sexta-feira, dezembro 21, 2007

Lançamento

O senhor das Horas
(Autran Dourado)



UM
O coronel Domingos Monteiro, agora na sala de estar, olhava o grande e trabalhado relógio-armário, que comprara de espólio de João Capistrano Honório Cota. Pensava na fatalidade do destino, na proximidade da morte, no fino e lento escoar das implacáveis areias do tempo, no vagaroso escorrer das fatais ampulhetas, nos cada vez mais precisos instrumentos com os quais os homens, através do tempo e na sua angústia, procuram domesticar as horas, para enterrá-las no sarcófago do tempo. Assim ficou ele detrás das pálpebras semicerradas, pensando no sem-fim do tempo.

Sua filha Lúcia se aproximou dele, dizendo – dormindo, papai? Ele disse não, estava apenas pensando na fatalidade das horas, no sem tempo de Deus. O coronel Domingos Monteiro era o seu tanto retórico. Cogitava no destino, nas horas, nos deuses lutando contra as potências do Mal, disse ele.

Ela abriu o piano e começou a dedilhar uma das noveletten de Schumann, que era a obsessão absurda do pai, afogado no ventre do tempo. Ele só se interessava por aquela peça de Schumann, às outras noveletten era indiferente, apenas as ouvia sem o maior interesse.

Todas as noites uma de suas filhas acompanhava a mãe à reza na Igreja do Carmo. Agora as três filhas e a mulher, Carmela, estavam na sala. O coronel perguntou quem iria aquela noite com a mãe à reza na Igreja do Carmo, nada dela ir sozinha. Ninguém falou nada, apenas Lúcia, rebelde, que acabou dizendo ontem era meu dia de folga, e eu fui. Quando devia ser o meu, disse Mirtes, e começaram a discutir. O coronel disse não importa de quem era, eu escolho para hoje Lúcia, a fim de recomeçar a contagem. Pois eu não vou, disse ela. Como não vai?!, disse o coronel enraivecido. Mas se quer assim, que assim seja. Em compensação não vai comer à nossa mesa durante cinco dias, mas na cozinha, com os empregados, que é para você aprender a obedecer às minhas decisões. Lúcia, a predileta do pai, olhou espantada para ele. Não esperava jamais aquela reação dele.

Ele não era como um daqueles coronéis do interior, grossos, incultos e mandões. Um homem fino, de boa leitura, fez seus versos, estudou em São Paulo, não chegando a concluir o curso de direito, ficou no terceiro ano porque, filho único, com a morte do pai, foi chamado pela mãe para tomar conta da fazenda e do armazém de beneficiar café. Na faculdade, sem interessava mais pelas letras do que pelas leis. Freqüentava as roas literárias, chegou mesmo a publicar uns poucos versos dos muitos que tinha escrito. A idéia de voltar para Duas Pontes, com o seu ambiente acanhado, não lhe agradava. Duas Pontes era só para as férias, quando freqüentava poucos os letrados da cidade.

Ele meteu o chapéu na cabeça e foi para o armazém. Por lá costumavam passar os seus amigos mais chegados. Conversavam vagos assuntos, mais para enrolar o tempo, jogar conversa fora.
Pouco antes da hora de fechar o armazém, o filho Abel disse vamos embora, papai, está na hora de encerrar o expediente. O velho não disse nada, apanhou o chapéu e foi para casa.

Ele chegou em casa, foi lá dentro falar com a mulher, depois dirigiu-se à sala de estar, se sentando na sua poltrona habitual. Aí ouviu os primeiros acordes de uma das noveletten de Schumann, que o emocionava e prendia, era o absurdo. Daí a pouco veio Mafalda, depois Mirtes, e começaram a conversar sobre coisas do dia-a-dia. Papai, o Juvêncio, filho de seu Gaudêncio, está querendo freqüentar a nossa casa, para namorar, o senhor concorda?, disse Mafalda. Não faço a menor objeção, tenho até muito prazer, o Gaudêncio é boa gente, meu amigo, disse o coronel.

Os acordes da música cessaram, dona Carmela disse a si mesma é mais uma das muitas esquisitices do senhor meu marido. Não faço nenhuma oposição, disse ele. Se é filho do Gaudêncio, tenho até gosto, e pensou a menina está carecendo mesmo é de casar, tem trinta anos. Lúcia se levantou da banqueta, foi-se embora. Ele ficou, os olhos semicerrados, gozando a fresca da tarde. Acabou por adormecer, teve um sonho horroroso, era mais um pesadelo. E o tempo, travestido em gente, mordia-lhe um dos braços e lambia o sangue que escorria da sua boca.

Ele sentia uma dor terrível. Mesmo assim, apesar dos rugidos do tempo, se esforçava para acordar, não conseguia. O coronel não acreditava muito no Deus distante. Mesmo assim, tentava se lembrar das palavras das orações que uma preta velha lhe ensinara, ele menino. Não conseguia, misturava agora as palavras. "Ave Maria, cheia de graça, rogai por nós", "que estais no Céu, santificado seja o vosso nome", "por que me abandonaste, Senhor?" "Se sabias que eu não era Deus?" Não, isso não é oração, é poesia, se disse ele. O que peço, Senhor, é muito pouco – apenas acordar. Mas me livrai dos dentes do tempo, da sua boca sanguinolenta. Acordei, gritou. Agradeço-vos, Senhor, por ter atendido à minha prece. Cansado, suspirava ofegante. Por que aquela obsessão com o tempo? Por quê, Senhor, a fixação, naqueles terríveis pesadelos? Lhe devo alguma coisa além dos meus muitos pecados? Desde menino sou assim, os meus absurdos pesadelos. Só que os meus pesadelos eram outros, não tinham a voracidade do terrível Tempo. Para ele a consciência do tempo, apesar da sua pouca idade, ainda não existia. Só apareceria mais tarde, com o branco dos seus cabelos. No espelho do quarto é que via a sua idade.

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