Meu querido amigo,
Assim que terminei de ler teu último confessionário, desliguei o computador, coloquei uma música (A paixão segundo S. Mateus. Bach tem o mágico dom de estimular a minha esperança.) e pus-me a pensar em ti, em mim, na vida, na condição humana... sempre aproveito esses momentos para revisitar meus valores, minhas memórias e experiências.
Eu gostaria de começar nosso diálogo com a reflexão de uma intelectual que eu admiro muitíssimo, Vítor. Trata-se de Hannah Arendt. As origens do totalitarismo é um daqueles livros que colaborou para a liberdade do meu espírito; foi a experiência mais pungente que tive em relação a nossa condição de solidão. Diz ela:
“Solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas. À parte algumas observações ocasionais [...] parece que foi Epicteto, o filósofo escravo-forro de origem grega, o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia. De certa forma, a sua descoberta foi acidental, uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra, mas o ser só (monos) no sentido de ser absolutamente independente. Na opinião de Epicteto (Dissertationes, livro 3, capítulo 12), o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está desacompanhado e, portanto, “pode estar em companhia de si mesmo”, já que os homens têm a capacidade de “falar consigo mesmos”. Em outras palavras, quando estou só, estou “comigo mesmo”, em companhia do meu próprio eu, e sou, portanto, dois-em-um; enquanto, na solidão, sou realmente apenas um, abandonado por todos os outros. A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento [...]. Para a confirmação da minha identidade, dependo inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários é que os “integra” novamente, poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem sempre equívocos, e restabelece-lhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa impermutável”.
Querido, desculpe o longo quote, mas eu o considero absolutamente essencial para o tema dessa confissão. Em resumo, é isso que o sentimento de solidão causa nas nossas entranhas, meu Vítor: gera dúvidas a respeito do ser que somos. E não é a dúvida questionadora, propulsora, mas aquela que descaracteriza nossa pessoa. “O que torna a solidão tão insuportável é a perda do próprio eu”.
Arendt esta falando objetivamente sobre política, sobre a violência dos regimes totalitários, mas, em última instância, ela também está falando da solidão referente à vida humana como um todo.
Nascemos sós. Morreremos sós. Mas a realização humana se dá quando podemos confiar aos outros nossas experiências sensoriais, sociais e afetivas. O mundo já era antes de nós e continuará a ser depois de nós. Somos supérfluos na sucessão das eras, mas nossa individualidade inscreve-nos na História da Humanidade que é uma história feita por homens no plural.
Meu Vítor, somos homos faber muito antes de nos sabermos criadores. Quando tomamos consciência desse papel, entendemos que é inerente à criação uma ausência momentânea da companhia do outro. No entanto, quando voltamos desse trabalho precisamos desse mesmo outro para confirmar nossas idéias.
O que eu quero dizer com tudo isso, meu querido amigo, é que nossa trajetória é realmente solitária, mas nunca isolada. A simples constatação disso mantém minha fé e otimismo e como tu mesmo dizes, mantém a tua também.
Oito meses após a grande tempestade que solapou minhas estruturas, eu começo a ter um pouco de paz, consigo dormir e sonhar colorido novamente, e já acredito que, apesar de tudo, isto foi o melhor que podia me acontecer.
Lembra quando nos encontramos no ano passado, Vítor? Eu estava destruída, não estava, meu querido? Acho que aquele foi o momento de maior solidão da minha vida, mas ainda assim eu pude sorrir e aproveitar tua estadia aqui. Entendes o que digo? A solidão deixou de ser insuportável quando tu confirmastes minha existência através da afetividade e da partilha em comum. Tudo se acomoda, querido. As ondas sempre voltam a arrebentar na praia.
Assim que terminei de ler teu último confessionário, desliguei o computador, coloquei uma música (A paixão segundo S. Mateus. Bach tem o mágico dom de estimular a minha esperança.) e pus-me a pensar em ti, em mim, na vida, na condição humana... sempre aproveito esses momentos para revisitar meus valores, minhas memórias e experiências.
Eu gostaria de começar nosso diálogo com a reflexão de uma intelectual que eu admiro muitíssimo, Vítor. Trata-se de Hannah Arendt. As origens do totalitarismo é um daqueles livros que colaborou para a liberdade do meu espírito; foi a experiência mais pungente que tive em relação a nossa condição de solidão. Diz ela:
“Solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas. À parte algumas observações ocasionais [...] parece que foi Epicteto, o filósofo escravo-forro de origem grega, o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia. De certa forma, a sua descoberta foi acidental, uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra, mas o ser só (monos) no sentido de ser absolutamente independente. Na opinião de Epicteto (Dissertationes, livro 3, capítulo 12), o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os quais não pode estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está desacompanhado e, portanto, “pode estar em companhia de si mesmo”, já que os homens têm a capacidade de “falar consigo mesmos”. Em outras palavras, quando estou só, estou “comigo mesmo”, em companhia do meu próprio eu, e sou, portanto, dois-em-um; enquanto, na solidão, sou realmente apenas um, abandonado por todos os outros. A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento [...]. Para a confirmação da minha identidade, dependo inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários é que os “integra” novamente, poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem sempre equívocos, e restabelece-lhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa impermutável”.
Querido, desculpe o longo quote, mas eu o considero absolutamente essencial para o tema dessa confissão. Em resumo, é isso que o sentimento de solidão causa nas nossas entranhas, meu Vítor: gera dúvidas a respeito do ser que somos. E não é a dúvida questionadora, propulsora, mas aquela que descaracteriza nossa pessoa. “O que torna a solidão tão insuportável é a perda do próprio eu”.
Arendt esta falando objetivamente sobre política, sobre a violência dos regimes totalitários, mas, em última instância, ela também está falando da solidão referente à vida humana como um todo.
Nascemos sós. Morreremos sós. Mas a realização humana se dá quando podemos confiar aos outros nossas experiências sensoriais, sociais e afetivas. O mundo já era antes de nós e continuará a ser depois de nós. Somos supérfluos na sucessão das eras, mas nossa individualidade inscreve-nos na História da Humanidade que é uma história feita por homens no plural.
Meu Vítor, somos homos faber muito antes de nos sabermos criadores. Quando tomamos consciência desse papel, entendemos que é inerente à criação uma ausência momentânea da companhia do outro. No entanto, quando voltamos desse trabalho precisamos desse mesmo outro para confirmar nossas idéias.
O que eu quero dizer com tudo isso, meu querido amigo, é que nossa trajetória é realmente solitária, mas nunca isolada. A simples constatação disso mantém minha fé e otimismo e como tu mesmo dizes, mantém a tua também.
Oito meses após a grande tempestade que solapou minhas estruturas, eu começo a ter um pouco de paz, consigo dormir e sonhar colorido novamente, e já acredito que, apesar de tudo, isto foi o melhor que podia me acontecer.
Lembra quando nos encontramos no ano passado, Vítor? Eu estava destruída, não estava, meu querido? Acho que aquele foi o momento de maior solidão da minha vida, mas ainda assim eu pude sorrir e aproveitar tua estadia aqui. Entendes o que digo? A solidão deixou de ser insuportável quando tu confirmastes minha existência através da afetividade e da partilha em comum. Tudo se acomoda, querido. As ondas sempre voltam a arrebentar na praia.
1 comentário:
...e já o dizia a Virginia Woolf...
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