sábado, novembro 18, 2006

Confessionário (36)

Minha querida, não sei como e por onde começar. Tenho tentado organizar as ideias mas fica-me a sensação de desarrumação completa na minha cabeça. Cada vez mais tenho dificuldade em perceber conceitos que imprimam certezas e verdades absolutas, duvido se existe ou não uma estrutura coerente capaz de orientar os episódios da nossa vida… a cada acontecimento sobreposto fica-me uma sensação de revolução: novas verdades anulam as anteriores, deformam-nas, adaptam-nas e fazem crescer outros pilares que sabemos que ruirão logo, logo.
Falaste-me durante muito tempo sobre a espiral do Osman Lins e do fascínio que ela te provocava, da circularidade dos acontecimentos caminhando em direcção a essa unidade essencial, o Infinito. Vários autores falam-nos da mesma Unidade: assim do nada lembro-me de dois, Fernando Pessoa e Herman Hesse. (o tudo que é o nada; o ciclo confirmado e a unidade de Sidharta). Eu também acredito que tudo isto é uma engrenagem complexa e una, onde o movimento de uma roldana mínima e aparentemente sem qualquer importância, é suficiente para alterar o ritmo de funcionamento da máquina. O que me espanta em tudo isto é a espécie de viciosidade que a máquina ganhou. Parece não existir forma de equilibrar o mundo, já não peço para que se reverta o processo, apenas um equilíbrio, um ténue e justo equilíbrio. Os acontecimentos pesam demasiado para um dos lados, infelizmente o que menos me agrada. E mesmo as nossas míseras vidinhas, que, como nos diz Beauvoir, são ou deviam ser da nossa inteira responsabilidade, pendem igualmente para o mesmo lado.
Tenho feito o esforço de olhar para o passado, encontrar-lhe uma lógica, uma explicação. Obrigo-me constantemente a encontrar respostas, a chamar os bois pelos nomes, o procurar uma relação entre as causas e as consequências dos meus actos, mas tudo me parece tão aleatório e sem relação, tudo me parece tão previsível como imprevisível… não há um raciocínio coerente nas nossas vidas… tudo existiu e deixou de existir, simplesmente isso, sem razão para acontecer e sem razão para deixar de acontecer e a Verdade não é mais do que uma companhia dessa existência, que, deixando de existir, a torna ausente também. Perante isto, a memória não é mais do que o impulso permanente de guardar aquilo que existiu e deixou de existir, a memória é ao mesmo tempo a recusa da morte e o mausoléu onde se instala o cadáver, uma fixação humana para responder a tudo, como se tudo se apresentasse como uma pergunta. Voltando ao início do raciocínio, é exactamente na construção da memória que não encontro o ritmo da espiral. A lógica que a minha mente parece ter dado à maioria dos acontecimentos não aceita nem se compatibiliza com outros, e é nesse confronto que me perco, assim como dele derivam todas as minhas ansiedades e perturbações. Quando não questiono, e aceito a origem e a morte de determinado acontecimento, tivesse sido ele bom ou mau, feliz ou miserável, quando afirmo que tudo existiu e deixou de existir sem qualquer tipo de causalidade e de forma completamente arbitrária, tudo me parece mais dentro dessa espiral e mais de acordo com a lógica de um todo universal.
É entre a ansiedade que a construção da memória me provoca e a paz que pareço conseguir quando me esforço por aceitar tudo como se houvesse uma espécie de inevitabilidade e irracionalidade naquilo que existiu e/ou deixou de existir, que me vou consumindo.
Não imaginas como me sinto próximo do personagem de Beauvoir, Jean Blomart: sou o principal responsável pela minha liberdade, mas sou-o apenas de mim próprio. Não posso ‘tocar na liberdade dos outros, nem prevê-la, nem exigi-la. É exactamente isso que me é tão penoso; o que faz o valor de um homem não existe senão para si próprio, não para mim: eu não chego senão à aparência dele; e não sou para ele também senão uma aparência, um dado absurdo; um dado que nem mesmo escolhi ser…’. Ao construirmos a nossa memória erguemos um mundo virtual dentro de nós, que pode ser tão ou mais rico do que o mundo real (o que verdadeiramente existiu) e é a partir dessa construção que executamos as nossas opções. Como Blomart, tomamos as rédeas e a responsabilidade dos nossos actos e dizemos “não podia fazer [isto ou aquilo] de outro modo” e pensamos com isso dar resposta ao que somos realmente, convictos de que não fugimos de nós próprios. Grande parte das opções que escolhemos activamente e que julgávamos ser um exercício de auto-honestidade, revelam-se catastróficas ou indiferentes àqueles que nos rodeiam, ‘aparentes’, ‘absurdas’ para utilizar os termos de Beauvoir. Há, mesmo naquilo que pensamos controlar e que depende exclusivamente de uma opção nossa, um grau de imprevisibilidade difícil de entender. É dessa imprevisibilidade que nasce a culpa, o ‘devia ter feito’, o ‘devia ter dito’. Entrar na espiral deveria significar: o que aconteceu foi o que aconteceu, e não: o que poderia e deveria ter acontecido… percebes onde quero chegar, minha amiga? É pela memória que nasce o conflito, ela é a filha do casamento entre o real e a consciência e como não temos a capacidade nem o poder para eliminá-la, seremos sempre eternos aspirantes ao ritmo contínuo da espiral. A nossa vida terá sempre uma carga absurda, insólita, irracional, imprevisível, e diferentes estruturas e diferentes verdades erguer-se-ão com a mesma rapidez que poderão ruir. Talvez a desordem na minha cabeça seja um indicador positivo do absurdo de existir.

2 comentários:

Lu disse...

Mal posso esperar por janeiro, meu Vítor! O abraço dará as respostas que minha voz não é capaz...

MJLF disse...

a memória ficciona, é sempre uma intrepretação dos fenómenos.
Maria João