segunda-feira, setembro 25, 2006

Sebald, Koudelka e o Exílio

Enquanto lia ‘Os Emigrantes’ do W. G. Sebald veio-me à lembrança um texto sobre a relação Invasão/Exílio que escrevi há coisa de um ano e pico a partir de uma fotografia do Josef Koudelka. Antes de qualquer conclusão sobre obra do escritor alemão gostaria de relançar o tema, na expectativa de que o assunto não morra aqui e seja tema de conversa no Sincronicidade durante os próximos dias.

Invasion by Warsaw Pact troops in front of the Radio headquarters, 1968, Praga, Rep. Checa, Josef Koudelka

Sobre uma Imagem de Josef Koudelka

Invasão: Acto ou efeito de invadir (…)”;
Invadir: 1. Entrar bruscamente, irromper; 2. Penetrar pela força e em grande número num país e ocupá-lo; 3. Espalhar em ou sobre alguma coisa; 4. Ganhar o espírito de alguém; 5. Monopolizar alguém ou o seu tempo.” [i]

Em Agosto de 1968 Josef Koudelka, fotógrafo checo, registou com a sua objectiva a invasão de Praga pelas tropas do extinto Pacto de Varsóvia. Ao recuarmos na história até ao momento preciso em que Koudelka congelou esta cena, apercebemo-nos da importância e da simbologia que uma fracção de segundo possui e como uma parcela tão curta de Tempo poderá dominar ou condicionar o próprio Tempo. Ora vejamos, Praga acabava de despertar da sua Primavera e ainda se sentia no ar o cheiro democrático das políticas reformistas de Dubcek; o povo, estalinizado desde o fim da Segunda Grande Guerra, redescobria o significado da Liberdade, entusiasmado pela rebeldia dos estudantes parisienses e pela utopia exalada nas flores e nos colares de missangas da juventude norte-americana; o mundo ocidental acreditava que o exemplo dos checos derrubaria o Muro mais cedo do que o previsto, a esperança reinava nas ruas de Praga e alastrava-se como um eco a todo o bloco ocidental. Tanta vontade, tanta esperança, tantos sonhos arruinados no preciso momento em que Koudelka dispara o obturador da sua lente, talvez ele próprio a mesma imagem indignada e revoltada do rapaz que “recebe” os soldados russos, um reflexo consternado no qual “the photographer engages us with a symbolic interval of his resistence as a fighter on behalf of the Dubcek liberalization” como faz crer Max Kozloff.[ii]
Se buscarmos uma interpretação política desta imagem retiraremos dela uma quantidade de significados, que vão desde anulação de valores como a identidade e a liberdade de um povo que é ocupado militarmente por outro, mais poderoso e cujas consequências se manifestam de modo quase irreversível durante o período de domínio e de ocupação; questionaremos se a identidade ideológica das personagens que a compõem corresponde à identidade política das facções que representam (acreditamos na revolta e na consternação do rapaz checo – o invadido – mas a mesma crença não será partilhada em relação ao soldado russo – o invasor – sentado na traseira do tanque de guerra, que parece executar uma ordem da qual não partilha acordo); questionaremos por fim a importância de momentos como o da fotografia de Koudelka, capazes de direccionar a História num ou noutro sentido como que perguntando: se a Primavera de Praga tivesse vingado, não teria o Muro de Berlim caído mais cedo e onde estaríamos nós agora, se o caminho percorrido pela humanidade tivesse atalhado o Tempo em Agosto de 1968?
A imagem de Koudelka é passível de todas as interpretações políticas descritas, bem como doutras deixadas para segundo plano deliberadamente. Muito provavelmente esta imagem atinge hoje uma conotação iconográfica e, partindo do pressuposto que estamos perante um ícone, ela não só simboliza um momento histórico específico – a invasão de Praga pelas tropas soviéticas – como todas as outras invasões militares, ou tão e somente a INVASÃO como acto ou conceito, onde algo ou alguém exerce um poder deliberado sobre outro que não o consente ou aceita. Como ícone, a imagem atinge “the feeling of strangeness that overcomes the actor before the camera […] basically of the same kind as the estrangement felt before one’s own image in the mirror”.[iii] Podendo esta imagem reflectida ser transportada, separada do contexto onde foi registada, independência essa conseguida pelo seu estatuto iconográfico, resta-lhe, como afirma W. Benjamim, a exibição perante o público, que reconhecerá não apenas o significado histórico que ela acondiciona como legitimamente lhe atribuirá um significado mais amplo e intimamente ligado ás suas próprias questões existenciais e filosóficas. Quer-se com isto dizer que, independentemente do conhecimento histórico do observador sobre o acontecimento decorrente da imagem, ele reconhece nela um significado – A INVASÃO, partilha a mesma consternação e a mesma raiva do INVADIDO e sente também a agressão e a violação do INVASOR. A imagem de Koudelka não representa só um acontecimento longínquo lá nos late sixties, ela confronta o observador com um acto que ele reconhece da sua rotina quotidiana – o acto de ser invadido, a sensação de que alguém lhe “ganhou o espírito”.[iv]
É, portanto sobre a Invasão enquanto conceito que nos fala a imagem de Koudelka. Fala-nos sobre o “triunfo da natureza mais baixa sobre a mais alta (…) da tirania do fraco sobre o forte” que Oscar Wilde refere numa das suas peças “como sendo a única tirania que perdura”.[v] A Invasão enquanto exercício deliberado do poder de um sobre o outro, sem permissão ou consentimento - a imposição de material bélico sobre uma nação ou a simples manipulação psicológica de um ser humano sobre outro, na qual o Invasor detém uma posição de conhecimento e domínio sobre os medos, as fobias e as inseguranças do Invadido e de forma deliberada os usa para diminuir o outro na sua personalidade e no seu carácter. É a imagem do triunfo da tirania sobre a liberdade e que só pode ser interrompida pelo Invadido, uma vez que o Invasor, conhecedor do poder que detém, dificilmente se desprende dele, pelo menos enquanto se mantém conhecedor daquilo que considera frágil no outro. Para aniquilar a Invasão, o Invadido tem três alternativas possíveis: tornar-se ele próprio num Invasor, num Resistente ou num Exilado.
Tornando-se num Invasor, aprende a jogar com as mesmas regras do Invasor, ou seja, inventa-as consoante a necessidade ou a conveniência, golpeando e sendo golpeado segundo o maior ou menor grau de distracção do outro. Talvez seja o percurso mais penoso e o sucesso depende sempre do desequilíbrio de uma das partes, começando o jogo sempre no prato mais baixo da balança para o Invadido, visto ter sido ele o primeiro a ser dominado.
O Resistente, combate a Invasão de forma heróica e altruísta. Sabe que o jogo é desigual mas o seu estoicismo acaba sempre por demover o Invasor, se não mais, apenas pelo cansaço.
O Exílio é a atitude dos homens livres, depende exclusivamente das decisões por eles tomadas assumindo que a sua força é suficiente para continuar o caminho. Ao afastarem-se do seu país, da sua terra ou de si próprios (como até então se conheciam) optam pelo caminho duro da solidão e arriscam-se a carregar consigo a eterna saudade da proveniência. Apesar de tudo escolhem sempre e por escolherem são terrivelmente livres. “Freedom of exile is of that lofty sort, though it is imposed by circumstances and, therefore, deprived of bathos. A brief formula may encapsule the outcome of that struggle with our own weakness: exile destroys, but if it fails to destroy you, it makes you stronger”[vi]. Sabemos que Josef Koudelka foi um Exilado. Talvez o rapaz da fotografia tenha sido um Resistente. Optemos sempre em LIBERDADE.

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[i] Nova Enciclopédia Larousse, vol. 13, págs. 3837 e 3838
[ii] KOZLOFF, Max; “Lone visions, Crowded Frames – Koudelka’s Theater of Exile”
[iii] BENJAMIN, Walter; “The work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”, cap. X
[iv] Nova Enciclopédia Larousse, vol. 13, págs. 3837
[v] WILDE, Oscar; “De Profundis”, pág. 18
[vi] MILOSZ, Czeslaw; “Exiles – On Exile”

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