O tempo livre nos últimos dias não tem sido nenhum. Blogar torna-se uma tarefa quase impossível durante esta semana e penso que permanecerá a sê-lo durante a próxima. Custa-me que apenas hoje tenha tido cinco minutos para homenagear um dos meus poetas favoritos e que partiu esta semana, Mário Cesariny. Deixo-vos um poema belíssimo que me traz à memória recordações fantásticas de situações vividas num dos locais do mundo mais anónimos que conheço e, no entanto, tão recheado de vida, tão representativo dos dramas humanos. Cesariny como um lugar de passagem.
piccadilly circus
Uma pomba atravessa Piccadilly Circus
em direcção ao rio
em baixo
grandes extensões desérticas de pernas
ressoam como forças paralelas
nos tubos do grande órgão
o homem
é o mar
e o mar “é em cima como nas gravuras”
no dilúvio da luz
um braço pica-se numa seringa
que hoje faz vinte anos de amor bárbaro
todos os lábios falam português por baixo das palavras selvagens que dizem
e mesmo os pensamentos de olhos muito azuis
ideando quem sou no subterrâneo alado
este onde o homem redescobriu o sol e o cobre de cabelos de liberdade
e o submerge no ouro das palavras
e o devasta de corpos e de auroras
Piccadilly Circus
Lugar geométrico da terra
disco rodando o espantosíssimo número
do casamento
do metal com a carne
Vicente Huidobro sobre a torre Eiffel em 1917
é aqui que estás hoje
com sacos de pop-corn
e gestos de quatro a quatro
na noite de cabelos mais alta que todas as luas
Sobre os dois seios de Trafalgar Square
a água sobe branca
aos olhos de Lord Nelson
eu entro sigo saio torno desapareço
caminho muito acima dos meus ombros
sou quem vejo num espelho que vai de autocarro
para um hoje de cidades sem fissura
sou o bombeiro que volta do incêndio
com nos dedos o riso do fogo extinto
a salamandra assistindo ao futuro
e ajeitando ainda
ainda um pouco
o colo
Mário Cesariny
Pena Capital (Assírio & Alvim)
2 comentários:
Leio com o coração contrito. Lindo, muito lindo.
Assim, simples, "sem baba nem ranho", sim!
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