A desmaterialização do eu, que Yourcenar estabelece no texto anterior, relativamente à sua própria existência, remete-nos imediatamente para um dos personagens mais extraordinários da sua obra, Adriano. Como no livro de memórias do imperador, em que assistimos à debandada da alma (“a bela e antiga metáfora”) sobrevoando o grande mausoléu rodeado de ciprestes apontados à eternidade, em “Arquivos do Norte”, Yourcenar, vê-se ela própria como a criança destinada a conhecer os tumultos do séc. XX. O distanciamento do corpo, o olhar exterior como se nos analisássemos tal qual um personagem, é, no meu entender, um testemunho de humildade e mais ainda, um reconhecimento que só desse modo e apelando aos deuses da imparcialidade, pode um ser humano entregar-se à aventura de se conhecer a si próprio.
Depois de ter lido “Souvenir Pieux” e “Arquivos do Norte”, dedicados respectivamente às famílias materna e paterna da autora, cresce-nos a vontade de saber como terá interpretado o seu próprio século; será que Auschwitz ou Hiroxima lhe riscaram a alma, ou lhe terão causado uma leve indignação como a Comuna ao seu avô Michel-Charles, ou o distanciamento ao caso Dreyfus do seu pai Michel? Talvez o terceiro volume nos ofereça uma resposta justa, anunciada pelo realismo (que alguns podem adjectivar de pessimista, mas que eu não considero) dos últimos parágrafos de “Arquivos do Norte” e pela “advertência” deixada ao seu pai e a Proust no início de “O quê? A Eternidade”, demasiado envolvidos pelo entusiasmo tecnológico e as maravilhas do seu tempo. (“Proust e ele próprio não vêem muito mais longe. Todos cometem o erro de pensar nas satisfações do presente e nos lucros de amanhã, nunca em depois de amanhã ou no século que vem. Marcel não previra a morte que chove do céu, Coventry, Dresden, Hiroxima, nem os aniquilamentos que estão para vir no que ainda é o nosso futuro, nem a atrição produzida em períodos de paz pelos ódios e as rivalidades das nações artificialmente aproximadas.”) Ou talvez a autora decida contornar habilmente as feridas recentes do mundo, aproveitando, ora o fascínio pela figura paterna e a sua vocação de romancista, ora o seu interesse assumido pela História (em especial o período clássico), como escapatórias possíveis à sua vida e ao seu próprio tempo… a ver vamos.
Depois de ter lido “Souvenir Pieux” e “Arquivos do Norte”, dedicados respectivamente às famílias materna e paterna da autora, cresce-nos a vontade de saber como terá interpretado o seu próprio século; será que Auschwitz ou Hiroxima lhe riscaram a alma, ou lhe terão causado uma leve indignação como a Comuna ao seu avô Michel-Charles, ou o distanciamento ao caso Dreyfus do seu pai Michel? Talvez o terceiro volume nos ofereça uma resposta justa, anunciada pelo realismo (que alguns podem adjectivar de pessimista, mas que eu não considero) dos últimos parágrafos de “Arquivos do Norte” e pela “advertência” deixada ao seu pai e a Proust no início de “O quê? A Eternidade”, demasiado envolvidos pelo entusiasmo tecnológico e as maravilhas do seu tempo. (“Proust e ele próprio não vêem muito mais longe. Todos cometem o erro de pensar nas satisfações do presente e nos lucros de amanhã, nunca em depois de amanhã ou no século que vem. Marcel não previra a morte que chove do céu, Coventry, Dresden, Hiroxima, nem os aniquilamentos que estão para vir no que ainda é o nosso futuro, nem a atrição produzida em períodos de paz pelos ódios e as rivalidades das nações artificialmente aproximadas.”) Ou talvez a autora decida contornar habilmente as feridas recentes do mundo, aproveitando, ora o fascínio pela figura paterna e a sua vocação de romancista, ora o seu interesse assumido pela História (em especial o período clássico), como escapatórias possíveis à sua vida e ao seu próprio tempo… a ver vamos.
No final dos dois primeiros livros de memórias há uma característica transversal e essencial que devemos salientar e que se prende com o valor incalculável do testemunho. Muitas vezes, para não dizer, quase sempre, passamos ao lado das histórias dos nossos avós e dos nossos pais, vivemos, como Michel e Marcel, absorvidos pelas maravilhas do presente e esquecemo-nos que esse exercício retrospectivo é essencial à construção do futuro. É a base do nosso equilíbrio e do consequente equilíbrio do mundo. Enquanto avançava na leitura, dei por mim a fazer demasiadamente a mesma observação: “Mas porque é que não dediquei mais tempo aos meus avós e às suas histórias enquanto os tinha comigo? Há coisas que queria saber, e que, com a sua partida, transformaram-se em segredos eternos impossíveis de desvendar.” Como escrevi ontem na resposta ao texto da Luciana, não há vidas desinteressantes… talvez tudo se resuma exclusivamente a uma questão de querer e saber escutar.
7 comentários:
Quem diz que ninguém lê?
Como dizia o Rubens, isto é a revolução da delicadeza.
Abraços
obrigado carlos por não teres desistido... acho que posso começar a tratar-te na segunda pessoa do singular... afinal de contas somos visitas constantes um do outro..hehehe
abraço
Vitor,
Lia leu também!!
Duas coisas: fiquei curiosa sobre Yourcenar. Concordo sobre todas as histórias serem interessantes, contáveis, apaixonantes. BAsta que, antes de qualquer outro, nos apaixonemos por elas.
Abraços, querido, quero voltar com mais calma. Uma pergunta ao Carlos: por que nunca consigo acessar o blog dele através do link que ele deixa aqui? Sempre aparece visualização do perfil não permitida. Ohhhh...
cecília obrigado pela visita... para visitares o carlos vais até ao fundo da página e clicas em "legendas e etc"...
beijo grande
deixas-me vaidoso, tu... ora essa... que raio de comparações são essas? ainda tenho que comer muita sopa para chegar aos calcanhares da Yourcenar...
Lu, infelizmente ainda não li esse livro da Lispectos (li apenas a Paixão segundo G.H. e Perto do Coração Selvagem)
Lispector
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