quarta-feira, abril 12, 2006

Confessionário (17)

Meu querido,

Tenho deixado lacunas na nossa correspondência, eu sei... Ao mesmo tempo em que tenho uma imensidade de coisas a dizer-te, eu também tenho uma resistência em escrever, como se depois de grafar cada palavra, a coisa já fosse outra. Compreende?
Queria que soubesses que me deliciei profundamente com o Boticelli ofertado por tuas mãos generosas. Há tanta delicadeza naquelas cores e tanta história naqueles rostos!
Compreendi tudo o que me disseste a respeito de “ser cínico”. Sim, precisamos de uma boa dose de cinismo se quisermos sobreviver a tanta mediocridade. Acho mesmo que é a saída mais criativa em tempos tão estéreis.
O que dizer dos rituais?
Eu o confundiria se dissesse que gosto dos ritos tanto quanto os abomino? Mas é a verdade!
O que me seduz na celebração dos ritos é seu simbolismo, Vítor. Eles congregam as pessoas em grupos, é um fator identificador de valores e condutas, nos aproxima dos nossos iguais.
Sou uma romântica, mas como dizem meus amigos do lado de cá do Atlântico, quando querem insuflar meu lado polêmico, sou uma “neo-romântica”.
Eu sorrio da provocação e calo-me. Eles têm lá alguma razão.
Quando tentamos conquistar alguém, no jogo amoroso, invariavelmente recorremos aos ritos: flores, cartão, jantar, música, poemas...
Não é à toa que a mesa é o momento de celebração mais recorrente e forte na história da humanidade. Os casamentos, nascimentos, o encontro com amigos, os contratos comerciais, todos eles são selados nos rituais da boa mesa. Sintomático que o Cristo tenha concluído sua vida pública na última ceia, não acha?
Da mesma forma, não há nada pior quando lançamos mão dessa rica abstração para segregar, humilhar, cegar, matar, perpetuar hábitos retrógrados, regimes opressores e arrogantes.
Bem, mas isso é só o começo de uma longa conversa.
Eu dou-me por satisfeita em alimentar nosso pequeno ritual de correspondência. Saiba, quando me sento para escrever esta série, alinhavando sentimentos e raciocínio, é uma grande festa pessoal.

1 comentário:

Vítor Leal Barros disse...

existem alturas da nossa vida em que as coisas acontecem a uma velocidade tal, que se torna quase impossível ganhar a distância necessária à reflexão e consequentemente à escrita....isto para dizer que eu percebo os teus silêncios... e mais...isto (este blogue) não é uma obrigação para nenhum de nós, é um prazer apenas... um beijo