quarta-feira, novembro 22, 2006

hoje sou eu que vos peço paciência...

Noutro dia a Lu pediu paciência para postar um conto da Lygia Fagundes Telles. É normal que o tenha feito. Há uma espécie de limite de palavras para os textos publicados na blogosfera. Sabemos que se um texto exceder o tamanho de um A4 ninguém o vai ler, ou quase ninguém… há sempre uma ou duas pessoas que se dão ao trabalho por puro deleite, e por esses vale a pena. Hoje peço-vos eu a mesma paciência. O texto que se segue ficou-me eternamente gravado na memória desde a primeira vez que o li, já lá vão uns anos. Ontem, de conversa com a Luciana, enquanto discutíamos certos episódios recentes das nossas vidas, lembrei-me muito desta história. Antes de me deitar fui à estante, procurei o livro. Abri-o neste ‘Duas Pessoas’ e reli-o duas vezes. Admirei-me com o que tinha sublinhado anos atrás. Fiquei impressionado de o ter ainda tão presente na minha memória.
Tenho vontade de publicar este texto do Herberto Helder desde os princípios do Povo é Bom Tipo. A Ana pediu-me imensas vezes para que o fizesse, mas não sei porque razão, nunca acedi ao pedido. Talvez a conversa de ontem tivesse que acontecer para que este texto fosse relido e relembrado.

DUAS PESSOAS
Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frémitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? - pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atónitos - são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção («o teu cabelo»), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo. É melhor parar com tais explicações. Aluguei esta casa quando vim do estrangeiro. Sentia-me transbordar de experiências desordenadas e irrevogáveis. Um pouco enjoado de pequenas cidades descobertas à noite, quando se sai numa estação de caminho de ferro. Farto de gentes, costumes, acontecimentos. Viajar é idiota. Bom para a crassa primeira juventude. Também para os homens de negócios e os intelectuais que vão escrever livros de viagens ou fazer conferências ou estabelecer, no equívoco plano das literaturas, as fraternidades internacionais. Regressei farto, farto, um milhão de vezes farto. Aluguei a casa, comprei livros e discos, uma cama, pouco mais. Gosto dos lugares ascéticos. Sou uma pessoa esquisita. Deito-me e ponho-me a fumar e a ouvir discos. Ouço Bach. Gostaria de ter um cravo e tocar. Fumo muito. Faz-me mal. Abro um livro e leio duas ou três páginas. Às vezes trago uma prostituta para casa e tento que ela beba comigo meia garrafa de brandy. Mas não sei conversar, e ela sente-se constrangida, lesada. Então digo qualquer coisa: o teu cabelo, por exemplo. E a rapariga não compreende. Há ocasiões em que as prostitutas imaginam tratar-se de um cumprimento, e sorriem. Sorriso vacilante, que se não sabe se crescerá, apossando-se do rosto todo, da pessoa toda, ou se então será reabsorvido em si mesmo. Estaria porventura no meu poder fazê-lo aumentar até à emoção, à gratidão. Mas fico-me por aí. Acendo mais um cigarro. Ela tenta: o meu cabelo? Não percebe, ou espera que eu faça surgir, dentre a massa de humilhação e marginalidade da sua vida, essa trémula, veloz alegria. Eu que sou um homem, que possuo a ambígua faculdade da doçura viril, e posso exibir a comoção perante a beleza, mesmo a fortuita e frágil beleza humana. Mas estaco. Sou cruel? Ou frio. Para o caso tanto faz. Digo: queres um cigarro? Ela abana negativamente a cabeça. E o tal cabelo mexe-se de cá para lá sob a luz, escorrega por cima dos ombros. Ela passa as mãos devagar, as mãos espalmadas, sobre o tal cabelo que brilha sombriamente na luz. Levanta-se, nua, com o tal cabelo muito caído pelas costas, pelos ombros, e o sapato - enfim encontrado - na ponta dos dedos. O sapato destrói a mão direita, ah! destrói-a irrecuperavelmente, e só a mão esquerda permanece com alguma dignidade, tombada junto à perna, inútil, despertando-me uma qualquer ideia, excessivamente brumosa, que eu agora procuro tornar mais real, dizendo: a tua mão. Mas ela confunde e ergue a mão direita com o sapato um pouco sujo, a verem-se-lhe as palmilhas escurecidas. Poderia eu amar esse sapato, quero dizer: essa mão caminhando ao encontro de uma possível emoção, de um estremecimento subtil que abrisse por fim a veemente máquina interior e nos fizesse a nós dois, a jovem prostituta humilhada e o homem gasto, a benignidade de breve mas verdadeiramente humana conciliação? Fico deitado tardes inteiras, fumando interminavelmente. Bach. Cinco páginas do Hamlet, 2.0 acto, 2.ª cena. A ficção da loucura por parte de Hamlet é dúbia. Polónio por seu lado submete-se às regras do perigosíssimo jogo. Nesta atmosfera nem a ficção da loucura é gratuita, nem a lucidez casual. Mas eis toda a verdade no espaço rápido e fechado. As leis do fingimento são secretas, intraduzíveis. Perfeito. Nelas reside o segredo total. Quarto do castelo em Elsenor. A ficção (ou fingimento) é o único caminho para a verdade? - Que ledes, meu senhor? - Palavras! Palavras! Palavras! - Mas de que se trata, meu senhor? - Entre quem? E Bach ao fundo. Concerto Brandeburguês nº 5 pela Orquestra de Estugarda. Transferi tudo. Eis como funcionam estas minhas admiráveis virtudes humanas. E a pobre rapariga levanta-se, depois de recusar o cigarro, e aproxima-se com o seu desgraçado sorriso, vulnerável assim entre a última humilhação e uma espécie de momentânea ressurreição do valor da vida e da pessoa. Tudo isso à minha frente, entre os belos sons de cravo de Bach e as palavras de uma trágica e tão significativa comicidade de Shakespeare. Entre quem? Ora aí está: deveria ser entre mim e ela, e não palavras, palavras, palavras - mas um grande assunto. O assunto de um empenhamento, uma devoção humana. Não gosto de ninguém, mas pergunto: não tenho eu obscuras, calorosas e ricas faculdades? Ela avança para dar-me um beijo. Recebo-o na boca e - fácil! - retribuo. Enoja-me a saliva que me fica nos lábios, e confundo-a depressa com a minha, passando a língua por cima. Pois eu tenho muita saliva, muita abjecção onde afundar a abjecção dos outros. Estou deitado e, pela cidade adiante, caminha a prostitutazinha. Embrulhada no seu casaco, atravessa as ruas, pelas sombras, pelas luzes, debaixo de árvores e prédios enormes. Vem, vem. Bate¬-me à porta. Eu poderia gritar, fazendo calar o disco e atirando para o lado o meu livro: chega alguém! Ela entra, etc., etc. Quero poupar-me à ignara massa de palavras que descreveriam a subtileza de quantos movimentos, o fulgor de quantas revelações, o ondulante espectáculo do nascimento e acção de um corpo. Passo-lhe a ponta dos dedos pelo rosto. Não são as rugas ou a gordura de um rosto, qualquer falha, o que me repugna. Detesto em bloco a incapacidade humana em atingir a pureza ou a intensidade criada pela solidão. Será isso? Ou serei eu uma criatura estéril, sem dons, sem expansão? Que oportunidades! Ela está agachada, procurando esse perdido sapato providencial; curvada, curvada como um ser indefeso, oferecido a maravilhosas capacidades minhas. Eu aproximar-me-ia e a minha mão correria ao longo do seu cabelo, tocaria no ombro, tomaria a sua mão. E ela elevava então para mim os grandes olhos onde o terror se diluía, os olhos que recebiam e devolviam uma luz maior. Eu poderia dizer: o teu cabelo. Ou: a tua mão. Ou ainda: tu. Antes disso, que posso saber, embora aconteça aquilo a que tão imprópria e ingloriamente se chama intimidade? Uma casa ascética depois de um fácil tumulto móvel, Shakespeare e Bach após lugares e tempos improfícuos. Tudo uma visão desbaratada pelo carácter básico da renúncia ao ardor, à esperança, à alegria. A mulher diz: o meu cabelo? Eu acendo um cigarro e pergunto: queres um cigarro? E enquanto ela se levanta para alguma coisa porventura definitiva, guardada no tesouro dos séculos, eu afasto-me e, acercando-me da janela, passo a mão pelos vidros embaciados, olho a rua e murmuro: deixou de chover.

Este senhor taciturno que me recebe com uma fria gentileza parece ter viajado muito. Agora vive na nossa cidade - que não sei se é também a dele - numa casa quase sem móveis que me faz sentir gelada, mais gelada ainda depois de atravessar as ruas escuras e nevoentas. Ele paga-me bem, este senhor, e por isso venho muitas vezes. Está sempre só, bebendo e ouvindo discos intermináveis. A casa está cheia de fumo. É horrível. Mas pergunto: será apenas por me pagar bem que volto sempre? Bato de leve à porta, e ouço o disco parar bruscamente ou descer para um sussurro. Os passos deslocam-se pelo corredor, a porta abre-se muito devagar. E cá está a cara dele - feia, triste e os olhos fixos. Sorri incrivelmente - assim como quem vai pedir desculpa, e depois fica de súbito muito sério. Estou farta dos homens, quase nunca tenho prazer em ir para a cama com eles. Porque é tão degradante a insolência dos jovens como a devassidão dos velhos. Sinto-me muito só junto deles, acho-os absurdos com o seu sofrimento mal oculto atrás de uma simulada virilidade. Há neles uma solidão igual à minha, tão premente como ela, mas a que a fatuidade tira qualquer nobreza. Os homens imaginam, suponho, que me sinto humilhada na minha profissão e que existem em mim, sempre prontos, um apelo, uma súplica. Mas não. Estou só, apenas isso, e a muita gente já tenho eu ouvido dizer o mesmo. Às vezes ele toca-me no rosto com muita atenção e vejo que há por detrás dos seus gestos, do silêncio, um ardor exasperado mas impaciente ou envergonhado de si. É um homem que eu deveria socorrer. Tento mostrar-lhe que há algures, nas nossas possibilidades humanas, uma zona onde a vida se regenera. Eu própria gostaria de ser mais alegre e generosa, mas hesito nos meus impulsos. Existe nos homens essa insuportável fatuidade, um orgulho estúpido e, lá no fundo, uma espécie de condição própria: inalcançável e repugnante. Decerto: é misericórdia o que desperta em mim, ou o desejo talvez de abrir nele um caminho tenazmente vedado. Digo-lhe: os seus olhos. Mas arrependo-me. E ele olha para mim aterrorizado. Depois fecha-se. Oferece-me de beber e recuso quase sempre. E então murmura palavras indefinidas, embaraçadas: a tua mão, a outra, a mão livre. Sim, vai pedir-me que fique, e o afague, sei lá, talvez que morra com ele, tomando os dois um tubo de comprimidos. É homem para isso. Cheira a desespero a quilómetros de distância. Mas volta-se para a janela enquanto me visto, e então só penso em desaparecer, abandonar esta criatura atacada pela lepra, este homem que porventura eu salvaria, se houvesse em mim mais força e determinação ou mais doçura ou uma piedade maior. Porque é um ser minado, destruído. Ainda vivo apenas para pedir socorro. Vou junto dele, toco-lhe no braço, beijo-o na boca. Um momento apodera-se de mim a vertigem da misericórdia: salvá-lo, salvá-lo! Mas eu própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade nocturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores.
Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma sumptuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se - o espírito do último homem. Queres um cigarro? - pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho bâton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica - eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?
Os Passos em Volta (Assírio & Alvim), Herberto Helder

1 comentário:

Lu disse...

Meu Deus, Vítor! Taí a memória inventada e nem por isso falsa... falsa? Esta memória nao é minha, mas também o é... conheço essa mulher e este homem, já os vi, já fiz parte de suas vidas... é, a conversa em noite alta valeu a pena.