quarta-feira, maio 31, 2006

Confessionário (22)

Eu realmente não sei o que Mme. Beauvoir diria a respeito da sua reflexão... talvez concordasse, levando em consideração toda a questão existencial; talvez discordasse porque era uma mulher inquieta e polêmica. O próprio Sartre em O que é literatura, dedicou-se a entender os mistérios da escrita.
Clarice manuscrevia seus livros e só então os datilografava. Detestava a idéia de reler o livro depois de publicado. Ela dizia: “cada livro meu é uma estréia penosa e feliz”. Eu complementaria – e única.
Falo por mim que sempre fui uma leitora ávida e hoje, atendendo um antigo chamado, sou uma escritora em aprendizado e como tal tenho um comportamento estranho. Lido mal com meus textos. Enquanto os escrevo, o envolvimento é íntimo, dividimos o dia-a-dia da hora que levanto até a hora de dormir. Nem quando sonho as palavras me abandonam, mas quando os textos ficam prontos, acabou. Não os releio na procura de falhas. Não acredito em reescritura, toda reescrita é um novo texto. Eu reviso no momento mesmo em que estou escrevendo.
Quando alguém os lê, sinto um misto de ciúme e orgulho.
Como leitora, sou uma sanguessuga quando escolho um livro, mas quando sou escolhida por eles, sou toda maleável, aceito ser guiada e seduzida.
Sabe o mais engraçado, Vítor? Os livros que se tornaram referência na minha vida, passaram por um processo de decantação profundo.
Dom Casmurro e Memorial de Ayres são livros preciosos para mim. Perdi as contas de quantas vezes os li e cada vez são sempre outros, mas também os mesmos. Machado é uma referência da minha formação literária.
Com o Avalovara (uma estória de amor que conheces bem) a experiência foi diferente. Quando o li, senti que naquele instante eu tomava consciência de outras vidas, houve um aprimoramento da minha matéria humana. Foi como um beijo roubado, causou frio na barriga. Fui tomada por um medo danado que alguém descobrisse como aquele beijo era bom e resolvesse também querer ser beijado. Então, como uma amante ciumenta, escondi o livro só para mim. Não parava de falar dele, mas jamais o apresentava.
Nesse meio tempo, li o Rayuelas. Adorei. Procurei conhecer mais o Cortázar e li outros livros dele.
Voltei ao Avalovara, receosa de que a experiência não fosse boa. Errei. A segunda leitura tornou-me mais generosa e quis que outras pessoas soubessem quem era Osman Lins. Passados sete anos, continuo relendo o Avalovara e ele tem uma força estarrecedora sobre mim.
É mais ou menos assim: sabe quando amamos alguém? Quando finalmente temos intimidade com essa pessoa pela primeira vez e é maravilhoso? Depois de dois, três, quatro anos ainda achamos incrível fazer amor com essa pessoa? Pois bem, é isso, meu amigo.
Ano passado, reli Rayuelas e foi uma decepção, fim de caso. Eu continuo achando o Cortázar um grande escritor. Rayuelas, enquanto projeto literário é fabuloso, mas sua história não comove mais minhas entranhas. Passei a achar aquelas personagens desprovidas de humanidade, acho a Maga uma débil, tenho desprezo por ela.
Fiquei triste por um longo período, vivendo o luto desse livro.
Essa longa história é para dizer o que eu, a Luciana, penso sobre o que me confessaste.
As leituras servem para nos confrontarmos conosco mesmos, meu Vítor. O medo da segunda leitura é também o medo do desencanto, da descoberta de que o amor acaba (mas não se perde). Os livros também são vida, uma vida, quem sabe?
O medo de dessacralizar algo que nos é inviolável é justificável, porque as experiências não se repetem e queremos sempre congelar na alma as coisas que nos são caras. Descobrir que aquilo que já foi tão importante um dia não tem mais tanta relevância tem um lado triste, profundamente melancólico...

Vou te contar um segredo. Eu ainda me devo uma segunda leitura de um livro chamado O gato malhado e a andorinha sinhá, da Zélia Gattai.
Quando o li, eu tinha uns sete anos. Foi tão frustrante, querido. Enquanto criança, ficara arrasada e inconsolável com o final. Ora, histórias infantis deveriam ter finais felizes! Nunca mais toquei no livro. Por sinal, ele sumiu da estante e não consigo me lembrar que fim lhe dei.
Acho que merecemos a oportunidade desse reencontro.

2 comentários:

Vítor Leal Barros disse...

adorei esta tua confissão...prometo responder brevemente... ando sem tempo para nada ...desculpa

Lu disse...

Desculpa?? Ora, ora... nem ouse! rs
Beijão.