quinta-feira, agosto 30, 2007

nota do dia (20)

passamos a vida a subestimar os outros. ninguém sabe o que vai dentro da cabeça de cada um...

quarta-feira, agosto 29, 2007

imagens que se colam ao peito (25)

Georgia O'Keeffe, 1918, Alfred Stieglitz

terça-feira, agosto 28, 2007

janelas abertas (4)

L. é um homem de 55 anos. Há quinze anos que está reformado por invalidez psicológica, a família preferiu assim. Nunca casou e desde a morte dos pais passou a viver na casa do irmão mais velho que lhe arranjou um biscate onde se vai entretendo e juntando mais uns tostões à magra reforma que recebe do estado.
L. quase não fala. Até um ‘bom dia’ é coisa difícil de se lhe arrancar dos lábios. Não se sabe ao certo se vive de acordo com a sua vontade; nunca abriu a boca para dizer o que queria assim como nunca se queixou do destino que a família lhe escolheu. Vive hermeticamente dobrado sobre si próprio e os seus olhos negros terrivelmente brilhantes e irrequietos como o voar de uma mosca parecem ganhar alguma tranquilidade apenas quando o vemos regressar das longas caminhadas que faz todos os dias.
Na família não há memória de alguma vez L. ter tido amigas ou amantes. Pelos trinta e poucos, as irmãs, substituíram-se à sua extrema timidez e fizeram-lhe um arranjinho com a solteirona lá do bairro. Era vê-los todos os domingos sentados no banco de pedra em frente ao café, ele sem abrir a boca debruçado sobre os joelhos e ela tagarelando a tarde inteira fazendo as perguntas e respondendo por ele. Mas nem a anafada da J. resistiu a tanta apatia e continua até hoje sozinha à espera de arranjar marido. Anos mais tarde, o primo M., que tem fama de gabiru, pegou nele e levou-o às putas, mas L. nem uma nem duas, voltou de lá sem saber o que a coisa era.
A família de L. há muito tempo que não questiona a sua estranha existência. Dão-lhe cama e roupa lavada e lá deixam o homem viver à sua maneira. Das longas e misteriosas caminhadas adivinham apenas que regressa feliz.

sábado, agosto 25, 2007

estou parvo... soube agora mesmo da morte do Eduardo Prado Coelho e é coisa que não me entra... que me parece absolutamente irreal.

Lembrando Clarice

“... é da palavra que nascem todas as idéias do Homem – no princípio era o Verbo – e, como já afirmei antes, a palavra é o átomo da alma. E a última razão é que em português, a palavra tem o dom mágico de conter nela mesma – por linda coincidência e sem qualquer implicação semântica – a matéria-prima e seu instrumento. Somente com a palavra pode-se mover a palavra, tirar dela a sua essência, tocar o próprio coração da palavra; já que ela é lavra, já que ela é pá”.
Ziraldo

I - A OBRA COSTURADA POR FORA (OU A CICATRIZ DO MUNDO).


O conjunto da obra da escritora Clarice Lispector sempre foi muito criticado por apresentar estórias e personagens etéreos e esfumaçados, com pouca clareza e difícil apreensão. A autora foi rotulada de intimista e pouco comprometida com questões sociais, ou dizendo de uma outra forma, Clarice era uma escritora não engajada.
Dessa forma, então, Clarice Lispector se lançou ao desafio de responder à crítica, ou pelo menos tentar. Quis provar que sabia (mas, por opção, não desejava) fazer diferente.
A resposta para tal embate se concretizou em A hora da estrela, essa obra avassaladora: contundente e explícita e ao mesmo tempo fluida e velada. Ponto para a crítica, ponto para Clarice.
Como A hora da Eetrela é uma obra grávida de idéias e de elementos para reflexão e análise, pode-se constatar inúmeros aspectos por ela abordados: o papel do intelectual na sociedade; a indigência do povo brasileiro representado na figura de Macabéa; a reflexão sobre a condição da mulher; a discussão sobre o exercício da linguagem/fala como forma de legitimar o discurso competente bem como da apropriação do ato de escrever e de dar/ter voz.
Ler tal obra é ser, de alguma forma, violentamente lançado nesse universo inquietante e questionador, diria mesmo que é impossível não se sentir tentado a tecer comentários sobre esses temas. Ao nos depararmos com tal quadro, desponta uma necessidade urgente, uma quase obrigação de elaborarmos algumas respostas nem que seja para nós mesmos, para não sentirmos o incômodo de parecer, em absoluto, com a personagem. Surge uma vontade de agir, como se pudéssemos gritar (e sermos ouvidos!) em bom e alto som: Reage Macabéa! Fala alguma coisa!
Mas é claro que não é tão fácil assim!!
Ter a consciência do poder da palavra é viver em suspense, porque essa consciência nos diz a todo o momento que ela é fonte de liberdade tanto quanto o é de opressão. Todo aquele que domina o instrumental técnico da linguagem e com ele constrói representações acerca do mundo, faz parte de uma pequena elite que ocupa espaço privilegiado na sociedade, posicionando-se como agente transformador do discurso, decidindo o que deve ser dito bem como seu lugar na escala de importância e competência.
Dessa forma, aquele que tem voz usufrui a liberdade de construir os símbolos e celebrar seus valores. Por outro lado, o fato se de fazer parte do grupo que domina o discurso, necessariamente confirma o seu oposto: a existência dos excluídos, dos marginais, dos impossibilitados de se fazerem representar. Os detentores do discurso “legítimo” estão sempre lembrando a esses outros de que não possuem nem espaço nem voz, logo estão condenados a não compartilhar e celebrar o código dessa minoria. De alguma forma usurpam e aviltam o ser, retirando-lhe a voz e o direito de participar efetivamente dos ritos sociais.
Levando em consideração o texto de J. Carey[1] sobre o papel dos intelectuais na sociedade, é possível observar o estreito diálogo que estabelece com o livro em questão.
Carey nos fala da resistência dos intelectuais em aceitar a presença da massa quer como consumidora de informação, formadora de uma opinião ou (pior!) produtora da cultura formal.
É possível traçar um paralelo entre a posição reivindicada pelos intelectuais representantes do movimento modernista europeu citado no texto de John Carey com os filósofos da Antigüidade, os intelectuais se assemelhariam aos escolhidos, os seres superiores que regeriam a sociedade bem ao modelo desenvolvido por Platão, n’A República[2], para dividir a sociedade grega em grupos segundo a função social que viriam a desempenhar. É a conhecida lei dos três estágios da alma.
As Almas de Bronze formavam os exércitos por estarem mais ligadas às aptidões físicas; as Almas de Prata compunham o setor mercantil e artesanal, provendo os bens necessários para a subsistência; e por fim as Almas de Ouro - aquelas poucas que ocupariam cargos públicos estratégicos ou então formariam a casta dos filósofos, “os escolhidos” pelo seu aprimorado intelecto e aptidão de trabalhar com a palavra, ou dizendo de outro modo, as Almas de Ouro eram as detentoras do discurso dominante, logo, da representação.
As Almas de Bronze morriam como tal, e assim por diante, não havendo a possibilidade de ‘invasão’ na competência dos outros e, mais importante, não ameaçando o status do sábio e propagador da cultura formal.
Carey vai mostrando, ao longo do seu texto, o comportamento desses intelectuais (não tão distante do modelo idealizado por Platão) diante da crescente transformação social: crescimento demográfico, o advento da imprensa escrita, a política de alfabetização, etc. Vendo-se impossibilitados de brecar o processo histórico, criaram um mecanismo poderoso, desenvolveram um código de escrita bastante elaborado como forma de excluir a massa e continuar lhe negando direito à voz, permitindo que a elite intelectual permanecesse dominando o discurso.
Ora, não é essa a estória da nossa heroína trágica, de Macabéa?
Hoje, já é possível aceitar o fato (ou a desculpa) de que a indigência seja pelo menos representada na literatura, mas também é sintomático que num plano de análise (que chamarei de material) essa indigência seja ironicamente representada por uma personagem como Macabéa, tão frágil, de "corpo cariado" e sem voz ou pelo menos inconsciente da sua existência.
Por mais vida, por mais sentimentos profundos e complexos que Clarice tenha dotado sua obra e sua Macabéa – mulher, feia, nordestina, semi-alfabetizada –, sua percepção e apreensão só é possível por um leitor com características opostas às da personagem. (Que contradição! Um livro escrito sobre a massa, mais especificamente sobre o povo brasileiro, “só pode ser lido [3]” pela mesma elite que dela fala!).
Se Clarice já é inerentemente uma escritora de difícil leitura e compreensão, em A hora da estrela, o universo humano ficou ainda mais particularizado, ou seja, voltado para uma elite detentora de bens simbólicos refinados o suficiente para adentrar em tão densas questões. Falando mais claramente: a massa está presente na obra com todas as implicações e ambigüidades possíveis. Mais do que isso, a massa, protagonizada por Macabéa, é elemento primordial no livro, contudo ela não tem acesso a ele e, mais importante, não foi escrito por alguém que a represente.
Recuperando o ponto onde disse haver distintos planos de análise da obra, um que chamo material e um outro de existencial, quero desde já esclarecer que são duas faces de uma mesma moeda. Esses planos formam uma díade inseparável, mas para efeito de visualização e entendimento, creio ser legítimo fazer esse recorte.
À primeira vista, é possível apontar um plano material de análise. Diria que é aquele explicitado pelo narrador-personagem, aquele que salta aos olhos, tamanha a crueza com que delineia as características de Macabéa: ela é feia, frágil, vaga, vazia, desinteressante, sem voz e “incompetente para a vida”. Não tem opinião, vive exposta ao que o acaso lhe revela e o que revela é inconteste.
A começar pelo próprio nome. MACABÉA comporta todas as implicações da ambigüidade e do paradoxo dos planos de análise. Macabéa é o feminino de macabeu. Macabeus[4] é também um livro (subdividido em duas partes) do Antigo Testamento que conta a estória do cativeiro e libertação dos judeus depois do domínio de Alexandre Magno da Macedônia. Após uma fase de gozo de liberdade religiosa, os hebreus caíram sob o jugo dos reis da Síria. Antíoco IV acentuou a luta contra os judeus quando impôs aos mesmos o helenismo como prática religiosa e punindo com pena de morte a prática da religião judaica. Alguns judeus preferiam a morte ao abandono da sua fé. Posteriormente, num movimento de resistência, foram chefiados primeiro pelo sacerdote Matatias e depois pelos macabeus: Judas, Jônatas e Simão.
Assim como os macabeus foram obrigados a se submeter a uma imposição tirana, cerceadora da liberdade religiosa, também a nossa heroína se viu obrigada a sobreviver num mundo opressor que limita sua própria liberdade de existir.
E o que tudo isso quer dizer? Macabéa traz em si mesma o germe da contradição: encontra-se encarcerada pela sua própria inadaptação à sociedade de valores capitalistas (plano material) ao mesmo tempo em que tudo explicitamente negativo que possui representa a liberdade plena do mundo a ser vivido (plano existencial).
O corpo, a fragilidade da heroína sem voz é o cativeiro que a aprisiona, gritando muito alto para o mundo que ela é incapaz de reproduzir o sistema no qual está imersa. Em tal mundo ela não se encaixa, tanto que no fim ela morre (talvez como aqueles macabeus que preferiam a espada a negar suas crenças). A sociedade alardeia: Macabéa, não existe lugar para você nesse mundo! Em contrapartida, sua liberdade, sua redenção se localiza num outro plano: o da afetividade. A sua incompetência para viver (os valores pequeno-burgueses) é refletida na sua incompetência para enganar, ambicionar ou ferir o outro. Apesar de ser (aparentemente) vazia e estúpida, Macabéa, à la Sartre, dialoga exaustivamente consigo mesma, se confronta, questiona a si e a tudo o tempo todo quando duvida das coisas. E se há algo que a ‘velha Maca’ possui são dúvidas: não tem certeza de quem é, do que faz, da dor e do amor que sente.
Será coincidência que a construção dessa personagem apática abrigue em si mesma a desgraça e a força do poder de resistência de um povo?


II - A OBRA COSTURADA POR DENTRO (OU A OBRA POR ELA MESMA).


Notemos que as interpretações e correspondências estabelecidas entre a obra e a lógica do tempo e do espaço do mundo ‘real’ (contemporaneidade), podem também ser feitas nos limites do próprio livro que nesse sentido é atemporal, porque levanta questões de ordem internas (diálogo de si sobre si mesmo), como as questões de estética, de estilo, de linguagem e da própria relevância da obra como tal.
Por exemplo, impossível deixar de perceber o diálogo e os paralelismos que se estabelecem entre Clarice Lispector e Machado de Assis, no que diz respeito ao estilo.
O primeiro ponto que salta aos olhos é a questão da onisciência/onipresença do autor/narrador/personagem com os narradores de Machado. Rodrigo S.M. possui a virulência e a sutileza nas/das palavras e reflexões sobre o destino da personagem. Assim como os narradores de Machado, ele não se restringe a narrar fatos. Na verdade, ele está tão entrelaçado na vida da heroína que por vezes fica difícil reconhecer de quem são os sentimentos e impressões do mundo e das coisas. Na instância humana do romance, ele conhece tão bem sua personagem que chegam a se confundir, são antípodas de uma mesma relação.
Ao mesmo tempo, (numa outra instância que reconhecemos enquanto exercício da linguagem) demarca o abismo que se estende entre os dois. Ele é o detentor da fala, do discurso. Várias vezes se gaba do estilo metalingüístico e do domínio do seu instrumento de trabalho – a palavra!
Um segundo ponto é a prevalência da análise psicológica (rica nas obras de Machado) que ganha grande destaque como questionadora do ser humano e do seu papel social, da relação metafísica entre o Deus criador e a Existência tal como se apresenta: o intelectual tem esse caráter divino de criar vida, inventar um mundo próprio, agindo como um Deus no seu Universo literário. Essas inquietações são sentidas através de Clarice, Deus-mor da obra; de Rodrigo, “co-criador” de Macabéa e de sua condição (melhor seria dizer sua não-condição); e da própria Macabéa, que é incapaz de inventar um mundo próprio porque desconhece que possa fazê-lo.
O terceiro ponto é o jogo que a autora faz com o conto “A cartomante[5]”, usando exatamente os mesmos elementos contidos neste, ou seja, apresentando uma saída externa à personagem e sua trajetória frente à impossibilidade deles próprios darem uma resposta a suas angústias.
Macabéa não tem alternativas no espaço no qual está imersa e, quando surge a oportunidade de reação, ela é falseada porque não é uma ação provocada pela consciência da sua situação no mundo, qualquer que seja o plano de análise, mas induzida por uma ação salvacionista externa e superior que está além da realidade vivida.
Não podemos esquecer as pitadas de ironia com que a autora dá cor ao quadro e faz as ligações entre as duas realidades: a da ficção e da não-ficção. Clarice ‘brinca’ metafórica e simultaneamente, com os valores do universo literário e os da sociedade capitalista de consumo.
A saída apontada pela cartomante de Clarice está no encontro de um amor específico e preconceituosamente estereotipado, aceito como modelo de sucesso dentro da sociedade. A salvação de Macabéa se dá pela mão de um belo homem louro, rico e estrangeiro. Sintomático que nossa heroína seja pobre, esteticamente desinteressante e nordestina e que sua ascensão social (material) e humana (existencial) só possa se concretizar à margem do processo de tomada de consciência, da SUA consciência. Mais uma vez é marcada a incompetência de Macabéa para superar suas debilidades por ela mesma.
No fim, vence o sistema de valores capitalistas. Não há qualquer redenção para ela. Ao mesmo tempo em que seu autor/escritor (Rodrigo/Clarice) se embriaga e se confunde na existência de Macabéa, dela se diferencia enquanto ator, agente da transformação social (ele é o intelectual) quando - apesar de toda a coincidência do oco de suas vidas - ele continua a existir e tendo lugar no mundo, continua sendo aceito, continua comendo morangos. . .


[1] CAREY, J. “A rebelião das massas” in Os Intelectuais e as Massas – orgulho e preconceito entre a intelligentsia literária, 1880-1939. São Paulo: Ars Poetica, 1993.

[2] É preciso deixar claro que o princípio de seleção das almas obedece ao critério de igualdade de oportunidades. Todos os cidadãos receberiam uma mesma orientação até o teste. Os reprovados nessa primeira etapa, consequentemente paravam de receber qualquer instrução, constituindo o exército - as almas de bronze. Os aprovados prosseguiam nos estudos até o novo teste. Os reprovados formariam um segundo estamento social e os aprovados recebiam como prêmio a especialização nos estudos, logo, constituindo a elite do saber, as almas de ouro.

[3] Cabe aqui uma ressalva: quando digo que este livro só “pode ser lido por uma...” não está aqui contido qualquer espécie de preconceito. É claro que não existe um público apto para ler especificamente Clarice, João Cabral, Machado ou qualquer outro escritor. A diferença que estabeleço é de que há algumas especificidades concretas exigidas para esta leitura da obra que certamente a massa destituída de voz não consegue alcançar, pois – parafraseando Bourdieu – não tem a apropriação dos instrumentos de capital simbólico ou está fora deste determinado campo científico. Ou ainda em outras palavras, os representantes da massa não podem ser seus próprios críticos, pois não alcançam os códigos do campo literário. E isso nada tem a ver com a sensibilidade de cada leitor em relação a uma obra ou autor.
Ver BOURDIEU, P. “A produção e a reprodução da língua legítima” in A Economia das Trocas Lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996 e “O campo científico” in A Economia das Trocas Simbólicas.

[4] “I e II Livro dos Macabeus” in Bíblia Sagrada. Ed. Paulinas. p.1110-74.

[5] Machado de Assis. “A Cartomante” in Contos. Ed. Ática.

sexta-feira, agosto 24, 2007

imagens que se colam ao peito (24)

sem título, serigrafia, Noronha da Costa

Nunca percebi muito bem a minha relação com a pintura de Noronha da Costa, é como se ela existisse em mim antes mesmo dos meus olhos terem entrado em contacto com ela. Teria eu quinze ou dezasseis anos quando vi um quadro seu pela primeira vez, numa galeria em frente ao Itaipu na Rua da Galeria de Paris. Foi um encontro estranho e que me provocou medo... lembro-me de ter sentido um nervosismo idêntico ao que sentimos quando um amigo numa conversa informal descobre algo da nossa intimidade que queríamos muito esconder; o mesmo tipo de desconforto que se manifesta quando tentamos a todo custo esconder a nossa ansiedade e a primeira pessoa que encontramos pela frente nos diz 'que se passa contigo? pareces tenso...'. O que senti nesse dia e se repete sempre que olho um trabalho de Noronha da Costa é uma espécie de invasão da minha intimidade, como se o pintor adivinhasse o meu modo de olhar o mundo, como se ele soubesse que eu tendo a colocar entre os meus olhos e o que vejo o mesmo véu enevoado, desfocado, a mesma atmosfera densa e lúgubre que esconde e despersonaliza os sujeitos retratados nas pinturas. Ou então o processo contrário, que para mim ainda é mais assustador, ser do conhecimento dele que esse sujeito sou eu e então mostrar-me, pintar-me tal como eu me mostro e me pinto perante os outros, como um vulto, uma sombra, uma forma por detrás de uma camada de vapor espessa que me despersonaliza e desmaterializa na atmosfera e que transforma a minha identidade concreta, o meu 'eu' em apenas 'alguém'.

Viver

À medida que os anos vão passando, penso no que fica para trás como um lugar de paisagens difusas. Mas reparo também nos desleixos, na forma muito natural como fui perdendo o interesse por uma série de “coisas”. Só para dar alguns exemplos mais óbvios, verifico que praticamente deixei de comprar CDs, jornais não leio e já quase não vou ao cinema. Teatro nem se fala e exposições só muito, mesmo muito, de vez em quando, levado pelo acaso e sem qualquer intenção. Concertos? Só os do trabalho e alguns com um s no lugar do c da segunda sílaba. Concluo que a minha vida é uma sucessão de abandonos, e que cada vez gosto mais de viver.

terça-feira, agosto 21, 2007

nota do dia (19)

agosto costuma ser tranquilo. tudo pára, a cidade fica vazia. mas tal como o tempo, o meu agosto parece trocado - as férias dos outros costumam fazer crescer a acalmia, este ano fazem crescer pilhas de papéis no estirador.

quinta-feira, agosto 09, 2007

O diário de G.H (9)

Lázaro. Foi esta a palavra que ela grafou em alto relevo sobre minha pele, como o arranhão de uma fera. O nome queimava na minha superfície,e ra um braseiro vivo, um vulcão cuspindo lavas. Não importava o que ou o quanto fizesse, nada aplacaria a ardência.
Foi então que os sonhos começaram a visitar-me todas as noites, assiduamente. Eles contavam-me sobre ela de maneira enigmática e fragmentada. Era um jogo, um puzzle.
Depois os sonhos cessaram e a ardência cedeu, a pele cicatrizou e de repente uma nova descamação. A pele ressequida foi saindo e mais uma vez surgiram os olhos súplices. Eles revelaram o segredo da palavra.
Disse-me que vivia em mim já a algum tempo. Seu embrião, latente, esperava pelo momento certo de fazer-se presente. E exatamente no seu aniversário de um ano, ela abriu os olhos pela primeira vez, esticou pernas e braços procurando ajustar-se à minha forma.
Como Lázaro, ela ressuscitou.
A quantos fora dada uma segunda chance? Uma nova vida? Nascer e nascer?
Esqueceram apenas de me perguntar se eu queria, se eu estava disposta a ter dois corações a bater e, conseqüentemente, a se dilacerarem.

segunda-feira, agosto 06, 2007

nota do dia (18)

ontem foi um dia perfeito.