terça-feira, agosto 22, 2006

Confessionário (27)

Meu querido, a fotografia que me ofereceste virou tela de proteção do meu computador.
Olha como são as coisas, a vida, Vítor. Minha mãe olhou a foto e perguntou-me: “é você, Lu? Não lembrava dessa foto!”. Eu respondi: “é claro que não lembrava. Não sou eu.” Ela chegou mais perto para acreditar. Não sei explicar, mas de alguma forma, da nossa forma silenciosa, você captou-me. Não é só aparência porque nem sei se pareço com a moça da foto, mas o abraço, ah, o abraço, as mãos, aquela expressão no rosto... sim, essa sou eu.
É a primeira vez que tenho vontade de escrever desde que tudo começou a desmoronar e eu estou profundamente emocionada com esse desejo, querido... é como se eu recuperasse a capacidade de sentir.
Sabe o que tem sido mais difícil nesses dias cinzas, Vítor? Olhar-me no espelho. E então eu entendo o motivo pelo qual não conseguia mais escrever o diário de G.H., apesar de ter tanto a dizer. Tudo que eu criei para esse universo ficcional transcende, Vítor! V. e A., a mulher simétrica... eu não sei explicar, mas tudo isso é mais do que criação, existe um componente quase sobrenatural. V. anuncia-me coisas, antecipa-me a vida e eu não sei lidar com isso.
A vida tem-me surpreendido de muitas formas, meu amigo.
Desconheço quase tudo e todos. QUASE é uma palavra doida.
Tenho descoberto a vida numa pluralidade intensa e tanta luz, às vezes, cega. Nesses últimos meses eu morri muitas vezes e de muitas maneiras, Vítor. A morte sempre foi um assunto que me interessou porque é a contracapa da vida. Ambas têm tantos mistérios insondáveis...
Lembrei-me de Heráclito. Sabe a história de uma pessoa não atravessar o mesmo rio duas vezes? Na segunda vez tanto o rio quanto a pessoa são outros?
Atravessei novamente o rio, Vítor, e definitivamente não sou a mesma, querido. Ter passado pela experiência, pela possibilidade concreta de não mais me ver refletida no espelho foi algo avassalador.
Hoje, eu sei quem faz falta e quem não faz e isso também é um processo doloroso porque requer um tipo diferente de luto.
No filme da minha vida tão ordinária, eu senti o abraço que nunca te dei, dei à luz à filha eu nunca tive, vislumbrei a lua alta e a taça de vinho a quatro que tantas vezes planejamos, afaguei os cabelos brancos que nunca verei envelhecer, protegi minha mãe, como se fosse minha filha, da violência que não sou capaz de deter, enfim, enterrei meus mortos.
Ainda não sei o que tudo isso significa, Vítor... estou confusa e tenho tanto medo, mas sei, eu acredito, nada é em vão, meu amigo. Não existe coincidência, Deus não joga dados e esse livro está longe da última página.
A despeito de tudo, ESTOU VIVA.

Sem comentários: