domingo, fevereiro 04, 2007

sublinhado (52)

«Não, meu filho», disse ele, pondo-me a mão no ombro. «Estou consigo. Mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si.»
Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros, insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer.
Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto. Mas, ao menos, segurava esta verdade, tanto como esta verdade me segurava a mim. Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera uma coisa e fizera outra. E depois? Era como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto... e dessa madrugada em que seria justificado. Nada, nada tinha importância, e eu sabia bem porquê. Também ele sabia porquê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, na sua passagem, tudo o que me propunha nos anos, não mais reais, em que eu vivia. Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que, diziam como ele, serem meus irmãos? Compreendia, compreendia o que eu queria dizer? Toda a gente era privilegiada. Só havia privilegiados. Também os outros seriam um dia condenados. Também ele seria um dia condenado. Que importava se, acusado de um crime, era executado por não ter chorado no enterro da minha mãe? O cão de Salamano valia tanto como a mulher dele. A mulher-autómato era tão culpada como a parisiense com quem Masson se casara, ou como Maria, que queria que eu me casasse com ela. Que importava que Raimundo fosse meu amigo, ao mesmo título que Celeste, que valia mais do que ele? Que importava que Maria oferecesse hoje a sua boca a um novo Meursault? Compreendia, compreendia ele este condenado? E que, do fundo do meu futuro... Quase atabafava, ao gritar estas coisas. Mas já me arrancavam o padre das mãos, já os guardas me ameaçavam. Foi ele, no entanto, quem os acalmou. Olhou-me uns instantes em silêncio. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Voltou-se e foi-se embora.
Sentia-me agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a cama. Julgo que dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um «noivo», porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberta e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução, e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio. (págs. 117 e 118)
O Estrangeiro (Livros do Brasil), Albert Camus

1 comentário:

Luciana Melo disse...

Vítor, relendo esse fragmento de Camus, senti a mesma fúria da primeira vez. Lembro-me da sensação de impotência que tanto "O estrangeiro" quanto "A queda" me causaram. Esse mal-estar de sermos estrangeiros para além da sociedade... somos estrangeiros em nós... não vi Babel, mas tua leitura do livro foi muito feliz e realmente creio que Camus pontecializou teu olhar nas entrelinhas que a crítica não mencionou.