segunda-feira, outubro 02, 2006

sublinhado (42)

«Não propriamente uma ideia, mas uma espécie de iluminação... Sim, foi isso, Bruno, vai-te embora. Deixa-me ficar sozinha». A Mulher Canhota, o romance de P. Handke, conta a história de uma mulher jovem que sem razão, sem finalidade, pede ao marido que a deixe sozinha, com o filho de oito anos. Exigência ininteligível de solidão que é preciso, antes do mais, não reduzir a uma vontade de independência ou de libertação feminista. [...] Metafísica da separação das consciências e do solipsismo? Talvez, mas o mais interessante situa-se noutro lugar; A Mulher Canhota descreve a solidão deste fim de século XX, mais do que a essência imtemporal da derrelição. A solidão indiferente das personagens de P. Handke já nada tem a ver com a solidão dos heróis da idade clássica nem mesmo com o spleen de Baudelaire. O tempo em que a solidão designava as almas poéticas e de excepção passou; aqui, todas as personagens a conhecem com a mesma inércia. Nenhuma revolta, nenhuma vertigem a acompanham; a solidão tornou-se um facto, uma banalidade do mesmo registo que os gestos quotidianos. As consciências já não se definem pela dilaceração recíproca; o reconhecimento, o sentimento de incomunicabilidade, o conflito deram lugar à apatia e a própria intersubjectividade se encontra desinvestida. Após a deserção social dos valores e instituições, é a relação com o Outro que, seguindo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafecção. (pág. 45)
A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky
Acho que do que li, ainda é cedo para retirar alguma conclusão sobre as ideias de Lipovetsky, mas, apesar de achar pertinentes muitas das suas observações e constações sobre a sociedade contemporânea (pós-moderna), há no seu discurso um dramatismo, uma carga reaccionária e um quê de revolta que me irritam. O diferente não é necessariamente mau. Da transcrição atrás, por exemplo, o sublinhado (que não é mais do que a constatação) é extremamente pertinente, já a conclusão ('a relação com o Outro que, seguindo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafecção') é altamente discutível.

1 comentário:

Lu disse...

O tal processo de desafecção só sucumbe quando uma relação verdadeira não se estabelece. Dessa forma fica difícil, diria mesmo quase impossível, notar o Outro, uma vez que ele não existe.
A solidão é algo inerente a humanidade... deve ser algo que surgiu no momento da criação em que nos desprendemos do útero para galgar o mundo sozinhos.
Beijo.