terça-feira, março 21, 2006

sublinhado (20)

"Quanto mais eu própria envelheço, mais constato que a infância e a velhice não só se tocam mas ainda são os dois estados mais profundos que nos é dado viver. A essência de um ser revela-se neles, antes ou depois dos esforços, das aspirações, das ambições da vida. A cara lisa de Michel criança e a cara burilada do velho Michel parecem-se, o que nem sempre era o caso das caras entre a juventude e a idade madura. Os olhos das crianças e os dos velhos olham com a tranquila candura de quem ainda não entrou no baile de máscaras ou de quem já dele saiu. E todo o intervalo parece um vão tumulto, uma agitação no vazio, um caos inútil pelo qual nos perguntamos por que tivemos que passar." (pág. 138)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar

Este parágrafo exerce sobre mim a força de uma profecia. Trata-se de um raciocínio que eu próprio desenvolvo com demasiada frequência. Há pessoas que sentem não pertencer a um lugar, a uma família, a um meio social… eu sinto não pertencer a um tempo, eu sinto não pertencer exactamente a esse tempo que separa a infância da velhice. Não há uma explicação, pelo menos que eu encontre, a não ser a falta de perícia em lidar com as regras do jogo dessa (ou nesta) fase da vida. Muitas vezes consigo compreender a mágoa e a revolta de um incapacitado, consigo medir a dor crónica que o consome, é a mesma dor que sinto em relação a esse intervalo que separa a pele lisa da pele enrugada, é a mesma incapacidade, a mesma paralisia.
Independentemente dos episódios da minha infância nunca me senti estrangeiro enquanto criança. Também não me sinto longe dos velhos, sempre estabeleci com eles uma espécie de dialecto secreto… as suas palavras entram-me com a mesma magia da luz que me limpa os olhos. Já em relação a este intervalo, a esta idade intermediária e comprida, “é um caos inútil” pelo qual me pergunto por que tenho de passar. Talvez eu não tenha a elegância necessária a um baile de máscaras.

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