Meu querido, não se culpe pela demora. Eu sei que tua resposta sempre chega e quando chega é sempre em boa hora. Entendo perfeitamente quando dizes que escrever-me exige-te muito. Não é diferente do que sinto. Não consigo simplesmente digitar a resposta, porque responder-te, além de fomentar o diálogo rico que temos, é também dar-me algumas respostas.
Queria dizer-te uma coisa, querido. O fato de me compreenderes não te obriga a concordares comigo. Isto é amizade, meu Vítor, saber ouvir e saber dizer. Não queremos nos convencer de nada, queremos o crescimento mútuo e isso não falta em nossa correspondência. Por que digo isto? Porque ficaria imensamente frustrada se ao invés de encontrar ressonância em ti, eu encontrasse a adesão simples e pura. Se sinto-me, neste momento muito particular, na escuridão, não significa que queira que venhas ao meu encontro de modo que nos transformemos em noite. É também responsabilidade tua não ser condescendente, querido. Os amigos têm o direito tanto de nos afagar como o de puxar nossas orelhas. Então, está tudo bem. Não corro o risco de “odiar o que vais me dizer”.
Quando te escrevi aquela nota de rodapé, eu realmente queria comunicar-te um momento de felicidade genuína que senti. Não sinto pesar em substituir o azul celeste pelo rubro-negro. E melhor, não sinto culpa.
Eu demorei tanto, meu Vítor, para entender que as cores fortes, os tons agressivos também fazem parte de mim. A grande descoberta não é que o azul celeste me desagrada. Gritei eureka ao constatar que o vermelho e o negro também são partes de mim. E isso eu não me permitia, querido. Foi o que quis dizer com “cabulei as aulas sobre limites”.
As pessoas que me conhecem bem – tu és certamente uma delas e nisto não há qualquer presunção – sabem como sou severa demais comigo e extremamente generosa com os outros. Quantas vezes eu não sorri azul-celeste, com lágrimas nos olhos, ao sentir o peso da mão de alguém sobre mim quando na verdade o que eu mais desejava era poder revidar vermelho-sangue ou, pelo menos, xingar negro-profundo alguns bons impropérios.
Eu nunca fui boa em respeitar os meus limites, em contrapartida, respeito demais os limites alheios.
Não te preocupes, querido, não vou mais vestir máscara nenhuma (vou tentar ao menos). Eu só quero me conceder a liberdade de ser tudo e todas em mim. Há espaço para muitas cores. Lembras de uma micro-narrativa minha que dizia mais ou menos assim: pensei que amar fosse como a loucura amarela de Van Gogh...? Provavelmente, seja, mas se ela também for azul Matisse não invalidará o amor, entendes?
Como assim, não és ninguém? Para mim, és alguém de importância ímpar.
Eu sinto-me muito livre para adaptar o mito dos seres esféricos de Platão segundo a minha própria conveniência. Se com isso Platão quis explicar o amor Eros, eu amplio seu sentido. Hahahaha
Vítor, fomos fulminados por um raio que nos separou. És, sem sombra de dúvidas, minha metade que vagava pelo mundo até que um belo dia nos esbarramos. E estou pouco ligando para o julgamento das pessoas; se acreditam ou não na veracidade dessa relação de distâncias, de mares; se pensam que enlouquecemos. De fato, sou louca. Só mesmo uma pessoa insana se atormentaria tantos anos com os tipos de questionamentos que me imputei.
Canta a Rita Lee: mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz.
Em outra canção, a Adriana Calcanhotto diz: eu não gosto do bom gosto/ eu não gosto de bom senso/ eu não gosto dos bons modos/ não gosto. Eu agüento até os estetas/ eu não julgo competência/ eu não ligo pra etiqueta/ eu aplaudo rebeldias/ eu respeito tiranias/ eu compreendo piedades/ eu não condeno mentiras/ eu não condeno vaidades...
Então é isso, façam o quiserem, mas eu quero o mesmo direito.
Quando dizes: “tu não és vilã da tua história”, eu replico: sim, não sou vilã, mas sou responsável, meu Vítor. E neste momento não há auto-flagelação, há, sim, um reconhecimento dos limites, dos meus limites. Não quero ser só uma sobrevivente, querido. Quero ser vitoriosa! E nisso o ódio tem sido mesmo esse detergente do qual falaste, muito eficaz. Estar tão intimamente magoada, tão visceralmente violentada tem algo de bom: eu ainda sou capaz de me indignar com as condutas retorcidas, ou seja, não estou acomodada. Ainda não acho natural aceitar covardias, traições, fraquezas. Se fui tão profundamente atingida é porque eu ainda acredito, eu ainda tenho fé.
E aí, a foto da Nan Goldin vem esbravejar aos meus ouvidos tudo isso que estou a te falar.
1. ela tem os lábios vermelhos a gritar, a desafiar.
2. ela expôs sua dor em praça pública. Não para sentirem piedade, mas para que ninguém permita se deixar violentar. Para que gritem: existem limites! Ou como dissestes: serão meus cúmplices.
3. o amor que sentia pelo companheiro não lhe concedeu indulto para agredi-la.
É o que estou tentando fazer, Vítor. Gritar, expor as feridas para que saibam que não são belas, estabelecer limites, fazer entender que o amor não é um imbecil, um tolo que permite tudo.
Sei que já vou longe, mas vou te contar um segredinho.
Tive um grande amigo de faculdade. Ele era um cara difícil, muito atormentado. Além de mim, só tinha laços estreitos com mais duas pessoas. Ele podia contar comigo pra tudo porque eu sempre deixei claro que se precisasse, não deveria ter pudores. Durante quatro anos fui sua grande companheira, irmã, e todo blá blá blá. Formamo-nos, mas não perdemos contato. Um belo dia, exatamente dois antes do aniversário dele, ele pirou. O telefone da minha casa tocou às quatro da manhã. Atendi apreensiva, afinal, telefonema nessas horas... era ele. Estava alcoolizado, vagando pelas ruas e chorava muito. Não tive dúvidas. Eu disse “venha” e ele veio. Fiz-lhe café e conversamos até o dia literalmente clarear. No dia do aniversário, liguei pra ele e o convidei para uma saída leve, com meus amigos, gente nova para espairecer. Ele recusou. Insisti um pouco, pois não queria que ficasse sozinho justamente naquele dia, mas ele foi irredutível. Eu fui para o bar com algumas amigas. Fizemos os pedidos e fui lavar as mãos. Antes de chegar ao banheiro, vi uma mesa cheia, com um bolo enorme, eles cantavam parabéns pra você. Sabe quem era o aniversariante, querido? Pois é, eu fiquei arrasada e ele, pálido. Entrei correndo no banheiro, mas ele ficou me esperando na porta. Saí e ele me segurou. “Posso explicar”. Disse que podia enfiar a explicação naquele lugar e nunca mais nos vimos.
Nego, aquilo me deixou com o olho roxo, igual ao da Nan. Mas eu soube reagir. É isso que busco agora novamente: reagir.
Eu não quero mais ser/estar disponível dessa forma. Quero que continuem me procurando quando precisarem, mas também quando não precisarem. Eu vou continuar perdoando, mas não quero esquecer. As experiências (ou as cicatrizes) são potentes sinalizadores. É preciso aprender algo com isso.
A Nan podia ter levado a tal porrada e ter se calado. E quando o companheiro viesse pedir perdão, ela podia ter agido como milhares de outras mulheres agem: perdoam e voltam a apanhar. Num caso desses, o agressor - que é também o ser amado – não está apto para dizer: “nunca mais vou fazer isso”. Mas quem apanha acreditando no milagre de um dia receber beijos, ao invés de pancada, tem que estar apto para dizer: “nunca mais mesmo, porque eu não vou permitir”.
Será fácil? É super difícil dizer não a quem amamos e mais doloroso ainda constatar que amado e agressor são a mesma pessoa. Mas o que fazer, Vítor? Ficar?
Se por certas vezes exagero nas tintas, peço que tenhas paciência. Este exagero “é tão e somente a coisa mais bela e maravilhosa que possuímos enquanto reles seres humanos que somos: a capacidade que cada um de nós possui de regenerar-se através do amor”.
Estou cuidando das feridas, meu amigo, estou me protegendo, aprendendo a exercitar a generosidade comigo, estou dando a mim o direito de gritar, explodir, xingar palavrões bem cabeludos! Hehehe
Não estás sozinho. Eu também acredito e é por acreditar que me debato tanto, luto tanto, faço tanto barulho. Não quero e não vou ficar surda às misérias.
Vou lutar até a morte pelo direito de ser quem sou. Vou exigir minha parte no Éden terreno. Não vou tolerar abusos.
Antes de bater a porta, eu disse para... você sabe quem: o que difere um ser humano de um mero filho da puta é a maneira como conduzimos nossas rel(ações). Se, apesar de toda a dor, assumimos nossos atos, nos reconhecemos porção humana; mas se ignoramos nossas responsabilidades, não resta dúvidas, somos todos belíssimos filhos de uma grande puta.
Alguns podem chamar a isso de drama. Eu prefiro chamar de vida. E sim, eu vou voltar a sorrir porque eu mereço. Virão novamente as palavras apaixonadas, os sentimentos diáfanos, as emoções estarrecedoras.Beijo grande nessa sua alma imensa. E Vítor! OBRIGADA.
Queria dizer-te uma coisa, querido. O fato de me compreenderes não te obriga a concordares comigo. Isto é amizade, meu Vítor, saber ouvir e saber dizer. Não queremos nos convencer de nada, queremos o crescimento mútuo e isso não falta em nossa correspondência. Por que digo isto? Porque ficaria imensamente frustrada se ao invés de encontrar ressonância em ti, eu encontrasse a adesão simples e pura. Se sinto-me, neste momento muito particular, na escuridão, não significa que queira que venhas ao meu encontro de modo que nos transformemos em noite. É também responsabilidade tua não ser condescendente, querido. Os amigos têm o direito tanto de nos afagar como o de puxar nossas orelhas. Então, está tudo bem. Não corro o risco de “odiar o que vais me dizer”.
Quando te escrevi aquela nota de rodapé, eu realmente queria comunicar-te um momento de felicidade genuína que senti. Não sinto pesar em substituir o azul celeste pelo rubro-negro. E melhor, não sinto culpa.
Eu demorei tanto, meu Vítor, para entender que as cores fortes, os tons agressivos também fazem parte de mim. A grande descoberta não é que o azul celeste me desagrada. Gritei eureka ao constatar que o vermelho e o negro também são partes de mim. E isso eu não me permitia, querido. Foi o que quis dizer com “cabulei as aulas sobre limites”.
As pessoas que me conhecem bem – tu és certamente uma delas e nisto não há qualquer presunção – sabem como sou severa demais comigo e extremamente generosa com os outros. Quantas vezes eu não sorri azul-celeste, com lágrimas nos olhos, ao sentir o peso da mão de alguém sobre mim quando na verdade o que eu mais desejava era poder revidar vermelho-sangue ou, pelo menos, xingar negro-profundo alguns bons impropérios.
Eu nunca fui boa em respeitar os meus limites, em contrapartida, respeito demais os limites alheios.
Não te preocupes, querido, não vou mais vestir máscara nenhuma (vou tentar ao menos). Eu só quero me conceder a liberdade de ser tudo e todas em mim. Há espaço para muitas cores. Lembras de uma micro-narrativa minha que dizia mais ou menos assim: pensei que amar fosse como a loucura amarela de Van Gogh...? Provavelmente, seja, mas se ela também for azul Matisse não invalidará o amor, entendes?
Como assim, não és ninguém? Para mim, és alguém de importância ímpar.
Eu sinto-me muito livre para adaptar o mito dos seres esféricos de Platão segundo a minha própria conveniência. Se com isso Platão quis explicar o amor Eros, eu amplio seu sentido. Hahahaha
Vítor, fomos fulminados por um raio que nos separou. És, sem sombra de dúvidas, minha metade que vagava pelo mundo até que um belo dia nos esbarramos. E estou pouco ligando para o julgamento das pessoas; se acreditam ou não na veracidade dessa relação de distâncias, de mares; se pensam que enlouquecemos. De fato, sou louca. Só mesmo uma pessoa insana se atormentaria tantos anos com os tipos de questionamentos que me imputei.
Canta a Rita Lee: mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz.
Em outra canção, a Adriana Calcanhotto diz: eu não gosto do bom gosto/ eu não gosto de bom senso/ eu não gosto dos bons modos/ não gosto. Eu agüento até os estetas/ eu não julgo competência/ eu não ligo pra etiqueta/ eu aplaudo rebeldias/ eu respeito tiranias/ eu compreendo piedades/ eu não condeno mentiras/ eu não condeno vaidades...
Então é isso, façam o quiserem, mas eu quero o mesmo direito.
Quando dizes: “tu não és vilã da tua história”, eu replico: sim, não sou vilã, mas sou responsável, meu Vítor. E neste momento não há auto-flagelação, há, sim, um reconhecimento dos limites, dos meus limites. Não quero ser só uma sobrevivente, querido. Quero ser vitoriosa! E nisso o ódio tem sido mesmo esse detergente do qual falaste, muito eficaz. Estar tão intimamente magoada, tão visceralmente violentada tem algo de bom: eu ainda sou capaz de me indignar com as condutas retorcidas, ou seja, não estou acomodada. Ainda não acho natural aceitar covardias, traições, fraquezas. Se fui tão profundamente atingida é porque eu ainda acredito, eu ainda tenho fé.
E aí, a foto da Nan Goldin vem esbravejar aos meus ouvidos tudo isso que estou a te falar.
1. ela tem os lábios vermelhos a gritar, a desafiar.
2. ela expôs sua dor em praça pública. Não para sentirem piedade, mas para que ninguém permita se deixar violentar. Para que gritem: existem limites! Ou como dissestes: serão meus cúmplices.
3. o amor que sentia pelo companheiro não lhe concedeu indulto para agredi-la.
É o que estou tentando fazer, Vítor. Gritar, expor as feridas para que saibam que não são belas, estabelecer limites, fazer entender que o amor não é um imbecil, um tolo que permite tudo.
Sei que já vou longe, mas vou te contar um segredinho.
Tive um grande amigo de faculdade. Ele era um cara difícil, muito atormentado. Além de mim, só tinha laços estreitos com mais duas pessoas. Ele podia contar comigo pra tudo porque eu sempre deixei claro que se precisasse, não deveria ter pudores. Durante quatro anos fui sua grande companheira, irmã, e todo blá blá blá. Formamo-nos, mas não perdemos contato. Um belo dia, exatamente dois antes do aniversário dele, ele pirou. O telefone da minha casa tocou às quatro da manhã. Atendi apreensiva, afinal, telefonema nessas horas... era ele. Estava alcoolizado, vagando pelas ruas e chorava muito. Não tive dúvidas. Eu disse “venha” e ele veio. Fiz-lhe café e conversamos até o dia literalmente clarear. No dia do aniversário, liguei pra ele e o convidei para uma saída leve, com meus amigos, gente nova para espairecer. Ele recusou. Insisti um pouco, pois não queria que ficasse sozinho justamente naquele dia, mas ele foi irredutível. Eu fui para o bar com algumas amigas. Fizemos os pedidos e fui lavar as mãos. Antes de chegar ao banheiro, vi uma mesa cheia, com um bolo enorme, eles cantavam parabéns pra você. Sabe quem era o aniversariante, querido? Pois é, eu fiquei arrasada e ele, pálido. Entrei correndo no banheiro, mas ele ficou me esperando na porta. Saí e ele me segurou. “Posso explicar”. Disse que podia enfiar a explicação naquele lugar e nunca mais nos vimos.
Nego, aquilo me deixou com o olho roxo, igual ao da Nan. Mas eu soube reagir. É isso que busco agora novamente: reagir.
Eu não quero mais ser/estar disponível dessa forma. Quero que continuem me procurando quando precisarem, mas também quando não precisarem. Eu vou continuar perdoando, mas não quero esquecer. As experiências (ou as cicatrizes) são potentes sinalizadores. É preciso aprender algo com isso.
A Nan podia ter levado a tal porrada e ter se calado. E quando o companheiro viesse pedir perdão, ela podia ter agido como milhares de outras mulheres agem: perdoam e voltam a apanhar. Num caso desses, o agressor - que é também o ser amado – não está apto para dizer: “nunca mais vou fazer isso”. Mas quem apanha acreditando no milagre de um dia receber beijos, ao invés de pancada, tem que estar apto para dizer: “nunca mais mesmo, porque eu não vou permitir”.
Será fácil? É super difícil dizer não a quem amamos e mais doloroso ainda constatar que amado e agressor são a mesma pessoa. Mas o que fazer, Vítor? Ficar?
Se por certas vezes exagero nas tintas, peço que tenhas paciência. Este exagero “é tão e somente a coisa mais bela e maravilhosa que possuímos enquanto reles seres humanos que somos: a capacidade que cada um de nós possui de regenerar-se através do amor”.
Estou cuidando das feridas, meu amigo, estou me protegendo, aprendendo a exercitar a generosidade comigo, estou dando a mim o direito de gritar, explodir, xingar palavrões bem cabeludos! Hehehe
Não estás sozinho. Eu também acredito e é por acreditar que me debato tanto, luto tanto, faço tanto barulho. Não quero e não vou ficar surda às misérias.
Vou lutar até a morte pelo direito de ser quem sou. Vou exigir minha parte no Éden terreno. Não vou tolerar abusos.
Antes de bater a porta, eu disse para... você sabe quem: o que difere um ser humano de um mero filho da puta é a maneira como conduzimos nossas rel(ações). Se, apesar de toda a dor, assumimos nossos atos, nos reconhecemos porção humana; mas se ignoramos nossas responsabilidades, não resta dúvidas, somos todos belíssimos filhos de uma grande puta.
Alguns podem chamar a isso de drama. Eu prefiro chamar de vida. E sim, eu vou voltar a sorrir porque eu mereço. Virão novamente as palavras apaixonadas, os sentimentos diáfanos, as emoções estarrecedoras.Beijo grande nessa sua alma imensa. E Vítor! OBRIGADA.
1 comentário:
respondo-te em breve, esta semana tem sido de loucos...imenso trabalho
um beijo
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