sexta-feira, outubro 27, 2006

Confessionário (33)

'Nan one month after being battered', 1984, Nan Goldin

Minha amiga, peço-te desculpa pela demora na resposta. Sei que devia ter existido da minha parte uma resposta anterior, mas se não o fiz foi por pura falta de tempo para responder como mereces. Porque escrever-te não é uma coisa que faça levianamente. Exige de mim. É uma escrita viva, feita de emoções tão fortes e à flor da pele que por vezes só alguma distância me permite analisar os factos com alguma imparcialidade. Fazendo isso, tento evitar que ambos apaguemos a luz ao mesmo tempo e de repente as nossas vidas se transformem numa imensa escuridão. Quando te sinto vulcânica como na última confissão, vejo-me compelido a cuspir fogo contigo, não me faltam motivos para odiar a compostura e tu sabes disso. Seria muito fácil para mim dizer-te: ‘Lu, espera, eu compreendo a tua indignação e quero embarcar no mesmo navio.’ Mas tu sabes que as coisas não são assim tão lineares. Certamente vais odiar o que te vou dizer de seguida, mas tenho que o fazer como bom amigo que tu sabes que sou: não vale a pena quereres transformar-te numa pessoa que não és. A infelicidade será triplicada, o peso da vida insuportável e a máscara que tu dizes que deixaste de usar colar-se-á à tua face novamente, mas desta vez pintada de vermelho e negro substituindo o azul celeste da menina boazinha que tu dizes que morreu.
Eu não sou ninguém, absolutamente ninguém para dar lições de vida a seja quem for. Não sou um bom exemplo, não sou um poço de virtudes, tenho mil e um defeitos, coisas que eu mudaria em mim e outras que provavelmente nem mudaria apesar de parecerem monstruosas aos olhos de alguns. Como na tua carta, muitas vezes tenho vontade de dar um chuto na vida e virar esta merda toda do avesso. Digo muitas vezes a mim próprio, devia era fazer como este ou aquele, filhos da puta inatos, cuja consciência tem para eles um peso semelhante ao do algodão enquanto para nós, em situação semelhante, seria como uma imensa viga de metal caindo sobre as nossas cabeças do alto de uma daquelas torres de Manhattan. O que é que eu pretendo dizer-te com isto tudo minha amiga? Quero dizer-te que compreendo bem a tua indignação perante a fraqueza, perante a covardia, perante o desperdício da vida. Quero dizer-te que compreendo os enganos, as traições. Quero dizer-te que compreendo o porquê dessa culpa que falas e acrescento que não há nada mais terrível do que sentirmos culpa e medo de alguma coisa, nada nos tira mais liberdade do que isso, e quando nos vemos embrulhados em sentimentos tão atormentadores o espírito asfixia e, sim, depois é uma luta involuntária pela sobrevivência, darwinismo puro como bem descreveste.
Acho que me concedes a presunção de afirmar que te conheço profunda e verdadeiramente. Eu concedo-te o mesmo. Conheces-me melhor do que a grande parte das pessoas que me cruzo diariamente. Luciana, tu não és a vilã da tua história, por muito que te custe aceitar esse destino. Definitivamente não és. Também não és a menina boazinha e educada, o poço de virtudes inviolável e que oferece sempre a outra face. Só o Outro a ofereceu e porque sabia que o Pai o pouparia e lhe ofereceria o reino dos Céus. Tu és uma sobrevivente, é o que tu és. Tu e grande parte de nós. Somos quase todos sobreviventes. Humanos cansados, fustigados, magoados. Humanos cuja dor por vezes tão profunda, obriga-nos a odiar o mundo, a vida, o outro. O ódio não é um sentimento mau ao contrário daquilo que todos pensam. É o melhor detergente para a alma que conheço. O ódio é aquele grito de Munch que publicaste noutro dia. Peço-te para que grites bem alto e projectes esse ódio bem forte contra o Presente. Arranca-o do mais profundo recanto do teu corpo e cospe-o de uma vez por todas. Quando o vires desenhado na tua frente, quando lhe vires o rosto, saberás amá-lo, e a verdadeira Luciana abraçar-te-á como aquela mulher que uma vez me descreveste, num movimento simétrico.
A Nan Goldin tem uma imagem de que gosto muito. Auto retratou-se com um olho violentamente esmurrado depois de ter sido agredida pelo seu companheiro da época. Há pormenores interessantíssimos na fotografia. Ela pinta os lábios de encarnado forte, espalha um creme hidratante pela face para que a pele brilhe, coloca um flash a meio metro de si para que o impacto da luz branca sobre a pele luzidia seja ainda mais forte. Fá-lo numa atitude de desafio, de ódio, de intolerância… fá-lo para não esquecer, para não consentir… fá-lo como um grito de revolta, fá-lo por quer que sejamos seus cúmplices, quer que digamos com ela que aquele episódio não voltará a repetir-se. No dia em que vi pela primeira vez essa imagem pensei, o que leva uma mulher neste estado a fotografar-se com esta frieza? A resposta que me ocorreu foi algo de muito parecido com o fim da tua confissão: ainda não perdeu a coragem!
Sabes, as fotografias mais recentes da Nan Goldin são bem mais pacíficas. É estranho constatar que uma mulher que viveu e sentiu tão intensa e violentamente o drama humano e que teve a coragem de o expor ao mundo, seja hoje capaz de fotografar coisas tão serenas como uma jarra de gladíolos ou um bando de pássaros planando ao som crepuscular. Parece estranho, há qualquer coisa ali que não bate certo, como se tivéssemos saído do purgatório e encontrássemos as portas do paraíso abertas. Sabes do que se trata, minha amiga? Sabes que coisa estranha é essa? É tão e somente a coisa mais bela e maravilhosa que possuímos enquanto reles seres humanos que somos: a capacidade que cada um de nós possui de regenerar através do amor. O nosso corpo fá-lo a todo o momento em silêncio. Repara, cortas-te com uma faca por acidente quando estás a preparar o jantar. Sai imenso sangue. Dói. Acalmas colocando a mão debaixo da torneira para que a água fria possa limpar a ferida. Depois desinfectas, colocas um penso rápido. Passados uns dias retiras o penso, olhas o corte em fase de cicatrização. A mão ainda está um pouco inflamada, mas a pele começa a evidenciar o amor que o teu corpo lhe tem, já não corre sangue. Aos poucos e poucos, sem que te apercebas, as células agredidas vão sendo substituídas por outras novas, semelhantes a todas as que povoam a tua pele. Passadas umas semanas apenas uma ligeira marca permanece para te lembrar que deves ter cuidado quando estás a cozinhar. Mas não é só isso que essa pequena cicatriz te lembra, ela tem o mesmo poder da fotografia da Nan Goldin, existe para te provar que sabes amar, que podes seguir o exemplo do teu corpo e regenerar como ele. Sei que um dia me falarás de simples jarros de gladíolos, ou de um bando de pássaros planando ao crepúsculo, ou de outra coisa qualquer digna do teu amor. Pensa nisto que te digo, promete-me que o farás de coração aberto. Despeço-me parafraseando a Lia, com um beijo na alma. Espero um sinal teu. Se ele não vier e o teu desejo for o silêncio como pressenti na última carta, aviso-te que não o respeitarei. Continuarei a escrever o nosso diálogo esperando resposta atrás de resposta até ao dia em que, de novo, eu não seja o único a acreditar. Eu também não perdi a coragem minha amiga. E lembra-te, até porque o tens bem gravado na alma neste momento: só há uma coisa na vida que exige coragem, AMAR ... e é por não termos colhões que o mundo é a miséria que conhecemos.

[Confessionário (32)]

4 comentários:

AM disse...

vi uma exposição em serralves
ao vivo, as fotografias dessa senhora são muito impressionantes

Vítor Leal Barros disse...

a exposição de serralves foi realmente fantástica... em toda a minha vida tive dois momentos de comoção perante a arte...um foi na exposição da nan, o outro a primeira vez que pisei na praça de s. marcos em veneza

Vítor Leal Barros disse...

bem, minto...houve outros dois... no cinema

Lu disse...

Preciso pensar, meu Vítor... na hora 'certa' terei respostas.
Obrigada pelo diálogo e pela Nan Goldin que está se tornando uma referência.
;o)