quinta-feira, outubro 26, 2006

Confessionário (32)

Nota de rodapé

Incrível como a culpa é um sentimento cambiante, oportunista e desleal.
Uma coisa é sentirmo-nos culpados porque o chute que demos em alguém quebrou-lhe a canela; outra, totalmente absurda, é saber que um torturador durma pacificamente, imbuído do espírito de dever cumprido, enquanto os prisioneiros torturados varem as noites atormentados pela culpa.
Vítor, lembra que uma vez falei-te do fascínio, da identificação sedutora que sinto pelos vilões? Os bonzinhos são tão aborrecidos, enfadonhos... não, eu não gosto de gente boazinha, definitivamente.
Bem, e qual a relação disso com a culpa? Meu Vítor, hoje, comecei a enxergar uma luz no fim do túnel.
Dei-me conta que passei a vida toda alimentando uma personagem que eu não criei! Com o tempo, eu podia ter negado alimento a essa criatura e tê-la matado à mingua, mas não, fui permissiva e construí um monstro de muitas bocas e muito, muito voraz. Fui salva por um triz. Quando notei que a personagem estava assumindo o meu lugar no mundo, resolvi me rebelar. A isto chamo instinto de sobrevivência, darwinismo puro e simples.
O fato é que eu sempre senti muita culpa de ser uma vilã. Quantas vezes, querido, eu não me violentei brutalmente para agradar os outros. Não era medo, era o mais genuíno sentimento de culpa a me corroer.
Disseram-me que eu deveria ouvir, estimular, dar colo, oferecer apoio, ser companheira. E eu mergulhei fundo nesse ensinamento e cabulei as aulas sobre limites.
Mesmo quando estava cansada, destruída, sangrando, eu sempre dava um jeito de ser legal, de estar disponível. Eu sentia-me culpada só de pensar em dizer a um amigo: “agora não posso”. Eu sempre pude mesmo quando não podia nada. No dia em que a situação se inverteu, as pessoas ao meu redor não se sentiram culpadas por não corresponderem e eu, então, caí nas trevas.
Vítor, tudo, absolutamente tudo fez sentido: Osman Lins, o Avalovara, o caos, a constatação sábia de que os começos jazem nas sombras. Não dá pra ver a luz se não aprendermos a usar a escuridão de forma criativa. Entendi A. e V., a Valentina, o diário de G.H. Sobre isso especificamente depois lhe escrevo, porque acho que não vou mais continuar esta série, acho que ela não faz mais sentido... não sei. Isso é assunto para depois.
Hoje eu parei de chorar, meu amigo. Parei de sentir pena de mim. Hoje eu tirei a máscara: a boa moça tirou férias e queira Deus que seja para sempre.
Pela primeira vez, talvez em toda a minha vida, eu tenha me odiado de fato, porque eu odeio gente boazinha e eu fazia parte desse time – os bonzinhos. Então, a partir de hoje não sou mais boazinha. Eu não sei o que eu sou ainda, mas boazinha de jeito nenhum!
Já te adianto, algumas pessoas me perguntarão: essa mudança se deu assim, num clique, de uma hora para outra?
Ah, Vítor, gostaria que me visses agora, as faíscas loucas dos meus olhos! Um clique? Há 35 anos, meu Vítor. 35 anos. Sendo que nos quatro últimos, vivo numa tristeza sem precedentes. Há 4 anos, pelo menos, eu agonizo em silêncio. Ninguém sabia, claro, eu me sentia culpada por isso também.
Hoje eu sorrio, querido. Eu queria logo que soubesses disso. Eu prometi esta partilha. Ainda não é o riso farto, mas será em breve. Eu posso sentir. Afinal, antes tarde do que nunca, como diz o ditado. E saiba, Vítor, nunca é tarde para essas descobertas.
Eu ficaria extremamente decepcionada comigo, se lá adiante, eu olhasse para trás e constatasse que, por inércia, desperdicei tanta vida por não ter rompido os grilhões que me escravizavam.
Eu ainda não perdi a coragem.

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