quinta-feira, setembro 28, 2006

imagens que se colam ao peito (11)

Erotismo e Morte, 1985, pastel e carvão s/lona, 158x230 cm, Graça Morais

Saímos do Porto já tarde. Estávamos cansados das entregas de trabalho sucessivas e, sem grandes planos, resolvemos fugir dois ou três dias da cidade para descansar um pouco. Éramos quatro, eu, a Ana, a Sofia e o Mário. Fechámos o gabinete e foi o tempo de passar por casa de cada um, meter a roupa e a escova de dentes num saco e sair pelo país fora sem destino. Jantámos nessa noite em S. João da Pesqueira, um belo jantar como quase sempre acontece no interior do país. Fizemos mais uns quilómetros já de noite fechada. O céu estrelado como é impossível nas cidades. Fazia frio, estávamos no fim de Fevereiro. Acabámos por dormir em Foz Côa.
No dia seguinte acordámos bem cedo. Passeámos toda a manhã por Torre de Moncorvo e o acaso levou-nos até Vila Flor, onde parámos para almoçar. À entrada da sala de refeições estava escrito em letras garrafais SALA GRAÇA MORAIS. Nas paredes multiplicavam-se reproduções de vários tamanhos de quadros da pintora, fotografias dos donos do restaurante abraçados à mulher que era o orgulho da terra, dedicatórias, recortes de jornal… a sala parecia um santuário dedicado à artista exalando em cada canto aquela generosidade de que só os transmontanos são capazes. Apenas duas mesas estavam ocupadas, a nossa e uma outra, ao fundo do lado direito, ocupada por dois homens com os seus cinquenta e poucos anos.
Durante a refeição discutíamos entre nós os quadros. Aquele é mais forte, não, o outro é que é. Repara-me a expressão vincada que ela desenha no rosto da mulher. O patati patatá do costume. Estávamos bem, tranquilos e a conversa fluía ao sabor do douro tinto que bebíamos. Já no fim da refeição, preparávamo-nos para pedir o café, quando a senhora que nos servia se aproximou e perguntou, os senhores não sabem quem é aquele senhor que acabou de sair? Nós, admirados que estávamos com a pergunta dissemos que não. Ela prosseguiu, é o presidente da Câmara. Olhámos uns para os outros, encolhemos os ombros e agradecemos-lhe a informação. Ele deve ter gostado dos senhores continuou ela não costuma fazer isso a muita gente. Ainda mais intrigados com todo aquele palavreado questionei-a, mas ele não costuma fazer o quê, minha senhora? Ao que ela prontamente respondeu, o sr. Presidente pediu-me para dizer aos senhores que passassem lá pela Câmara... gostava de dar-lhes uma palavrinha. Repetiu, ele deve ter gostado muito dos senhores, não faz isto a muita gente. Perguntámos-lhe porque quereria ele falar connosco, mostrando-lhe o nosso espanto e a nossa dificuldade em acreditar em toda aquela conversa. Provavelmente ele deve querer oferecer-vos alguma coisa cá da terra, ou então, mostrar-vos o museu. Não sei. Sei que ele gostou dos senhores, caso contrário não fazia isso. Tomámos o café numa risota só, completamente pasmados com tudo o que se estava a passar. Discutíamos se deveríamos passar pela Câmara ou se tudo aquilo era uma grande tanga e o melhor era seguirmos caminho. Optámos pela primeira hipótese.
Ao chegarmos à Câmara Municipal dirigimo-nos muito constrangidos à senhora da recepção relatando-lhe o sucedido. Ela imediatamente pegou no auscultador do telefone, anunciou-nos e depois só a ouvíamos dizer repetidamente Sim, Sr. Presidente. enquanto abanava a cabeça para cima e para baixo. Gentilmente pediu-nos que a acompanhássemos e que esperássemos numa sala com vistas para a entrada do edifício. Comentámos entre nós que deveria ser o salão nobre, pelos cortinados pesados, o mobiliário abarrocado e os retratos pendurados numa das paredes, provavelmente dos antigos presidentes.
Dois minutos passados, entra na sala um senhor de barba e cabelos grisalhos, aí pelos seus cinquenta anos, que reconhecemos imediatamente do restaurante. Sorriu-nos e estendendo-nos a mão para nos cumprimentar perguntou, então o que traz os meus amigos a Vila Flor? Nós, espantados com toda a situação dissemos-lhe que estávamos de passeio e que por acaso tínhamos resolvido almoçar na sua terra. Perguntou-nos o que fazíamos, ao que nós respondemos, e continuou gostei de vos ouvir falar dos quadros da Graça lá no restaurante. Até disse ao amigo que almoçava comigo, vou convidar estes miúdos a ir lá à Câmara… tenho lá uns livros da Graça que gostava de lhes oferecer. Nós, cada vez mais nervosos olhávamo-nos e permanecíamos incrédulos com tudo aquilo. Se me dão licença, saiu, abeirou-se da porta da sala e chamou uma senhora. Entrou novamente na sala e perguntou-nos Já visitaram o museu cá da terra? Nós dissemos que não e ele prosseguiu, vou pedir à doutora que vos acompanhe até lá, acho que vão gostar. Entretanto entra uma senhora na sala carregando uma pilha de livros nos braços. Ele pediu-lhe delicadamente que os pousasse na secretária. Pegou num, folheou-o e desabafou um tanto ou quanto emocionado, a pintura desta mulher é uma maravilha. Não imaginam o orgulho que tenho dela ser cá da terra. Fechou o livro, entregou-o à Ana e de seguida distribuiu os que estavam na mesa por todos nós. Ainda recusámos a oferta ou então que nos deixasse pagar os livros, ao que ele interveio, nem pensem numa coisa dessas, até me ofendem! Convidei-os cá porque quis, ora essa, vão agora pagar-me os livros! Despedimo-nos dele agradecendo-lhe o carinho e a atenção e saímos da Câmara Municipal em direcção ao museu, carregados de livros e acompanhados pela tal doutora que nos indicava o caminho.
Nesse dia não houve outro tema de conversa entre nós. Pensávamos que acontecimentos e pessoas assim já não existiam, ou então, eram ficção, personagens de um romance ou de um conto quaisquer. O senhor chamava-se e penso que ainda se chama Artur Vaz Pimentel.

3 comentários:

Agripina Roxo disse...

não deixo de sorrir quando quando falam bem dos transmontanos, conheço bem essa forma estranha de ser simpático :)
e isso foi porque ninguém te convidou para ires a sua casa, se acontecesse não podias sair de lá sem comeres o presunto, o chouriço, o pão e o vinho e com sorte ainda trazias nos bolsos, maçãs do quintal :) o que não podias era não comer :)
a minha mãe é de Vila Flor, de uma aldeia chamada Mourão. é uma vila pacata e engraçada :)
um bom fim e semana *

Lu disse...

Querido, e aqui volta o tema:"não há vidas desinteressantes", não é mesmo?
Cada dia estou mais segura que a humanidade resiste a tantos imbecilidade graças a esses gestos.
Beijo

Different disse...

Por acaso os meus pais também são do Mourão:)
O mundo é muito pequeno :) mas a alma dos transmontanos é enorme:)
Serão sempre bem vindos!