quarta-feira, maio 17, 2006

blá blá blá literário

Caríssimos, saudades, saudades!
Gostaria de compartilhar com vocês algumas impressões e reflexões que tenho feito, uma vez que o tempo sobra-me.
Como voltei a ter crises horrorosas de insônia alternadas com um cansaço Drummondiano, passei a dedicar minhas madrugadas ao estudo da literatura, acompanhado, é claro, do meu diletantismo arcaico papel e caneta.
Ontem, lá pelas quatro da manhã, descobri que ‘faço parte’ de um grupo de pessoas que sempre combati no plano das idéias: os herméticos.
Sorri de mim para mim.
Tentarei explicar essa aparente contradição.
Nessa madrugada, li dois livros inteirinhos (e há quem diga que a insônia não traz benefícios), um deles – eu havia começado, mas não terminara – é Uma poética do romance – matéria de carpintaria, do Autran Dourado.
Sou fã de carteirinha desse mineiro de escrita altamente sofisticada e complexa, mas de vocabulário singelo e sem rococós, apesar de Autran ser todo barroco.
Apaixonei-me tardiamente por ele. Nosso primeiro encontro deu-se com O risco do bordado, logo mais vieram Ópera dos mortos, Os sinos da agonia, A barca dos homens. Todas essas obras são extremamente calculadas, pode-se dizer que possuem uma planta baixa por onde podemos entender sua arquitetura e visualizar sua dimensão.
No Brasil é bastante incomum ver o escritor “teorizar”, quer dizer, fazer uma análise da própria obra, atuando como um crítico. É preciso ressaltar: o escritor de ficção, o prosador, porque em matéria de poesia, verificamos o oposto.
Temos, mais recentemente, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, cujas obras são uma análise do fazer literário, da ars poética.
A metalinguagem sempre foi usada em abundância na poesia sem acarretar revolta dos críticos. Há quem goste, há quem desgoste e pronto.
Quem me conhece sabe que eu adoro meta-poemas. Amo a ‘procura (incansável) da poesia’ em Drummond; os versos duros fundando uma educação pela pedra do gênio JCMN; o itinerário poético que levou Bandeira à sua Pasárgada. Fascinada por essas trilhas, escrevi alguma poesia na tentativa de edificar minha cidade poética.
Por outro lado, sempre tive debates acalorados com uma vertente acadêmica que defende a poesia pela poesia, a arte pela arte como uma forma de limitar o acesso dos leigos ao território dos símbolos.
Ora, já não basta o fato da literatura ser a mais exigente das artes?
Qualquer pessoa sensível pode ser tocada ao escutar uma música sem ter o menor conhecimento de teoria e escala musicais; qualquer um de nós pode admirar uma obra arquitetônica sem nunca ter visto um croqui, uma planta; podemos nos deliciar com um Molière sem saber quem foi Molière; encantamo-nos diante de uma quadro de Rafael ou de Renoir sem entender nada de renascimento ou impressionismo, mas é impossível gostarmos de um livro se não soubermos ler.
Todas as artes permitem a fruição sem necessariamente termos um conhecimento prévio e específico, mas a literatura só aceita iniciados.
Partindo desse ponto, sempre me opus ao discurso da arte para poucos, à defesa do hermetismo como forma de manter a massa longe do processo de criação.
Eu defendo a infecção em detrimento do purismo asséptico. Gosto de ver a contaminação atingindo as pessoas de formas diferentes.
Com a literatura, as coisas tomam proporções maiores, pelo menos no Brasil, onde o analfabetismo ainda é um mal a ser combatido. Dessa forma, infelizmente, a literatura é a priori uma arte excludente, uma vez que o público que não sabe ler está fora do círculo da fruição.
Aqui, então, entra o meu posicionamento político que acredita que a literatura tem uma missão, sim. (ver A arte engajada.)
Se o público que lê é um público iniciado, logo privilegiado, então penso que este mesmo público tem o direito de se refinar, não para se distanciar da massa, mas para agregá-la a um universo maior que extrapole as paredes da ficção.
Depois de toda essa reflexão, descobri meu 'hermetismo bom selvagem'.
Aprecio esse modo encalacrado de escrever, essa forma labiríntica de construir histórias e personagens, que ao olhar desavisado, pode parecer segregadora, mas na verdade é extremamente livre e plural.
Querem ver?
As mil e uma noites. Livro antiqüíssimo que possui uma estrutura em espiral, ou seja, sua leitura tende ao infinito. Existe sofisticação no modo de apresentar as histórias que são construídas para enredar o sultão, mas se alterarmos a ordem dada por Sherazade, não comprometeremos nem a estrutura narrativa, nem o entendimento nem o interesse pelo livro porque atrás desse labirinto, Sherazade esconde a tradição do rapsodo, da oralidade, do contador de histórias. A simplicidade é a caixa de Pandora que se encontra no centro do labirinto.
O mesmo ocorre no D. Quixote, de Cervantes, no Jogo da amarelinha, de Cortázar, nas obras de Osman Lins e Autran Dourado, na estrutura borgeana.
No fundo, o hermetismo literário, assim como o entendo e descrevi aqui, é antes um exercício de liberdade, um jogo de detetive cheio de mistérios a desvendar.
Ruim é quando o hermetismo coincide com a prolixidade e a redundância, características que reduzem o potencial e afronta a inteligência do leitor.

1 comentário:

Vítor Leal Barros disse...

primeiro peço desculpa por só hoje comentar este texto... concordo com quase tudo o que escreveste e em especial quando dizes que é necessária uma iniciação para usufruir da literatura...

se bem percebi esse teu 'hermetismo bom selvagem' explicas que a complexidade de algumas narrativas (que à partida, por si só, excluiriam o acesso de alguns) são por sua vez exercícios fascinantes de liberdade... realmente é um pau de dois bicos. Entre elites literárias ou culturais e a cultura do povo, ou 'pop' como se começou a chamar a partir dos anos sessenta, a promiscuidade é paralela e ambivalente... não por se tratar desta ou daquela literatura, mas porque essas literaturas (ou melhor, as pessoas que produzem essas literaturas) constituem sociedades, e como em todas as sociedades, estão sujeitas a honras, vícios, boas acções e invejas... em 10000 livros produzidos por determinada geração em determinada época e percorrendo todo o espectro literário, dentro e fora de fronteiras, sobrevivem dois ou três livros universais, que têm sobre todos (literatos e não literatos, letrados e ignorantes, alfabetizados e analfabetos) um poder universal. esses livros são os que tocam mais fundo a alma humana, e tocam-na universalmente, directamente quem lê e os outros por influência. há livros com esse poder e não preciso de enumerá-los...

talvez, e não deverão ser poucas vezes, o analfabeto é o primeiro a interiorizar o valor da obra prima e fá-lo sem saber sequer o nome do escritor... fá-lo simplesmente por intuição como faria se olhásse a catedral de s. marcos pela primeira vez... o resto são fait-divers, novelas literárias, intrigas mais ou menos interessantes do que as vividas pela cabeleireira ou pela senhora da mercearia, apesar, claro está, das diferenças no vocabulário... divirto-me tanto com o 'disse que disse' da porteira do prédio como com o 'disse que disse' do mundo literário....


um beijo