quarta-feira, setembro 13, 2006

...ainda sobre os modernos

Vista interior de um apartamento, Cité Radieuse, 1953, Marselha, França, Le Corbusier
A dúvida questionava o carácter revolucionário (ou não) do Modernismo enquanto estilo, e se existiria (ou não) corte epistemológico com a história. Há quem defenda que o Modernismo não é mais do que a “cristalização dos sintomas que desde o Renascimento se fizeram sentir”, o que tem a sua lógica, até porque nenhum estilo ou corrente artística se faz em tabula rasa, é sempre o produto, o somatório, a “cristalização” ou condensação de uma série de condicionantes, que em determinado intervalo de tempo parecem fazer sentido como resposta aos problemas e necessidades que lhe são impostas. (Por essa ordem de ideias não haveria nunca corte epistemológico de qualquer movimento artístico com a história, até porque todos nascem da história. Nem mesmo Michelangelo “às suas costas e às suas custas” o conseguiria fazer.) Outros há, como eu, com dúvidas acerca desse carácter diluído e disseminado do Modernismo na história, assim como da sua atitude não revolucionária.
Façamos novamente a pergunta: o Modernismo constitui ou não uma Revolução?
Se exceptuarmos o argumento que usei atrás, de que qualquer movimento artístico é um produto da história, excluindo, portanto, a possibilidade de um corte epistemológico com ela, existem ainda assim várias hipóteses que nos levam a crer que o Modernismo constituiu realmente uma Revolução.
Algumas delas já foram enumeradas pelo António no ‘odespropósito’ quando destaca alguns autores independentes e anteriores ao movimento como A. Loos, Voysey ou Plecnik como “feridas aberta(s) na linearidade da leitura da história”. Podíamos ainda falar do espírito corporativo e associativo dos arquitectos modernistas, da sua ortodoxia, dos seus princípios, da ambição de criarem uma arquitectura iminentemente nova, a primeira a condensar em si os ideais iluministas de Kant e Rousseau e as preocupações ideológicas (à esquerda e à direita) de uma sociedade industrializada. Mas, o que na minha opinião faz do Modernismo um movimento revolucionário é exactamente o que faz de qualquer outro estilo uma revolução: uma abordagem espacial iminentemente nova. O JMAC, que defende o carácter não revolucionário do Modernismo, num dos seus textos do HardBlog toma este argumento como válido em relação ao Gótico: “Confirmar o Gótico, que, mais que um estilo, seria um “sistema construtivo”, que articulava as necessidades espirituais com as possibilidades construtivas. Sem fazer épicas digressões históricas mas dando uso a uma fina inteligência intuitiva que ainda hoje surpreende.
A revolução modernista está muito mais nas características dos seus espaços do que na vontade de romper com o passado ou nos discursos eloquentes e reaccionários dos seus precursores. O espaço modernista é o espaço específico por natureza, a forma existe para responder à função (seja ela material ou ideológica). O Siza, ainda na última entrevista ao JA, dizia isto muito claramente quando comparava os espaços modernos à casa palladiana: “O Movimento Moderno estabeleceu – a partir de um ponto de vista analítico e cientifico – os usos com uma especialização total. Tudo estava sujeito aos movimentos interiores e aos equipamentos domésticos necessários. Na casa palladiana não há especialização dos espaços, logo existe uma grande flexibilidade”. A verdadeira revolução dos modernos, na minha opinião, nasce a partir desta tipologia espacial verdadeiramente nova e em ruptura com o passado. O espaço doméstico moderno, e centremo-nos apenas nesta tipologia para não dispersar, é significativamente diferente dos anteriores. É o espaço que pede ao observador um cálculo em vez de uma emoção, uma avaliação objectiva em vez de uma atitude subjectiva de admiração como diz Benévolo num dos seus livros. Não estamos neste momento a estabelecer qualquer juízo sobre as aptidões ou falhanços da arquitectura moderna, seria uma outra conversa. A revolução é exactamente a tal “especialização moderna” dos espaços, o funcionalismo, o racionalismo abstracto, o ‘modulor’ e menos o carácter panfletário e propagandista de Le Corbusier ou dos mestres da Bauhaus.
Esta conversa fez-me lembrar de uma aula com o professor H. Bonifácio onde se colocava a questão de o Manuelino poder ou não ser considerado um estilo arquitectónico independente ou se deveria ser considerado um Gótico tardio. Depois de analisarmos os Jerónimos, uma análise profunda sobre o espaço, sem nos preocuparmos com as decorações alusivas às descobertas ou às proezas nacionais, chegamos à conclusão que o edifício, era ele próprio, uma revolução.

3 comentários:

AM disse...

Olá Vítor
Gostei de ler, acho que está muito bem escrito e com observações muito pertinentes, à excepção, provavelmente, da parte em que me citas... assim ainda acabas por estragar tudo! :)
Gostei particularmente do início quando escreves sobre a história como continuidade, mais do que sobre a história como ruptura... que foi um aspecto em que pensei mas que não cheguei a desenvolver na minha posta.
É sabido como na génese da arquitectura do renascimento esteve também a arquitectura "regionalista crítica" :) "italiana" do século XII, da mesma maneira que na arquitectura moderna (do estilo internacional ou outros estilos...) existem muitas e diversas influências, resgatadas a toda a história da arquitectura, que estas coisas vão-se sucedendo e “sobrepondo”, mesmo quando se querem “opostas” (apostas) a outras.
Só não sei se concordo, quando identificas a "revolução", com a "especialização" do (novo?) espaço moderno.
Será verdade, de diferentes e quase opostas maneiras, para os antagónicos Hugo Haring e Le Corbusier, mas não para o espaço "universal" do Mies que se queria contrário a qualquer "especialização".
O que eu gostaria de explicitar, ao pensar na "natureza revolucionária" e no "corte epistemológico" da aventura moderna, e em particular, quando falo do Adolf Loos, tem a ver com uma coisa muito simples (na minha simples cabeça...).
Era possível pensar e projectar arquitectura de uma determinada maneira, digamos tradicional, até ao Otto Wagner (do lado de cá), e até ao Louis Sullivan (do lado de lá). Depois do Loos, muda tudo... existe uma qualquer clarividência no seu pensamento e na “forma” do seu trabalho, que expõe as “misérias”, a nu... ao “ridículo”.
E quando tudo muda, acho que já estamos a falar numa revolução bem sucedida :) e não apenas numa (dolorosa) “cristalização” da... evolução (piada às comemorações de Abril, obviamente...).
Sobre a “razão” e a “emoção” do espaço moderno, outras coisas haveria para escrever, mas quem sabe noutra oportunidade... por agora chega.
Um abraço.

Vítor Leal Barros disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Vítor Leal Barros disse...

eu dei a "especialização" dos espaços como um exemplo, não é a única característica que faz do "espaço moderno" um espaço novo... o que queria dizer com tudo isto, e muito resumidamente, é que as 'revoluções' em arquitectura se fazem muito mais pelas características dos espaços do que pelas vontades e ambições dos arquitectos. Muitas revoluções se tentam e tentaram fazer depois dos modernos, mas será que alguma dessas tentativas o conseguiu? penso que não, exactamente pq não surgiram espaços 'novos'... há duas ou três obras depois dos modernos que apontaram novas direcções, mas não sei se o vínculo foi completamente rompido... para dar-te um exemplo o Museu Judeu do Libeskind (obra de excepção na sua carreira (ele nunca mais vai fazer outro edifício assim) e de excepção na arquitectura contemporânea)

ao falar dos Jerónimos como obra revolucionária, estava a fazer o mesmo que tu ao falar de Michelangelo... a biblioteca laurenciana é tudo menos um edifício renascentista... é em si própria uma revolução