terça-feira, janeiro 30, 2007

confessionário (40)

Crimes de la Commune: Le Massacre des dominicains d'Arcueil, le 25mai 1871,
Photomontage destiné à la propagande Versaillaise,
Eugène Appert

Minha querida, no último e-mail que me enviaste, a certa altura dizias que tinha sido uma sorte termo-nos encontrado e que uma amizade sincera poderia nascer e sustentar-se através de um meio cada vez mais perigoso onde o indivíduo real parece ter sido substituído por personagens talhados à medida das conveniências, dos medos, dos anseios e das fobias. Não quero cair no erro de tecer juízos de valor em relação a pessoas que não conheço ou basear a minha opinião em narrativas mais ou menos indignadas que vou lendo em blogues que visito diariamente. O que me preocupa realmente não é o maior ou menor grau de sordidez das novelas blogosféricas mas o que elas determinam como consequência. Entra-se num mundo onde a desconfiança se impõe como a única arma usada em legítima defesa na relação com o outro. Confiar torna-se um risco e confiar mal uma factura com preço demasiado alto a pagar. ‘Don’t trust nobody!’ como dizia o Henrique noutro dia no Insónia parece-me ser a atitude mais sensata a adoptar nos dias que correm. É triste que se entreponha esse ‘don’t trust’ naquilo que nos liga ao outro mas talvez seja a única forma de salvaguardarmos o que ainda resta em nós de integridade, dignidade e amor-próprio.
A Maria João tem levantado muitas questões pertinentes nos textos da série ‘Perguntar Ofende?’. O último questionava o poder das imagens e da sua manipulação. Transcrevo: “A primeira vez que observei as fotografias deste livro, fiquei cheia de medo; porque foi possível apagar pessoas de fotografias, retocando-as manualmente com tinta de forma a que elas continuassem a ter uma certa verosimilhança, com meios rudimentares.”; foi possível perverter a História, reconstruir os factos ainda que momentaneamente, já que as falsificações não conseguiram apagar os crimes que Estaline impregnou na pele daquela gente. Os ditadores soviéticos não foram os únicos a usar o seu poder para reescrever a história. A falsificação de imagens é quase tão antiga como a própria história da fotografia. A primeira fotografia reconhecida é uma imagem de Niépce de 1825. Em 1871, ou seja 46 anos depois, é publicada por Eugène Appert uma série de imagens manipuladas anti-communards intitulada ‘Crimes de la Commune’. A mais célebre dessas imagens retrata o 'massacre' (se é que foi realmente um massacre) levado a cabo pela Comuna contra os dominicanos de Arcueill a 25 de Maio de 1871. A pedido de Thiers, Appert fez multiplicar os elementos da Comuna na imagem e inseriu alguns frades em súplicas mártires de forma a dramatizar a cena e evidenciar o carácter sanguinário dos communards. Todos estes acontecimentos desenvolveram-se numa época em que as técnicas e os instrumentos eram rudimentares e pouco verosímeis. Imaginemos o que não se poderá passar hoje em dia com a capacidade técnica que possuímos.
Ao olharmos essas imagens enchemo-nos do medo que a Maria João falava. No entanto, e apesar da perversidade contida nesses actos, mais perversas e absurdas são as suas consequências sobre todos nós. Ao descobrirmos que essas forjas aconteceram sistematicamente ao longo da História, perceber que apurámos a verdade não é mais do que um presente envenenado: o medo e a incredibilidade de olharmos um documento falsificado transforma-se no medo da repetição, perguntamo-nos se neste momento somos vítimas do mesmo ou se o provaremos num futuro próximo. O medo da estupefacção transforma-se no medo de acreditar, no medo de dar o benefício da dúvida.
Sobrevoando o século XX apercebemo-nos que apesar da indignação e da revolta em relação às vicissitudes dos tempos, os pensadores, artistas e escritores modernos acreditavam na construção de um novo mundo. Apesar dos regimes totalitários, das guerras, da fome, da exploração, havia no que acreditar. Por outras palavras a fé ainda não tinha sido condenada. Após a Segunda Grande Guerra parece que todos os valores ruíram. Havia demasiado lixo debaixo do tapete, tanto que ainda hoje nos sentimos sujos. Nos dias que correm acreditar é um risco: o homem perdeu por completo a capacidade de confiar em si próprio. Não acreditamos nos políticos nem nas religiões, não acreditamos na economia nem no progresso, não acreditamos sequer no nosso vizinho do lado, nem em Deus acreditamos. Vivemos permanentemente sem saber como e no que acreditar. Este é o nosso drama.
Detemos todos demasiado poder, minha amiga, da maior à menor escala. É tão fácil e acessível ao governo dos Estados Unidos da América (ou de outro país qualquer) reescrever a história ao sabor das suas ambições, como é para nós, com exacta facilidade, forjarmos a nossa identidade e fazermos de nós mesmos o personagem que mais nos aprouver. Tudo é demasiado virtual e já ninguém tem fé em absolutamente nada. ‘Don’t trust nobody!’ não te esqueças. Sem ponta de ironia é o melhor conselho que te posso dar, ainda que contra mim fale.
Para finalizar: Lu, tem sido muito gratificante correr o risco de confiar em ti. Tem sido muito gratificante correr o risco de confiar em mais quatro ou cinco pessoas. Alimenta-me a fé… quase moribunda.

3 comentários:

Luciana Melo disse...

Ah, meu Vítor, há tanto para ser dito, mas prefiro deixar para a resposta ao teu confessionário. Mas para adiantar uma sementinha, digo-te, há tanto medo na fé quanto na falta dela. Não confiar é uma boa desculpa para não se comprometer, entendes?
A respeito do que disseste sobre as notícias que leste nos blogues, sei do que fala. Eu vejo muitas opiniões e muita gente tentando ser diplomata, acusando as pessoas de julgamentos. Ora, nós vivemos num mundo onde julgamos o que é melhor ou não para nós. Esse julgar tem o sentido de expressar uma opinião, de avaliar, não o de condenar.
As doenças são passíveis de compreensão, meu Vítor, embora isso não signifique que compreender seja o mesmo que ser conivente com atitudes doentias.
Mas falaremos mais.
Beijo imenso.

frosado disse...

Suas almas quase gémeas!gosto da vossas amizade. Que bom quando encontramos alguém de quem gostar assim, confiadamente!

Sandman of the Endless disse...

Vítor:
De certo modo, a crueza de tuas palavras revela uma ponta de verdade: “Don’t trust nobody!”. A ausência confiança nas relações humanas na sociedade atual não é um problema pontual. Vivemos numa sociedade perplexa pela quase completa falta de valores, de identidade, de ética, de amor, de esperança e de tudo aquilo que nos é tão caro. Alguns rotulariam essa sensação de estupefação diante de tudo, esse non sense, de “crise da modernidade”, ou afirmaria ser uma conseqüência sua. Outros, diriam tratar-se do “paradigma da pós-modernidade”. Que seja então. Infelizmente para nós, somos herdeiros de um modelo falido de sociedade. Um modelo que carrega em si todo o peso e as conseqüências advindos da derrocada do Homem perante si mesmo diante da sociedade pós-industrial do Século IX, do período Entre-Guerras, do Pós-II Guerra, dos ideais libertários de 1968, das ideologias socialistas falidas, da insuficiência do modelo do Welfare State, do 9/11. Penso muito a respeito de tudo isso, portanto sei que vivemos, como nunca ocorreu na História, numa sociedade em plena crise e não sabemos como sair dela, o que nos causa uma indescritível estupefação e horror. Abrimos a Caixa de Pandora, e agora? Como muitos, me sinto perdido, deslocado, vazio, descrente com essa situação. Haverá um futuro?... Penso que não, embora sempre almejemos que algum dia as coisas finalmente melhorem e que o Homem acorde desse pesadelo que ele mesmo construiu. Não passa de uma esperança, eu sei. Esse é apenas um lado da questão que você levantou aqui, Vítor. Um outro fator a ser considerado é o seguinte: com o crescente avanço tecnológico e a massificação dos PC's (a tal de inclusão digital), evoluímos agora para uma novo patamar de relações interpessoais, cuja plataforma é a denominada “realidade virtual”. Isso é irreversível. Faço parte dela, você também, como um número cada vez maior de pessoas no mundo. E nessa nova realidade encontra-se de tudo. Boas relações, más relações, multiplicando exponencialmente tudo aquilo que seria passível de existir no “mundo real”. As possibilidades, meu amigo, são infinitas. Chegamos definitivamente não apenas à Era Digital, mas de modo ainda mais contundente à Era da Sociedade Digital. O que evoluirá a partir daí ninguém sabe, é imprevisível. Diante de tantas possibilidade, nesse contexto o mote “Don’t trust nobody!” passaria a ser uma verdade (desculpe o trocadilho, mas no contexto é inevitável) quase absoluta. Mas nem tudo é lama, Vítor. É possível sim que nesse novo modelo de sociedade em rede sejam constituídas relações puras e verdadeiras. A net não é um mal instrumento, depende apenas do uso que as pessoas lhe dão. Desse modo, sigamos em frente, meu caro.