segunda-feira, dezembro 11, 2006

Saudades de Clarice Lispector

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Em 1995, Caio Fernando Abreu, então colunista d’O Estado de São Paulo, publicou esse texto lindo, cuja autoria é atribuída à Clarice Lispector.
Para os que já me conhecem um pouco, fica claro que eu sou uma apaixonada por romances epistolares e que devoto imenso carinho às missivas. Sim, as cartas que costumávamos escrever antes da existência do papel virtual. Gosto de manuscritos porque não é só a escrita que fica retida, mas também a digital, o perfume, a pessoa.
Para relembrar os 29 anos de morte da inestimável Clarice Lispector, escolhi essa carta, então.

Berna, 2 de janeiro de 1947

Querida, Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma. Tua Clarice

4 comentários:

Marcos Pontes disse...

Sendo relmente dela, é a comprovação que era magnífica além das páginas dos livros.
Não sabia que você tinha um segundo blog...

Vítor Leal Barros disse...

tenho andado afastado, eu sei... mas estes dias têm sido muito cheios, têm trazido com eles um turbilhão de acontecimentos e emoções que ainda não tiveram tempo de sedimentar e contar, ao certo, o que tem acontecido...

o coração brilha sempre que o teu nome se constrói na minha cabeça, e o nosso reencontro está para breve. ainda hoje, e espero cumprir o que te vou dizer, terei um confessionário para te oferecer.

um beijo enorme...

clarice para além de uma mulher fantástica e bela, tinha dentro de si uma alma de mago, em breve perceberás o que quero dizer com isto.

Lu disse...

Puxa, Marcos! Que delícia de surpresa receber-te aqui!
Pois é, uma casa luso-brasileira, com certeza! hahaha
Nunca li nada que atestasse a autoria da Clarice, mas conhecendo um pouquinho, bem pouquinho mesmo de sua correspondência com outras pessoas, a gente vê a mão da Clarice pesando sobre o papel.
Beijão

Ah, meu Vítor. Não sabes como estou ansiosa pelo nosso reencontro. Já tenho pensado o que fazer, onde levar-te, todas as coisas que tenho a dizer-te.
Quanto ao resto, deixa disto. Há tempo para tudo e agora é teu tempo de hibernar. Enjoy it!
Saudades.

Lu disse...

Quase esqueço: já estou salivando com a promessa de um confessionário todo meu e, claro, uma boa pitada de magia.
"No creo en las brujas pero que las hay, las hay"
Outro beijo