terça-feira, março 21, 2006

foi-me assistido o direito de oferecer um bolero...

BOLERO
Para a Lia


“Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltavaJamais”
[1]

Hoje, pelo menos hoje, não aceitarei o blefe.
Rasgarei as páginas do diário de nossa história que o tempo escreveu com seu lápis impreciso e que ele mesmo – o tempo – se encarregou de apagar.
Queimarei todas as cartas. Não me furtarei a essa orgia.
Começarei pelas cartas de amor, repletas de palavras quentes e ternas que celebraram o nosso encontro, nossa paz, nosso sexo.
Depois, passarei para as cartas de ódio, venosas, pesadas, objetos cortantes que anunciaram o nosso inferno, nosso tédio.
Não me renderei à tristeza, hoje não.
Fora bossa-nova, minha fossa, solidão!
Procurarei no armário aquele vestido vermelho, lembra? Faz um esforço. Isso, esse mesmo. O vestido “indecente, de decote profundo”, profundamente vaporoso. Ainda fica muito bem em mim; evidencia minhas pernas intermináveis, exibe meu colo, anuncia meus seios.
Abrirei as janelas e portas, usarei meu mais caro perfume, estamparei aquele velho sorriso de antigamente (guardei alguns de relíquia para contar histórias, ocultar segredos ou simplesmente me fazer lembrar de quem um dia eu fui).
Espanarei o pó dos móveis e da memória, e o sol varrerá o bolor que entranhou nos poros, rugas e frestas dessa coisa que ousei chamar vida.
Encherei a casa de amigos, dos meus amigos. Todos aqueles “imprestáveis, imorais e amorais”, docemente loucos e que tornam a vida plena de alegria e sentido.
Farei ainda um último e grande sacrifício: me desfarei das músicas melancólicas e comportadas e liberarei, em volume vergonhoso, as vozes melodiosas e em tom de luxúria que abafei em embrulhos no fundo do baú.
Dançarei lascivamente, sorrirei alto, beberei champanhe, me embriagarei, perderei os limites, serei despudorada, gesticularei bastante, assumirei minhas asas e voltarei a voar.
Hoje, pelo menos hoje... enquanto não aceito o blefe, não me furto à orgia, não me rendo à tristeza.

Luciana Melo – 13/05/04 (sim, a mesma, a maravilhosa co-autora deste blogue)
[1] A moça do sonho – Chico Buarque/ Edu Lobo.

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