domingo, abril 23, 2006

sublinhado (26)

"Mas aquele gesto de quem se apaga tinha-lhe sido familiar toda a vida. (...) Um rosto vestido de humildade, diz Dante. Mas a humildade, que é a atitude que todo o homem reflectido adopta face à sua vida, é mais do que um traje." (pag. 205)

O quê? A Eternidade (Difel), Marguerite Yourcenar

Terminada a leitura de “O quê? A Eternidade” fica-nos a sensação de eterna curiosidade sobre a vida e as vidas de Yourcenar. Como tinha posto em hipótese anteriormente (1), a narrativa ficou-se mais pelos personagens simbólicos da sua vida (Michel, Jeanne e Egon) do que pelas suas próprias experiências. Yourcenar parece ter privilegiado a sua vocação de romancista – dos três livros de memórias conhecemos melhor os seus personagens do que a si própria, o que nos deixa seguramente insatisfeitos. O nosso instinto voyeur e a curiosidade sobre a vida da mulher que fez falar Adriano, não se perderam, e parecem ainda mais aguçados quando terminarmos o terceiro livro de memórias. Cronologicamente, Yourcenar deixa-nos em plena adolescência quando a Primeira Grande Guerra se esticava a leste, substituindo o sangue imperial pelo sangue revolucionário. Ao longo dos três livros dá-nos pistas que nos levam até aos seus 25 anos, idade em que perde o pai, Michel. Daí para a frente sabemos muito pouco, um ou dois episódios americanos isolados e o resto é silêncio: nada sobre quem amou, nada sobre com quem viveu, nada sobre uma Europa novamente em ruptura e muito pouco sobre o mundo do pós-guerra (se exceptuarmos as suas preocupações ecológicas e ambientais, a critica à aceleração desenfreada da humanidade e algumas referências breves a alguns focos de instabilidade posteriores a 1945). Fica-nos a consolação de sabermos onde e como nasce “Alexis”, esse pequeno livro muitas vezes esquecido e considerado uma obra de juventude, que na minha opinião, é uma das obras-primas da literatura do séc. XX. Um daqueles livros que, pela sua universalidade, extravasam o contexto em que foram escritos e adquirem vida própria, independentes a gerações, tempos e costumes; um livro na mesma prateleira de “As Ondas” de Woolf ou da “Recherche” de Proust.
Uma nota do editor Yvon Bernier diz-nos que Marguerite não levou “O quê? A Eternidade” até onde pretendia, mas que pouco deveria faltar para concluir a tarefa. Podemos supor que tentaria transportar-nos até 1939, se tanto. De qualquer forma, a escritora levou-nos até onde a força a permitiu levar-nos, ofereceu-nos o que a vida lhe deu oportunidade de oferecer, já que a morte foi a única razão para que ficássemos entre 1917 e 1918. Parece com isso ter confirmado o que escreveu no final de “Arquivos do Norte”: “Se me forem dados tempo e energia, talvez continue até 1914, até 1939, até ao momento em que a caneta me cairá das mãos.”

(1) texto de 5 de Abril de 2006

1 comentário:

Vítor Leal Barros disse...

e eu estou ansioso que voltes a postar... sua desaparecida querida...hehehehe