sábado, outubro 20, 2007

"Já comia qualquer coisa", disse Monsieur de Chupe-la-Pisse, lambendo os beiços e esfregando a barriga. De uma maneira geral, Monsieur de Chupe-la-Pisse não é esquisito. O empregado trouxe a ementa e Monsieur escolheu o seu prato de eleição: mil folhas de pombo. "Infelizmente, acabamos de servir o último", disse o empregado, desculpando-se com uma negra rugazinha na testa.
Monsieur de Chupe-la-Pisse pediu então folhado de froie gras. Mas, pelos vistos, também tinha acabado. Também já não havia vianinhas, rúcula com roquefort, robalo com cogumelos, rodovalho com espargos, batatas recheadas, bife alemão, pernil no forno com maçã, carré de borrego, fricassé de raia, lombo de abrótea com algas, tártaro de salmão com vinagreta de cassis e alheira de chaves.
Nesse dia, como de costume, Monsieur de Chupe-la-Pisse não comeu.

domingo, outubro 07, 2007

nota do dia (23)

O que mais me custa quando regresso de uma viagem não é o recomeço do trabalho nem da rotina diária normal. É antes a sensação de que vivo numa cidade que morre a cada dia que passa. Deprime-me caminhar no Porto às dez horas da noite. Em qualquer outra cidade europeia, à mesma hora, eu seria mais um elo na longa e agitada corrente de vida humana, aqui não passo de um dos quatro ou cinco fantasmas que assombram os Aliados.

sexta-feira, outubro 05, 2007

Bravo! Bravíssimo!

Ela, a eloqüente Camila foi uma das dez finalistas do Concurso de Contos da Revista Bravo.
Parabéns, minha flor!


for ever:

* por Camila Magalhães Pereira Mendonça

!

ela vem tentando ler os mesmos livros de sempre. aqueles mal acabados. foi largando pela metade na prateleira. há muita dificuldade em encarar os fins.

tentou convencê-lo a instalar um ventilador de teto no quarto. fez ameaça de leve - aqui não trepo mais. credo cruz três vezes. coitada. tão falha. e mal se resolveu o papo, até que virou briga. agora estão emburrados. coisa chata de se ver.

mas se amam bonito. esse amor piegas dos apaixonados. amor-paixão. coisa de filme. coisa que ninguém acredita. tinha aquele papo de amigos. e toda a evolução homem e mulher que se sabe quando se trata de sexo sem sentimentos. mas tudo embola, tudo complica. ela sempre se envolve e não tem jeito.

andou ouvindo um cara australiano. mas não tem certeza. venezuelano? neo-hippie de barba coisa e tal. disse que era leve e fazia bem ao corpo. quando tocava no rádio ela fazia uns movimentos estranhos. coisa de yoga. uma acrobacia aeróbica disfarçando um efeito zen.

ele ficava parado no canto, encostado na parede, vendo ela deitada no tapete; porque na sala tinha o tal ventilador de teto. são casal de pouco, juntado a tempo curto. lua de mel ainda. pouca grana e muita alegria. apesar das brigas.

falta um ar condicionado. resolveria metade e meia das questões.

o calor estressa até a raiz, ela diz. a raiz dos pentelhos. e crescem loucos. tem alergia a gilete. mas depilar é um sofrimento sem fim. tem sempre a ditadura tortuosa da beleza. ser mulher não é uma tragédia, mas é um drama, ela bem sabe. e ele entende. porque é dos melhores homens do mundo. cabe aqui aquela pieguice inicial.

é quase dezembro. e não se esquece a trajetória desesperada desses dias abafados. mas desta vez vai. pensam num destilado. coisa bem gelada. para descer bacana. e vão agradecendo. quase ninguém acredita; há que se repetir. ele tem certeza dos mitos da predestinação. "maktub", diria aquele mago nojento na sua coluna diária do jornal. mas a gente sabe que não é bem assim. se era para ser, metade transpira a outra inspira. é sempre o esforço. é sempre o impulso de acreditar que vale firme.

ontem ela ligou para o ex, confirmando os seus caprichos particulares- olha, meu bem, você me superou. pronto e tchau. era um desabafo franco de meia palavra. bastou fundo. ele entendeu. mesmo naquele suspiro. é que o ex havia mandado um cartão para ela. desses cafonas de fim de ano. falava de amor, de ressentimento, de perdão e graça. foi dado o recado. e ela que estima tanto esses sutis discursos; respeitou. guardou na caixa de cartas. talvez ainda releia algumas vezes. para acreditar. remorso de quem perde. e reflexão de quem foi perdido. mas então já era. e foi. mas mesmo assim ela ligou. tinhosa. as últimas palavras são sempre dela.

o prédio onde moram tem os enfeites natalinos de sempre. o elevador da garagem permanece enguiçado. de praxe. sobem de escada, respirando fundo, passos largos. apesar da yoga, ela tem asma. voltou a roer as unhas, mas mantém a tal da paz de espírito - é muita concentração, diz.

colocou na varanda um bonsai, veio com uns papos orientais, um misticismo estranho. não cabia, claro. logo se esqueceu, mas ficou lá a árvore mini de apetrecho. o apartamento tem as cores dela. e ele até gosta. disse que ela deu vida, deu harmonia. aquela coisa toda.

a gente nunca sabe até quando vai. e se vai.

tinha sempre em mente um trecho de um livro que ele leu gaguejando no início do romance. era nervosismo. tinham acabado de transar. e ele disse que queria ler algo. estava emocionado ainda. gozo, declaração, olho no olho - é atestado; gozar de olhos abertos apaixona, ou dá início à; fato concreto - então começou a ler baixinho enfatizando as expressões portuguesas. era uma maneira de alfinetá-la, claro. lembrando seu passado lusitano. e ele morria de ciúmes do tal português. mas apesar da provocação ela gostou. achei bonito. o trecho era bom. se emocionou de leve. mas preferiu tomar banho em seguida. nada de emoções as claras, era só o começo.
ela tem mania de sair arrumando as coisas. levanta catando as roupas, jogando a sujeira no lixo. uma chata completa. adorável perfeccionista.

e a gente continua sem saber até onde vai. se vai.

já pôs o venezuelano para tocar. é venezuelano? diz que teve influência do caetano veloso. este ela odeia com força. mas ele comprou o cd. ele sabe que no fundo ela gostou de três, quatro músicas.

e lá foi ela deitar cheirando a vick. aqueles ritos que trouxe de casa. era coisa da mãe. seres humanos, mais freudianos do que podem assumir.

dormiam numa cama média. aquela entre solteiro e casal. dizem que é cama de viúva. de viúvo. é o que se tornaram depois de tantos relacionamentos desgastados, arruinados, fracassados. viúvos. agora é king size. amém desse jeito. sem aliança. sem burocracia religiosa. mas ela disse que quer assinar papelada no cartório. nada de mudar nome. só uma coisa mulherzinha. ele acha desnecessário. mas se é por ela - e é por nós, ele também sente, sensível- disse que sim repetidas vezes para ela saber valia.

mas é fim de ano. há que se lembrar. e ela não gosta de fins, se sabe. retornou aos livros de sempre. faz calor. a pressão não tolera esses dias. é quase inferno astral, viu um astrólogo dizendo na tv. não acredita. mas tem lá suas tensões propícias ao período. ter fé. ver coragem no amor. isso já foi frase de música.

dessa vez eles se salvam.