da personagem. Assim como os narradores de Machado, ele não se restringe a narrar fatos. Na verdade, ele está tão entrelaçado na vida da heroína que por vezes fica difícil reconhecer de quem são os sentimentos e impressões do mundo e das coisas. Na instância humana do romance, ele conhece tão bem sua personagem que chegam a se confundir, são antípodas de uma mesma relação.
Ao mesmo tempo, (numa outra instância que reconhecemos enquanto exercício da linguagem) demarca o abismo que se estende entre os dois. Ele é o detentor da fala, do discurso. Várias vezes se gaba do estilo metalingüístico e do domínio do seu instrumento de trabalho – a palavra!
Um segundo ponto é a prevalência da análise psicológica (rica nas obras de Machado) que ganha grande destaque como questionadora do ser humano e do seu papel social, da relação metafísica entre o Deus criador e a Existência tal como se apresenta: o intelectual tem esse caráter divino de criar vida, inventar um mundo próprio, agindo como um Deus no seu Universo literário. Essas inquietações são sentidas através de Clarice, Deus-mor da obra; de Rodrigo, “co-criador” de Macabéa e de sua condição (melhor seria dizer sua não-condição); e da própria Macabéa, que é incapaz de inventar um mundo próprio porque desconhece que possa fazê-lo.
O terceiro ponto é o jogo que a autora faz com o conto “A cartomante[5]”, usando exatamente os mesmos elementos contidos neste, ou seja, apresentando uma saída externa à personagem e sua trajetória frente à impossibilidade deles próprios darem uma resposta a suas angústias.
Macabéa não tem alternativas no espaço no qual está imersa e, quando surge a oportunidade de reação, ela é falseada porque não é uma ação provocada pela consciência da sua situação no mundo, qualquer que seja o plano de análise, mas induzida por uma ação salvacionista externa e superior que está além da realidade vivida.
Não podemos esquecer as pitadas de ironia com que a autora dá cor ao quadro e faz as ligações entre as duas realidades: a da ficção e da não-ficção. Clarice ‘brinca’ metafórica e simultaneamente, com os valores do universo literário e os da sociedade capitalista de consumo.
A saída apontada pela cartomante de Clarice está no encontro de um amor específico e preconceituosamente estereotipado, aceito como modelo de sucesso dentro da sociedade. A salvação de Macabéa se dá pela mão de um belo homem louro, rico e estrangeiro. Sintomático que nossa heroína seja pobre, esteticamente desinteressante e nordestina e que sua ascensão social (material) e humana (existencial) só possa se concretizar à margem do processo de tomada de consciência, da SUA consciência. Mais uma vez é marcada a incompetência de Macabéa para superar suas debilidades por ela mesma.
No fim, vence o sistema de valores capitalistas. Não há qualquer redenção para ela. Ao mesmo tempo em que seu autor/escritor (Rodrigo/Clarice) se embriaga e se confunde na existência de Macabéa, dela se diferencia enquanto ator, agente da transformação social (ele é o intelectual) quando - apesar de toda a coincidência do oco de suas vidas - ele continua a existir e tendo lugar no mundo, continua sendo aceito, continua comendo morangos. . .


[1] CAREY, J. “A rebelião das massas” in Os Intelectuais e as Massas – orgulho e preconceito entre a intelligentsia literária, 1880-1939. São Paulo: Ars Poetica, 1993.

[2] É preciso deixar claro que o princípio de seleção das almas obedece ao critério de igualdade de oportunidades. Todos os cidadãos receberiam uma mesma orientação até o teste. Os reprovados nessa primeira etapa, consequentemente paravam de receber qualquer instrução, constituindo o exército - as almas de bronze. Os aprovados prosseguiam nos estudos até o novo teste. Os reprovados formariam um segundo estamento social e os aprovados recebiam como prêmio a especialização nos estudos, logo, constituindo a elite do saber, as almas de ouro.

[3] Cabe aqui uma ressalva: quando digo que este livro só “pode ser lido por uma...” não está aqui contido qualquer espécie de preconceito. É claro que não existe um público apto para ler especificamente Clarice, João Cabral, Machado ou qualquer outro escritor. A diferença que estabeleço é de que há algumas especificidades concretas exigidas para esta leitura da obra que certamente a massa destituída de voz não consegue alcançar, pois – parafraseando Bourdieu – não tem a apropriação dos instrumentos de capital simbólico ou está fora deste determinado campo científico. Ou ainda em outras palavras, os representantes da massa não podem ser seus próprios críticos, pois não alcançam os códigos do campo literário. E isso nada tem a ver com a sensibilidade de cada leitor em relação a uma obra ou autor.
Ver BOURDIEU, P. “A produção e a reprodução da língua legítima” in A Economia das Trocas Lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996 e “O campo científico” in A Economia das Trocas Simbólicas.

[4] “I e II Livro dos Macabeus” in Bíblia Sagrada. Ed. Paulinas. p.1110-74.

[5] Machado de Assis. “A Cartomante” in Contos. Ed. Ática.