terça-feira, julho 29, 2008

As matriarcas (10)

A cidade inteira quedou-se paralisada, muda, ao se deparar com tia Margarida “seminua”, valsando ao som das gotas espessas de chuva que estouravam no chão do quintal.
Somente as crianças – que não compreendiam bem o que de fato acontecia – romperam o silêncio daqueles rostos estáticos, quando resolveram se juntar ao bailado de tia Margarida. Aproveitaram seu desvario como desculpa para tomar banho de chuva, fazer algazarra e brincar de ciranda em torno de uma tia Margarida em êxtase.
Ninguém as impediu. Creio mesmo que nem notaram a presença delas, tamanha estupefação. Pareciam hipnotizados, em transe coletivo, num misto de horror e incredulidade diante da cena. Nenhum suspiro, nenhum “oh!” nem menear de cabeças. O único gesto (mecânico) que notei foi o de Pe. Miguel se benzendo com o sinal da cruz como se testemunhasse uma possessão, mas minha memória me dizia que a interpretação da criança que fui era outra. Naquele dia achei que Pe. Miguel abençoava tia Margarida, livrando-a de toda mácula, pecado ou doença, tal como Jesus fizera com Maria Madalena. Pensei que ali, naquele momento, ao ver tia Margarida rodopiar e sorrir, presenciara um milagre.
Eu mal sabia que era o começo do fim.
Tia Margarida deu um berro e desmaiou. Corri em sua direção ao mesmo tempo em que procurei mamãe com os olhos, mas ela amparava nos braços uma vovó Totonha desfalecida.

1 comentário:

Vítor Leal Barros disse...

não há fim neste pedaço de conto... a liberdade é insólita e inconsequente