«Os hipócritas desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam. [...] Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que o teu jejum não seja conhecido dos homens, mas de teu pai que está ao corrente do segredo...» (Mt., 6, 16-17).
Não estará talvez aqui o imenso e incessante convite à íntima libertação que é o esquecimento total de si, de um ego magnetizado pelos espelhos invertidos da psicologia e do social, despojamento do que engana e faz tropeçar o espírito para adquirir o pé ligeiro, o ritmo feliz, o dispensador de felicidade dos santos? Fora com as roupas, para o chão, no solo do episcopado, o amor perfeito exige plena soltura dos laços do calculável e do aparente, do passional e do aprovado, e é nem mais nem menos este o último sentido do dar o que se tem aos pobres, renegar-se a si próprio, pegar na cruz e seguir o voo daquele passo, estender a outra face e liquidar as dívidas. A ladainha famosa chamada da humildade, composta há meio século por um altíssimo dignitário da igreja romana («Do desejo de ser estimado... louvado... honrado... consultado... aprovado... do temor de ser desprezado... rejeitado... esquecido... troçado... suspeitado... liberta-me, Jesus»), deveria na realidade chamar-se ladainha da regeneração, da libertação gaudiosa, daquela santa indiferença de que a virtude central da humildade é condição e consequência, semente e fruto completo. Grande e delicada é a sprezzatura de certos mendicantes, em cujos olhos resplandece uma liberdade tão soberana que dar-lhes a oferta mais insignificante é inesperadamente um milagre que se recebe. (págs. 115 e 116)
Os Imperdoáveis (Assírio & Alvim), Cristina Campo
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