sexta-feira, setembro 07, 2007

confessionário (48)

Minha Lu,

aproveito a graça de uma tarde menos agitada para desenvolver contigo um assunto que tem criado um enorme zum zum nos blogues que leio habitualmente, refiro-me à famigerada corrente dos ‘10 livros que não mudaram as nossas vidas’ iniciada pelo Manuel A. Domingos. Bem sei que o tema se desvia do carácter intimista que atribuímos a esta série, mas tu terás, por certo, a mesma necessidade do que eu de dissecar o imbróglio.

Muita coisa tem sido escrita sobre a dita lista; já lhe chamaram passatempo de ociosos, já perguntaram se um livro possui realmente a capacidade de mudar a vida de alguém, já se publicaram dezenas de listas e respectivas reacções mais ou menos indignadas consoante o maior ou menor grau de belisco às obras tidas como consensuais pelo ‘cânone’, palavra que me custa imenso utilizar. Enfim, não sei se tiveste oportunidade de passear pela blogosfera lusa ultimamente, se o fizeste verás que o que escrevi é apenas um resumo desajeitado de tudo o que foi dito, face à quantidade de opiniões que têm sido divulgadas.

Quando elaborei a minha lista houve dois critérios que estabeleci como primordiais: o primeiro mencionei-o na pequena introdução que fiz e incidia na relação dos livros com a memória; o segundo não foi mais do que uma resposta objectiva à pergunta independentemente daquilo que ainda guardasse da leitura. Por exemplo, a escolha de ‘A Jangada de Pedra’ do Saramago ou de ‘Austerlitz’ de Sebald respondem inteiramente a este segundo critério – são livros que apesar de presentes na minha memória, pura e simplesmente não mudaram a minha vida, ainda que possa achar muito interessante o ensaio de Saramago sobre a ideia de uma Ibéria mais próxima de uma sensibilidade afro-americana do que europeia e de ter criado empatia com o personagem de Sebald cujas incongruências da memória o levam Europa fora à procura de um passado e de uma identidade. Há mesmo em ‘Austerlitz’ algumas passagens que nunca me saíram da cabeça, uma delas é a descrição minuciosa que Sebald (neste caso Austerlitz) faz da nova Biblioteca Nacional de França do Dominique Peurrault, lembro-me de estar na cama e de ter tido um hilariante ataque de riso enquanto lia essas páginas, nenhum crítico de arquitectura o teria feito melhor. O prazer da leitura não é suficiente para que um livro nos mude a vida, para que tal aconteça é necessário que o livro se imiscua no nosso pensamento e se torne uma parte de nós. Isso não me aconteceu com esses dois livros. É preciso que um livro nos proporcione mais do que prazer para que nos transforme a vida. Para aligeirar a coisa, e porque quero desde já dizer-te que faço esta análise do ponto de vista do leitor comum (até porque não tenho conhecimentos académicos para discutir o assunto cientificamente) proponho uma analogia meio despropositada mas que resume num ápice o que estou para aqui a dizer: tive imenso prazer a ver o ‘Shreek’, sim, o filme de animação, mas em nada mudou a minha vida ou a minha forma de pensar a vida, o mesmo não poderei dizer de filmes como ‘Elephant Man’ ou ‘Schindler’s List’ que me fazem reflectir continuamente sobre o que é realmente ser humano, o que é esta treta de ser um homem. Que fique bem claro que não estou a meter o ‘Shreek’ e ‘Austerlitz’ no mesmo saco, não vá a coisa começar a descambar…

Mas continuando com a minha lista e falando agora dos livros que não me deixaram marcas na memória e que constituem a grande parte dos títulos que escolhi. Por exemplo, se me pedisses para te falar sucintamente sobre ‘Nenhum Olhar’ do José Luís Peixoto, de ‘Quartéis de Inverno’ do Osvaldo Soriano, de ‘A Princesa’ do D.H. Lawrence ou de ‘Olhos Azuis, Cabelos Pretos’ da Marguerite Duras, eu, pura e simplesmente, seria incapaz de o fazer. A minha memória apagou-os completamente, ou quase completamente, eu próprio me questiono se realmente os li. O certo é que o fiz e a prova está em algumas linhas sublinhadas com que me deparo ao folheá-los. Fazendo um esforço para te poder dizer algo sobre esses livros, a minha memória não me diz mais do que isto: o livro do Peixoto tem uns personagens insólitos que me fizeram lembrar o Gabriel Garcia Marquez; ‘Quartéis de Inverno’ passa-se durante o período da ditadura militar na Argentina, de ‘A Princesa’ não ficou absolutamente nada e de ‘Olhos azuis, cabelos pretos’ da Duras guardo uma única imagem, uma imagem bela por sinal, mas que não consigo fixar ou relacionar com a acção do romance… é a imagem de um quarto virado para o mar, varrido pela luz de poente, quente e suave, cujos raios quase paralelos à terra acariciam dois corpos que se estendem nus num lençol branco… e há uma janela aberta, uma janela que permite esse cenário, uma janela alta e vertical de caixilho branco em madeira como algumas que encontramos nas casas de estilo colonial no Mindelo ou em Salvador. A imagem que guardo na minha cabeça é tão bela que hesitei em colocar o livro na lista, mas na altura voltei a fazer a pergunta, será que este instante de beleza mudou a minha vida? Não, não mudou, deu-lhe cor unicamente.

Não queria terminar esta conversa sem mencionar os restantes títulos. O que os une? O facto de serem os únicos livros que nunca consegui terminar até hoje; dois por puro aborrecimento (‘A Sibila’ e ‘O Vermelho e o Negro’) e o outro que, por incapacidade minha, falta de inteligência ou de sensibilidade ou de sei lá bem o quê, nunca consegui entrar realmente na lógica por muito que tenha tentado e esforçado, a saber ‘O Inominável’ do Beckett. Ao contrário de todos os outros e furtando-me ao critério que usaste para elaborar a tua lista (os livros que não tens vontade de reler), ‘O Inominável’ de Beckett é um livro ao qual pretendo regressar, acho que houve ali uma incompatibilidade qualquer que ficou por resolver e duvido que tenha sido uma resistência minha, a ver vamos…

Tenciono continuar este diálogo, escrevendo-te sobre os outros livros, os que me acompanham diariamente, explicando-te em que medida mudando-me, eles acabaram por mudar a minha vida.

O teu,

Vítor.

1 comentário:

Luciana Melo disse...

Meu Vítor querido... quantas saudades senti desse nosso diálogo! Puxa! Vou responder-te melhor num post que pretendo elaborar, para te dizer de mim, das minhas mudanças, progressos e das impressões que tudo isso provoca em mim.
Sabes que não precisas te justificar comigo, embora quisesse mesmo saber o que estava por trás de cada escolha tua.
Beijos imensos.