quarta-feira, julho 04, 2007

de génese (1.2.)

e deus notou que havia criado o tempo e que as suas mãos e as suas pernas e os seus braços lhe traziam medidas, sinais do corpo em rotação. e estendeu os cabelos no vazio, atirados como fios dourados numa teia contínua de luz espalhada sobre o silêncio divertindo-se com o acaso e com o número de mãos que lhe cabiam nos braços e o número de braços que lhe cabiam nas pernas. e distraído com a estrutura da criação, deus gozou dias a fio com a descoberta. e puxava e devolvia as horas e aumentava e diminuía os dias experimentando o equilíbrio do quadro que se distanciava do medo. ao vigésimo dia da criação deus caiu. e os braços eram exaustos e as pernas eram adormecidas e as mãos eram calejadas pelo contínuo palmilhar da medida. os cabelos estendidos no silêncio como uma toalha sem brilho, eram no sono como uma toalha sem brilho. deus dormiu então profundamente. e foi que a alma, o último alimento da criação, acordou intranquila e inquieta no interior do olho de deus. já não suportava o cansaço pueril do corpo exausto de deus. magoada rompeu-lhe a pálpebra e partiu. em abandono viajou pelo silêncio e rasgou a toalha dourada tecida pelos cabelos de deus. e foi que sem distância o olhou como se olha uma criança deitada no vazio. quando o vento varreu o cansaço, deus despertou e sentiu o peso insuportável de uma vida por existir. ergueu-se tenebrosamente lambendo a água do olho rompido e cego e ordenou que a poeira cicatrizasse a ferida. lá de longe, do fundo da distância, a alma chorava-lhe a solidão. e foi que deus sentiu que o pó era bom e curava as feridas e abençoou-o.

1 comentário:

Vítor Leal Barros disse...

este texto foi novamente revisto a 10 de julho de 2007...

(parece-me que ao longo desta série as revisões vão acabar por se tornar uma constante...peço desde já desculpa)