“A criança tem cerca de seis semana. Como a maior parte dos recém-nascidos humanos, parece um ser muito velho e que vai rejuvenescer. E, na verdade, é muito velha: quer pelo sangue e os genes ancestrais, quer pelo elemento não analisado a que, por uma bela e antiga metáfora, chamamos a alma, ela atravessou os séculos. Mas não sabe nada disso, e é melhor que assim seja. A sua cabeça está coberta por uma penugem preta como o dorso de um rato; os dedos dos punhos fechados, quando se desdobram, parecem as gavinhas delicadas das plantas; os olhos miram as coisas sem que ninguém lhas tenha definido ou nomeado: de momento é apenas ser, essência e substância indissoluvelmente ligadas numa união que vai durar sob essa forma cerca de três quartos de século, talvez mesmo mais.
Os tempos que ela vai viver serão os piores da história. Verá pelo menos duas guerras ditas mundiais e a sua sequela de outros conflitos a reacenderem-se aqui e ali, guerras nacionais e guerras civis, guerras de classes e guerras de raças e mesmo, por um anacronismo que prova que nada acaba, guerras de religiões, cada um contendo em si faúlhas suficientes para provocar a conflagração que levará tudo. A tortura, que se pensava relegada para uma pitoresca Idade Média, voltará a ser uma realidade; a pululação da humanidade desvalorizará o homem. Meios de comunicação maciços ao serviço de interesses mais ou menos camuflados farão correr sobre o mundo, com visões e barulhos quiméricos, um ópio do povo mais insidioso do que qualquer religião jamais foi acusada de espalhar. Uma falsa abundância, dissimulando uma crescente erosão dos recursos, dispensará alimentos cada vez mais adulterados e divertimentos cada vez mais gregários, panem et circenses de sociedades que se julgam livres. (…)
(…) Não faço do passado um ídolo: esta visita a algumas obscuras famílias do que é hoje o Norte de França mostrou-nos o que teríamos visto em qualquer outro lugar, quer dizer que a força e o interesse mal entendidos reinaram quase sempre. Em todos os tempos o homem fez algum bem e muito mal; os meios de acção mecânicos e químicos que ele recentemente se outorgou e a progressão quase geométrica dos seus efeitos tornaram esse mal irreversível; por outro lado, erros e crimes que eram sem importância enquanto a humanidade não passava sobre a Terra de uma espécie como qualquer outra tornaram-se mortais desde que o homem, tomado de loucura, se crê todo-poderoso.” (págs. 247 e 248)
Os tempos que ela vai viver serão os piores da história. Verá pelo menos duas guerras ditas mundiais e a sua sequela de outros conflitos a reacenderem-se aqui e ali, guerras nacionais e guerras civis, guerras de classes e guerras de raças e mesmo, por um anacronismo que prova que nada acaba, guerras de religiões, cada um contendo em si faúlhas suficientes para provocar a conflagração que levará tudo. A tortura, que se pensava relegada para uma pitoresca Idade Média, voltará a ser uma realidade; a pululação da humanidade desvalorizará o homem. Meios de comunicação maciços ao serviço de interesses mais ou menos camuflados farão correr sobre o mundo, com visões e barulhos quiméricos, um ópio do povo mais insidioso do que qualquer religião jamais foi acusada de espalhar. Uma falsa abundância, dissimulando uma crescente erosão dos recursos, dispensará alimentos cada vez mais adulterados e divertimentos cada vez mais gregários, panem et circenses de sociedades que se julgam livres. (…)
(…) Não faço do passado um ídolo: esta visita a algumas obscuras famílias do que é hoje o Norte de França mostrou-nos o que teríamos visto em qualquer outro lugar, quer dizer que a força e o interesse mal entendidos reinaram quase sempre. Em todos os tempos o homem fez algum bem e muito mal; os meios de acção mecânicos e químicos que ele recentemente se outorgou e a progressão quase geométrica dos seus efeitos tornaram esse mal irreversível; por outro lado, erros e crimes que eram sem importância enquanto a humanidade não passava sobre a Terra de uma espécie como qualquer outra tornaram-se mortais desde que o homem, tomado de loucura, se crê todo-poderoso.” (págs. 247 e 248)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar
2 comentários:
boa sorte em SP....muito boa sorte....voa...o mundo é teu!
boa sorte em SP....muito boa sorte....voa...o mundo é teu!
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