quinta-feira, novembro 23, 2006

Confessionário (37)

Meu querido Vítor,

Não é nada simples continuar o diálogo a partir do teu último confessionário. Existem questões complexas demais e que não ouso arriscar resposta alguma. Um dos motivos é a minha mera ignorância em elaborar tal sofisticação de idéias; outro é a minha total incapacidade ou inabilidade momentânea em dar respostas.
Até nisso estamos em sincronia. Eu também estou em busca de respostas, de uma compreensão, de um entendimento ou simplesmente, quem sabe, de uma paz tal que eu não necessite responder nada, apenas viver cada dia com tudo o que ele me oferece.
Então vamos continuar dialogando sobre nossas inquietações, nosso amor, nosso ódio, nossa afasia, nosso êxtase, porque acredito que o diálogo será não a solução de nossas interrogações, mas uma maneira, talvez a mais amorosa, de sinalizar nossos passos em direção à luz.
A solução terminativa para tais interrogações deve ser provavelmente a morte e nós não queremos morrer. Vítor, queremos estar vivos para testemunhar a felicidade.
Vamos, então, ao primeiro ponto: o movimento espiralado da vida.
É verdade, o assunto sempre me fascinou, mas foi o Osman Lins quem materializou este fascínio ao sistematizar duas categorias antagônicas, a princípio, mas que são profundamente complementares: a espiral e o quadrado, em outras palavras, o tempo e o espaço.
Osman trabalhou tais conceitos de forma exemplar para explicar uma concepção de criação e a partir daí ampliar as fronteiras da estética, resvalando para os limites mais comezinhos da vida em sociedade até chegar ao indivíduo.
Vítor, li com bastante interesse e atenção sua leitura a respeito dos movimentos em espiral. Ela é completamente lúcida e vívida e como tal é também uma leitura crítica das vicissitudes da vida. Não tenho muito mais a acrescentar sobre isso, seria chover no molhado. Contudo, acho que a hora é propícia para introduzir o elemento “quadrado” à tua fala.
Todas essas idas e vindas, a sensação nietzchiana do eterno retorno, os fluxos e refluxos de nossa consciência possuem essa face à la Schoppenhauer que nos deixariam prostrados diante de tanta efemeridade se não houvesse o espaço a limitar as pontas infinitas da espiral.
O quadrado é o centro de gravidade da nossa existência, querido. De outra forma enlouqueceríamos diante deste balé contínuo das horas e dos ciclos. O quadrado surge como elemento ‘opressor’, no sentido em que ele limita nossas ações num determinado tempo.
Uma situação pode apresentar muitas possibilidades, mas há um número finito das mesmas. Como Marx disse em relação à História: existem possibilidades várias de interferir na História, mas é preciso levar em conta as circunstâncias, pois elas definem como e até onde podemos operar as mudanças.
Meu Vítor, o aprendizado diante da experiência que vivi diz-me que fiz todas as interferências possíveis – não interessa se foram suficientes ou não, bem sucedidas ou não –, fui até o limite. O que não fiz foi porque não pude. O quadrado concluiu, pôs termo aos meus movimentos ondulatórios àquela experiência.
É como o papel em branco, querido. Tens nas mãos todas as possibilidades de criar um texto, mas apenas um será escrito quando te decidires pela idéia principal.
Os momentos onde sentimo-nos encalacrados, sem respostas, direções, repetindo a mesma série de atitudes, esse é o momento do convite perigoso e necessário: aceitas os limites ou continuas a escrever a mesma página pela eternidade?
Sobre a memória...
A memória é um truque de prestidigitador. É preciso estar atento às suas seduções.
Ouço muitas pessoas fazerem uma conclusão unívoca entre memória e escrita. Não discordo, mas acho redutor pensar que escrevemos para manter a memória unicamente. E quando não havia escrita, já não havia a memória? O que dizer de lugares, cheiros, da oralidade que sempre foi fonte de registro dessa mesma memória?
Como bem disseste, a memória pode ser um mecanismo de orientação, de sentido ou um mausoléu abandonado. E se se tornou um mausoléu é porque tentamos controlar o que não tem controle nem racionalidade intelectual. A memória, bem como a vida, não é passível de controle porque depende de quem a produz, ficciona. A construção dessa memória individual é uma leitura, uma seleção particular daquilo que nos impulsiona.
Quando não te questionas mais, quando abraças os teus cadáveres “sem qualquer tipo de causalidade e de forma completamente arbitrária” é porque aceitastes o quadrado sobrepondo-se à espiral, meu Vítor. Não há nada de errado em admitir: acabou, não deu, este é o fim (que não esperei ou não programei). Somos educados para o sucesso e a felicidade. Em contrapartida somos completamente despreparados para o fracasso e a dor.
Aceitar o quadrado não é um ato de passividade e resignação cega, ao contrário, é possuir a chave que nos liberta da opressão de um registro negativo da memória: o arquivo fica lá mas podemos criar novos e outros.
A tensão que experimentamos é a vida se manifestando. Paz quando admitires que não podes tudo, não és herói, vidente; ânsia quando és impelido a labutar e construir tuas memórias.
És de fato responsável pela tua liberdade e só da tua, meu querido. E isso já é um grande feito quando conseguimos tal intento. Se sem podermos tocar a liberdade do outro já nos sentimos nesse direito, imagine se o passaporte fosse livre! Cada um tem a responsabilidade de agir ou não e nossas atitudes não são fatos isolados. Eis aí o elemento penoso, my dearest.
O restante que me apresentas em relação a Blomart, tendo a achar um terreno perigoso, areia movediça.
“Não podia fazer (isto ou aquilo) de outro modo” é novamente uma recorrência da culpa. Podias e podes faz isto e aquilo, num espectro determinado de opções. Isto é a espiral da vida, mas como vivemos em frações de realidade, o quadrado se apresenta exigindo uma resposta única. Isto para mim corresponde a uma resposta, sim e não a uma fuga. Até mesmo quando fugimos, Vítor, isto também é uma escolha (consciente ou não) para uma dada situação. E nem toda escolha é catastrófica ou indiferente, mas ela reverbera, sim, ao nosso redor. Então, quando dizes que entrar na espiral deveria significar apenas que as coisas são com são, nesse momento tens o ‘controle’ da tua liberdade.
Entendo sim onde queres chegar, meu amigo. Acho mesmo que chegaste a uma grande compreensão das tuas experiências. Eu só te peço que suavizes o peso da tua mão sobre ti, porque a balança só raramente encontra o equilíbrio. Após esse momento, volta o movimento pendular (ou espiralado) de ora pender para um lado, ora para o outro.
Há muito mais para falar, mas não dá para finalizar esse papo sem lembra-me do Kundera. Por que a leveza é insustentável, Vítor? Porque ela fica rarefeita, nos leva para longe, distante de nós e dos outros. A força peso nos traz para o centro, coloca nossos pés em contato com o mundo.
Nem tudo que tem peso é necessariamente ruim.

2 comentários:

Vítor Leal Barros disse...

toda esta conversa sobre a espiral, o quadrado, a memória, o absurdo, os textos de Beauvoir, de Lins, os nossos diálogos remetem-me para o abstraccionismo lírico (para não dizer esotérico) de Kandinsky...hei-de lá chegar na próxima confissão

Lu disse...

EStou ansiosa para compartilhar contigo esse novo capítulo
;o)