Meu querido Vítor,
Esse confessionário talvez fique um bocado confuso, sabe? É que antevejo o festival de fragmentos que vou esboçar para ti, sem, contudo, concluí-los por completo.
Quero começar dizendo que eu amei, simplesmente amei ser despertada por um telefonema teu. Quase pude tocar-te novamente num afetuoso abraço, como aquele abraço que guardo com tanto carinho no dia em que dissemos “até breve”, diante do Hotel.
A sensação fez-me lembrar – e com isso não quero reduzir o assunto, porque ele é demais complexo – que sentimos solidão quando nos isolamos da vida, forçada ou circunstancialmente, mas basta que estabeleçamos os laços para que o mal-estar de ser/estar só evapore. Continuo acreditando que o afeto nos salva de nós mesmos.
Quero que saibas que me sinto mais fortalecida, serena com o restabelecimento da minha sintonia. Lembras das bonequinhas russas, aquelas que foram tema de uma das correspondências entre A. e V., meu querido? Sinto que estou quase chegando à primeira boneca, à minha gênese. É só o primeiro passo, mas tem sido como tocar “os frutos rubros e selvagens” da minha existência. Espero que tudo isso faça um pouco de sentido para ti, porque para mim tem feito uma grande diferença.
Sobre silêncios... não, não ando passeando pela blogosfera, nem lusa nem brasileira. Ando um pouco farta de tudo isso... não sei te explicar, mas é sintomático que preciso de um tempo, de umas férias desse mundo, talvez por isso ando tão pouco presente.. Tenho avaliado a continuidade do Glossolalias e do Sincronicidade, sobre a relevância do que escrevo, penso, reflito... outro dia, eu reli um post teu sobre a importância desse nosso espaço a despeito de tudo que se espera de um blogue: visitas, participação, interação, interesse ou falta de...
Ambos são espaços muito distintos. Um representa uma possibilidade de ser ouvida, de ter e dar voz a uma persona pouco conhecida até pelos que convivem comigo; o outro representa a beleza de uma amizade, a concretização de uma confiança que eu pensava não ter mais lugar no nosso mundo apressado e plastificado. Estou te falando tudo isso para saber o que vai dentro de mim.
Ultimamente só ligo o computador para ver e-mails e fazer minhas pesquisas, nada mais.
Estou há dias para escrever sobre o Drummond, sobre a saudade que sinto desse poeta, da forma simples e direta que tinha de dizer as “verdades” da alma. Há 20 anos perdemos Drummond e era sobre isso que queria falar, mas não consigo verbalizar. Não queria publicar nada “acadêmico”, cheio de maneirismos, queria que fosse tal qual ele uma vez o disse: “um dia cometi a empáfia de dizer: mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração”.
Também tive vontade de escrever sobre a Feira do Livro de Brasília. Quer dizer, o desastre que foi a abertura, a maneira amadora e desrespeitosa com que a organização tratou o público e o convidado homenageado Ariano Suassuna. Do barraco que fiz, das reclamações e da cara daquela gente apática e imbecilizada de aceitar ser tratada como lixo. E do absurdo maior que era ler em seus rostos a perturbação, o distúrbio que eu e mais algumas poucas pessoas indignadas estávamos causando.
Eu fiquei cansada só de pensar em argumentar que reclamar era nosso direito, mas aqui, quem exerce seus direitos é visto como chato e encrenqueiro. E eu, meu Vítor, não quero convencer ninguém de nada. Quer ser gado? Boa sorte! Mas não me peçam para juntar-me à manada.
Luciano Pavarotti. Sinto, lamento profundamente pela sua morte. Apesar da “crítica especializada” achar uma ofensa a popularização da ópera, um desperdício de tempo oferecer à gentalha o espetáculo destinado aos eruditos, eu adorava ver aqueles mega-eventos que ele proporcionava. Os “intelectuais” ainda acreditam que a massa não é digna de cultura, pelo menos não a verdadeira cultura ou a verdadeira arte.
Nesse sentido, acho que o texto do Carey – que eu citei naquele paper sobre a Clarice Lispector – extremamente atual, mas isso é conversa longa.
Sobre os livros. Eu não sou lá muito fã de listas, você bem sabe, meu Vítor. Contudo, eu adoro um veneninho, adoro brincar de advogado do diabo e a idéia de remexer no baú de orgulho e vaidade do cânone é uma delícia irrecusável.
Reforço novamente o que disse no meu comentário. Não precisavas te explicar. Não existe muita lógica – não a lógica que a racionalidade nos exige – a respeito do que nos toca ou não a alma. Os afetos estão no campo intuitivo e ponto. Pode ser uma comparação infeliz, mas nós sabemos que existe sexo e existe amor. Quando os dois caminham juntos, putz, é maravilhoso. Penso que o mesmo se dá com os livros. Existe o prazer e existe – vamos chamar – conhecimento. Se ambos vêm no mesmo exemplar, maravilha!
Quando digo que não suporto o Ulisses é porque o acho chato, enfadonho, redundante, cansativo. Antes de concluí-lo (o que eu considero um feito heróico), eu recomecei inúmeras vezes a leitura, e não fluía. E como você, sou incapaz de recordá-lo tamanha exaustão que me provocou. Mas não sou louca de não reconhecer a importância dessa obra para os estudos literários, tanto de crítica quanto de análise. Mas pessoalmente, esse livro é um raro caso que não me proporcionou nem prazer nem conhecimento.
Jorge Amado é considerado um grande escritor. Eu pessoalmente o acho pouco denso e bastante repetitivo. Passei pelos seus livros sem ser tocada, sem sentir mudanças. Sua literatura não alcançou minha memória, não me trouxe identificação ou reconhecimento com seu universo. Acho a Zélia Gattai, sua viúva, muito mais interessante.
O Nelson Rodrigues é outro nome que as pessoas enchem a boca para se referir. A mim, não me causa sequer cócegas. Tem dois textos deles que eu gosto muito. Vestido de Noiva e Toda nudez será castigada, todo o resto eu dispenso completamente. Na minha estante não tem um livro dele ou do Jorge Amado.
Macunaíma é um marco para o movimento modernista no Brasil, mas eu simplesmente não concordo com a abordagem do Mário sobre o estereótipo do brasileiro. Aquilo me incomoda. Diferente do Nelson Rodrigues e do Jorge Amado, essa obra permite um ótimo diálogo, um grande exercício de interpretação, mas não mudou minha vida, não me acrescentou em nada.
A casa dos budas ditosos, do João Ubaldo Ribeiro, foi para mim um total desencanto. É um livro encomendado, comercial e que não convence. A editora juntou grandes nomes para escrever sobre os sete pecados capitais. João Ubaldo ficou com a luxúria e meteu os pés pelas mãos. Criou uma personagem feminina que de feminino só tem o nome e o sexo, mas é de um machismo ridículo. Faltou sensibilidade para enxergar nosso olhar sobre a questão. E como entre erotismo e pornografia existe uma separação tênue... o livro é absolutamente tedioso. Na lista de desespero, esse seria o último item que eu usaria para excitar alguém. Mas para quem escreveu Viva o povo brasileiro, esse pecado já foi perdoado.
Querido, já é tarde. Depois continuamos a conversa.
Beijo imenso,
Tua Lu
Esse confessionário talvez fique um bocado confuso, sabe? É que antevejo o festival de fragmentos que vou esboçar para ti, sem, contudo, concluí-los por completo.
Quero começar dizendo que eu amei, simplesmente amei ser despertada por um telefonema teu. Quase pude tocar-te novamente num afetuoso abraço, como aquele abraço que guardo com tanto carinho no dia em que dissemos “até breve”, diante do Hotel.
A sensação fez-me lembrar – e com isso não quero reduzir o assunto, porque ele é demais complexo – que sentimos solidão quando nos isolamos da vida, forçada ou circunstancialmente, mas basta que estabeleçamos os laços para que o mal-estar de ser/estar só evapore. Continuo acreditando que o afeto nos salva de nós mesmos.
Quero que saibas que me sinto mais fortalecida, serena com o restabelecimento da minha sintonia. Lembras das bonequinhas russas, aquelas que foram tema de uma das correspondências entre A. e V., meu querido? Sinto que estou quase chegando à primeira boneca, à minha gênese. É só o primeiro passo, mas tem sido como tocar “os frutos rubros e selvagens” da minha existência. Espero que tudo isso faça um pouco de sentido para ti, porque para mim tem feito uma grande diferença.
Sobre silêncios... não, não ando passeando pela blogosfera, nem lusa nem brasileira. Ando um pouco farta de tudo isso... não sei te explicar, mas é sintomático que preciso de um tempo, de umas férias desse mundo, talvez por isso ando tão pouco presente.. Tenho avaliado a continuidade do Glossolalias e do Sincronicidade, sobre a relevância do que escrevo, penso, reflito... outro dia, eu reli um post teu sobre a importância desse nosso espaço a despeito de tudo que se espera de um blogue: visitas, participação, interação, interesse ou falta de...
Ambos são espaços muito distintos. Um representa uma possibilidade de ser ouvida, de ter e dar voz a uma persona pouco conhecida até pelos que convivem comigo; o outro representa a beleza de uma amizade, a concretização de uma confiança que eu pensava não ter mais lugar no nosso mundo apressado e plastificado. Estou te falando tudo isso para saber o que vai dentro de mim.
Ultimamente só ligo o computador para ver e-mails e fazer minhas pesquisas, nada mais.
Estou há dias para escrever sobre o Drummond, sobre a saudade que sinto desse poeta, da forma simples e direta que tinha de dizer as “verdades” da alma. Há 20 anos perdemos Drummond e era sobre isso que queria falar, mas não consigo verbalizar. Não queria publicar nada “acadêmico”, cheio de maneirismos, queria que fosse tal qual ele uma vez o disse: “um dia cometi a empáfia de dizer: mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração”.
Também tive vontade de escrever sobre a Feira do Livro de Brasília. Quer dizer, o desastre que foi a abertura, a maneira amadora e desrespeitosa com que a organização tratou o público e o convidado homenageado Ariano Suassuna. Do barraco que fiz, das reclamações e da cara daquela gente apática e imbecilizada de aceitar ser tratada como lixo. E do absurdo maior que era ler em seus rostos a perturbação, o distúrbio que eu e mais algumas poucas pessoas indignadas estávamos causando.
Eu fiquei cansada só de pensar em argumentar que reclamar era nosso direito, mas aqui, quem exerce seus direitos é visto como chato e encrenqueiro. E eu, meu Vítor, não quero convencer ninguém de nada. Quer ser gado? Boa sorte! Mas não me peçam para juntar-me à manada.
Luciano Pavarotti. Sinto, lamento profundamente pela sua morte. Apesar da “crítica especializada” achar uma ofensa a popularização da ópera, um desperdício de tempo oferecer à gentalha o espetáculo destinado aos eruditos, eu adorava ver aqueles mega-eventos que ele proporcionava. Os “intelectuais” ainda acreditam que a massa não é digna de cultura, pelo menos não a verdadeira cultura ou a verdadeira arte.
Nesse sentido, acho que o texto do Carey – que eu citei naquele paper sobre a Clarice Lispector – extremamente atual, mas isso é conversa longa.
Sobre os livros. Eu não sou lá muito fã de listas, você bem sabe, meu Vítor. Contudo, eu adoro um veneninho, adoro brincar de advogado do diabo e a idéia de remexer no baú de orgulho e vaidade do cânone é uma delícia irrecusável.
Reforço novamente o que disse no meu comentário. Não precisavas te explicar. Não existe muita lógica – não a lógica que a racionalidade nos exige – a respeito do que nos toca ou não a alma. Os afetos estão no campo intuitivo e ponto. Pode ser uma comparação infeliz, mas nós sabemos que existe sexo e existe amor. Quando os dois caminham juntos, putz, é maravilhoso. Penso que o mesmo se dá com os livros. Existe o prazer e existe – vamos chamar – conhecimento. Se ambos vêm no mesmo exemplar, maravilha!
Quando digo que não suporto o Ulisses é porque o acho chato, enfadonho, redundante, cansativo. Antes de concluí-lo (o que eu considero um feito heróico), eu recomecei inúmeras vezes a leitura, e não fluía. E como você, sou incapaz de recordá-lo tamanha exaustão que me provocou. Mas não sou louca de não reconhecer a importância dessa obra para os estudos literários, tanto de crítica quanto de análise. Mas pessoalmente, esse livro é um raro caso que não me proporcionou nem prazer nem conhecimento.
Jorge Amado é considerado um grande escritor. Eu pessoalmente o acho pouco denso e bastante repetitivo. Passei pelos seus livros sem ser tocada, sem sentir mudanças. Sua literatura não alcançou minha memória, não me trouxe identificação ou reconhecimento com seu universo. Acho a Zélia Gattai, sua viúva, muito mais interessante.
O Nelson Rodrigues é outro nome que as pessoas enchem a boca para se referir. A mim, não me causa sequer cócegas. Tem dois textos deles que eu gosto muito. Vestido de Noiva e Toda nudez será castigada, todo o resto eu dispenso completamente. Na minha estante não tem um livro dele ou do Jorge Amado.
Macunaíma é um marco para o movimento modernista no Brasil, mas eu simplesmente não concordo com a abordagem do Mário sobre o estereótipo do brasileiro. Aquilo me incomoda. Diferente do Nelson Rodrigues e do Jorge Amado, essa obra permite um ótimo diálogo, um grande exercício de interpretação, mas não mudou minha vida, não me acrescentou em nada.
A casa dos budas ditosos, do João Ubaldo Ribeiro, foi para mim um total desencanto. É um livro encomendado, comercial e que não convence. A editora juntou grandes nomes para escrever sobre os sete pecados capitais. João Ubaldo ficou com a luxúria e meteu os pés pelas mãos. Criou uma personagem feminina que de feminino só tem o nome e o sexo, mas é de um machismo ridículo. Faltou sensibilidade para enxergar nosso olhar sobre a questão. E como entre erotismo e pornografia existe uma separação tênue... o livro é absolutamente tedioso. Na lista de desespero, esse seria o último item que eu usaria para excitar alguém. Mas para quem escreveu Viva o povo brasileiro, esse pecado já foi perdoado.
Querido, já é tarde. Depois continuamos a conversa.
Beijo imenso,
Tua Lu
2 comentários:
minha querida tenciono responder-te o mais cedo possível
um beijo grande
Caríssima Luciana,
Grata pelo pouso lá em Ânkoras & Asas. E, se ainda estás em Floripa, te convido a conhecer meu trabalho e atelier. SE quiseres, escreva e combinamos. Abraços alados.
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